Na Revista eSTUPIDa #9
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As imagens sucedem-se sem cor, desfocadas, quase ao ralenti, uma após outra são imagens paradas de uma paisagem em fogo e onde o único movimento é o fumo esvoaçando das casas queimadas. Deodato acaba de perceber que está dentro do filme porque uma imagem o mostra reflectido num vidro de loja em cacos vestido de repórter fotográfico, as moscas zumbem na imagem, e Deodato dorme no sofá de descanso da recepção do hotel onde trabalha no turno nocturno.
A vida anda pacífica, o trabalho corre-lhe bem desde que conseguiu dar a volta à dona Assunção, a senhora invisual de sessenta e poucos anos que está hospedada connosco há mais de um ano. Dar-lhe a volta significa fazê-la confiar em mim, ela que não é cega de nascença e perdeu a visão devido a um erro médico não tendo sido indemnizada por sendo pobre, iletrada e de um meio desfavorecido, não ter amigos que por ela intercedam dentro da SS, a vulgar assistência social.
Devem ser quatro e meia da manhã, Deodato continua a sonhar, avança pela guerra adentro e vê os soldados forçando as portas, entrando nas casas, roubando o recheio, enforcando os locais suspeitos de sedição, matando os velhos, estuprando crianças, Deodato entra atrás de um deles e vê a dona Assunção perguntando quem está aqui, o soldado firma-lhe o cano da Browning na testa, desaperta as calças, força-lhe a cabeça, Assunção, a cega, debate-se, resiste, leva chapadas, por fim, enjoada começa o serviço, o soldado a princípio relaxa-se, depois excita-se, depois... grita, a valente dona Assunção morde-lho com tanta força que o arranca fora, a boca cheia de sangue, o soldado sangrando das virilhas... numa questão de segundos uma coronhada desfaz o crânio da dona Assunção, Deodato acorda, estão a bater à porta de entrada, é um casal que quer um quarto, digo-lhe que estamos cheios e não temos quartos, olha para o relógio: cinco e meia da manhã, hora de fazer o balanço da noite que termina e abrir o dia no hotel com as reservas de quartos que vão entrar hoje.
— Mas que cena que eu fui sonhar! Vou masé lá baixo ao quarto dela acordá-la, está na hora de a acordar, são quase seis da manhã, nem sei porque sonhei isto, deve ter sido por causa da guerra no mundo, vou fazer um desenho hoje para fixar o momento em que Assunção subiu ao céu onde repousam todas as vítimas deste mundo e, quem sabe, se esta desgraça sonhada e transformada em desenho não faz com que a minha cega receba finalmente o apoio que tanto merece da SS, a assistência social. Eu, por mim, vou continuar a fazer tudo para que ela viva bem aqui connosco neste hotel.
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Claudio Mur
«Ficar sem pilinha»
óleo sobre papel tamanho A2
2022
ZMB
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