terça-feira, 22 de novembro de 2022

O passado explica o porquê das coisas.
Comparado com isto não passo de um betinho.
Á beira disto, a minha miséria exstencial é apenas «queixinhas»

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Bom... saí da minha cidade onde minha mãe morava em Nova Cruz e fui viver em Natal em Rio Grande do Norte onde eu nasci, morava no Morro da Mãe Luísa, na época lutava capoeira e conhecia todos os traficantes que viviam no bairro e todos eles me respeitavam como também eles tinham o me respeito. Eu era careta na altura, nunca tinha usado droga, não sabia o que era haxixe, só o que era maconha, só nunca tinha usado. Mas passei a usar, e gostei. Pelo menos, eu relaxo, fico tranquila, não faço mal a ninguém, porque as pessoas dizem que as pessoas que usam droga é para fazer mal aos outros... é mentira, isso é uma pura mentira!, isso é uma justificativa, porque não sabem o que estão dizendo, porque eu uso droga e não faço mal a ninguém, deito na minha cama, tomo a minha cerveja, vou para o computador, brinco com o meu jogo, falo com os meus amigos e minhas amigas e olha... estou numa boa, estou tranquila. Mas os preconceituosos dizem que a gente usa droga pra fazer o mal. Isso é mentira. Faz mal quem já está com a cabeça cheia de merda, já com vontade de fazer aquela merda, de invadir uma casa, destruir família, de matar, roubar. Mas não é por influência da droga, não, isso é mentira, uma pura mentira.

E não achas que a droga pode potenciar ou intensificar certos pensamentos ou certas reacções...

Comportamentos...

Comportamentos... ou seja, e a gente está... como a droga nos altera a consciência, nos põe num estado mais...

Elevado...

Elevado mas alterado de consciência...

Sim... passa muita coisa pela cabeça...

Não é pela droga mas não achas que a droga poderá... ou seja, a gente está...

Influenciar...

Certos comportamentos... quando a gente, quando alguém vem de fora falar connosco e nos põe em causa, o nosso ser... nós pra nos defendermos e defender o nosso acto...

Não. Não acho. Eu acho que o sujeito que aborda já vem com pensamento mau.

Exacto.

A gente [nós] estamos tranquilos, estamos fumando um charro, tranquilos, viajando na nossa, pensamento bom, não sei, eu pelo menos quando fumo um charro viajo na maionese, penso em viajar, ser feliz, ter um grande amor, é isso o que eu penso, na minha vida eu quero é ser feliz, eu tenho direito a isso, se Ele me pôs no mundo com algum objectivo foi, Ele não me pôs no mundo à toa, pois não?

 

A música diz «a tua beleza brilha tanto».

É, a minha beleza brilha um caralho, a minha beleza brilha no cu como estrela.

Concentra-te na música agora.

Mas, menino, tem as fotos, há mais marés que marinheiros, a minha Iansã vai tomar conta, certo?, só pega na rodilha quem pode com o pote e ele não pode com o pote, porque com espírito ele não brinca, porque ele não vê, certo?, e eu vejo, é por isso, Ru, não queira ver o meu lado negro, tu sabes qual é o meu pensamento? Eu vou destruir... eu não, alguém, alguém vai tomar conta dele prá mim...

«your beauty shines so...», canta Sheila Chandra no leitor de cedê.

 

Era uma vez, uma cachopa bem gira chamada Shivana...

Ainda bem que o meu nome não é esse...

Era uma cachopa que andava no trapézio a fazer malabarismos... foi o que ouvi dizer, contaram-me essa história, ela fumava muita erva.

E falava pelos cotovelos.

Fumava muita erva, ela foi iniciada no morro.

Não, ela não foi iniciada no morro, o morro não inicia ninguém, a gente faz o que quiser, porque eu já conheci muita gente humilde no morro que me deu abrigo, comida, roupa, sapato... e não me ofereceram nem cachaça nem droga. Então portanto, tem muita gente humilde ali dentro, tem muita gente boa.

Pois tem.

Mas o mundo é hipócrita.

Pois é.

O mundo só quer saber Capitalismo, cash, dinheiro, os pobres ficam de lado, certo?, é a massa, a massa podre, é a massa podre, mas sabe porquê?, por conta e culpa de quem?, de nós mesmo, porquê?, porque elegemos esses filhos da puta.

Pois é.

Nós somos os próprios culpados.

É, quem vota e até quem nem vota, porque se formos a ver quem não vota são praí quarenta porcento...

É por isso que... numa coisa... em Portugal...

Diz... «Em Portugal...»

Era uma coisa que eu gostava... era do tempo de Salazar!

Estragaste tudo, ooooó, vou ter de cortar esta história, vou ter de cortar o gravador...

Era igual ao Hitler!

E gostavas do Hitler?

Gostava não, gosto!

Gostas do Hitler?

Gostava não, gosto. Sabe porquê?, porque intruso só atrapalha, intruso tem de morrer, certo?, intruso tem de morrer, mas um pai de família não, um pai de família não deve morrer, um pai de família, ele está lutando pela família dele... e isso eu sou contra o Hitler porque ali...

Mas ele matou muitos pais de família...

Uuuuui!, e não só, e não só, meu querido, matou também criança...

E continuas a defender o Hitler?

Não...

Então como podes dizer que...

Eu estou dizendo que eu, se fosse naquela época, eu apoiava o Hitler...

Mesmo sabendo que ele matava crianças e mães e pais...

Não não, eu aí também me ia revoltar e ele iria me fuzilar claro.

Apoiavas ou não apoiavas, diz lá!

Aos bandidos, aos bandidos...

E se ele te considerasse uma bandida?

Olhe, podia botar no paredão que eu ia morrer pode ser.

Então continuas a dizer que apoiavas o Hitler? Fala lá, diz aí, perante estes factos...

Não. Deixa eu... peraí, eu vou dizer, vou explicar.

Explica bem.

Eu gostava do Hitler numa coisa...

Em quê? Explica aí!

Ele foi um filho da puta que matou...

Seis milhões de pessoas!

Ui!

Pelo menos seis milhões de pessoas!

Isso é o que nós sabemos.

E não foi só judeus [e ciganos e malucos e gays e drogados] que ele matou, matou também muitos na guerra, morreram muitos a combater...

É por isso que eu estou dizendo, seis milhões nas câmaras de gás, criança, pai, mãe, avô...

Eles antes de irem para o gás tiravam-lhes os dentes de ouro, os anéis...

Não venha me ensinar o pai nosso e a avé maria tábem

E ia tudo para o armazém...

Eu sei...

Venderam esse ouro todo...

Eu assistí ao documentário e à Lista de Schindler.

Prontos, então explica aí ao gravador porque é que gostas do Hitler afinal de contas.

Olha, eu gostava do Hitler uma coisa...

Diz aí, explica! Explica!

Calma!

Desculpa. Fala. Leva o teu tempo. Mas explica bem.

Eu queria ser como ele, eu queria ser como ele... mas para fuzilar os bandidos, entende? Era isso que eu queria dizer...

Os bandidos...

Isso.

Sim... os bandidos. Mas que bandidos?

Não pais de família...

Que bandidos?

Por exemplo... estrupador.

Sim, estrupador. Mais. Quem é que querias que ele fuzilasse mais?

Calma, deixa eu pensar.

Estrupador, «violador» em português.

É violador de pessoas, principalmente de adolescente...

E de crianças também.

Pois. Adolescentes, crianças...

Seis anos, às vezes menos, bebés.

Bebés. Isso eu botava no paredão, porque isso não merece viver, caralho!

Num merece, estrupador. Mais?

Deixa, deixa eu pensar, tábem?

 

Só está saindo «estrupador» porquê? Porque fui violentada?

Claro, mulher, claro! Obviamente que é por causa disso. Isso é grave, o que te aconteceu é grave, é por isso... mas não precisas de ser um Hitler, não precisas de ser um Hitler nem precisas de ser a amante de Salazar, que é a tua fixação. Não é?

Me fizeram mal, entende?

Eu sei. Eu sei. Eu sei que fizeram...

Apesar de... quem me fez mal... está debaixo da terra, já não existe. Quem me fez mal já está debaixo de sete palmos, é assim meu amigo, ele tinha voz de quem tinha tudo na vida...

Que idade tinhas?

Dez anos. É pau para toda a obra. A gente saía galopando a cavalo, eu quase na cabeça do cavalo... eu sei que tu és uma pessoa não-religiosa, mas por eu falar de Deus não vai te afligir, pois não? Minha casa é fria, estou tremendo de frio.

Pois estás, chega aqui que eu aqueço.

Ru...

Diz, querida?

Obrigada por estares do meu lado.

Eu compreendo, eu percebo-te, não penses que não.

Aleluia, feijão no prato e farinha na cuia.

 Ela não pode cantar mais, a Sheila tem uma doença rara em que cantar, mesmo falar lhe faz «arder» a garganta.

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anonim@s do séc. XXIII



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