sábado, 31 de dezembro de 2022
quinta-feira, 29 de dezembro de 2022
Alguns desenhos para a Revista Estúpida nº9
segunda-feira, 26 de dezembro de 2022
A Musical Anthology Of The Orient -- Afghanistan
quinta-feira, 22 de dezembro de 2022
Djamília ou a Padeira da Guerra
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E Djamília gostava também de cantar; estava sempre a cantarolar qualquer coisa, sem se acanhar com a presença dos mais velhos. Tudo isto, sem dúvida, em nada correspondia à representação que se fazia na aldeia da conduta de uma nora em família.
Mas as sogras tranquilizavam-se pensando que, com o tempo, Djamília acabaria por tomar assento. Pois não é verdade que, enquanto jovens, todas são assim? Para mim, em todo o Universo, não havia nada de melhor que Djamília.
Sentíamo-nos muito alegres quando estávamos juntos. Podíamos então rir sem motivo e correr um atrás do outro, pelo pátio.
Djamília era verdadeiramente bela. Esbelta, bem feita, com cabelos lisos e esticados de longas tranças espessas, ela sabia pôr habilmente o seu lenço branco de seda, enviesando-o um pouco sobre a fronte, o que lhe ficava muito bem e valorizava a pele bronzeada e fresca do seu rosto. Quando Djamília ria, os seus olhos amendoados, de um negro azulado, iluminavam-se de juvenil ardor, e, quando ela se punha a cantarolar as cantigas maliciosas da aldeia, então nos seus belos olhos aparecia um clarão não virginal.
Muitas vezes tinham reparado como os djiguites, em particular os soldados que regressavam da frente, a requestavam. Djamília também gostava de brincar, mas o certo é que sabia dar para trás a todos os que pretendiam adiantar-se. Não obstante, esse assédio sempre me atormentava. Era ciumento dela, como os jovens irmãos são ciumentos das suas irmãs, e esforçava-me por importunar de qualquer maneira os moços que dela se aproximavam. Empertigva-me e olhava-os com tal malevolência, que era como se lhes dissesse: «Não armeis em engraçados. É a mulher de meu irmão e não julgueis que não haja alguém para tomar a sua defesa!»
Em tais momentos, com um à-vontade deliberado, surgisse ou não oportunidade, misturava-me na conversação e tentava meter a ridículo esses galanteadores. Mas, se não atingia os meus objectivos, então perdia todo o domínio e exibia claramente a minha hostilidade.
Os rapazes perdiam-se de riso.
-- Oh! reparem nisto! Custa a crer que ela seja a sua djené, é tão engraçado, e nós, que não sabíamos!
Caía em mim, mas o ultraje escaldava-me traiçoeiramente as orelhas e trazia-me as lágrimas aos olhos. Djamília, minha djené, compreendia-me. Contendo a custo o riso, punha uma cara séria.
-- Pensais que se pode maltratar à votade os djené? -- dizia ela, em tom de desafio, aos djiguites. -- É natural que seja assim em vossas casas, na nossa, não! Vamo-nos, meu kaini, e passem por cá muito bem.
Pavoneando-se diante deles, Djamília erguia arrogantemente a cabeça, dava de ombros com ar provocante e, partindo comigo, sorria em silêncio.
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páginas 28 - 31
em «Djamília» de Tchinghiz Aitmatov
edição Livro de Bolso, Portugália Editora
terça-feira, 20 de dezembro de 2022
segunda-feira, 19 de dezembro de 2022
MI com os avós
quarta-feira, 14 de dezembro de 2022
Postal da vida de um filho pródigo
segunda-feira, 12 de dezembro de 2022
sábado, 10 de dezembro de 2022
sexta-feira, 9 de dezembro de 2022
Eu como António Gancho
«Eu como António Gancho»
óleo sobre tela
60cm por 45cm
2022
ZMB
ILLUSTRAZIONE
Faço um poema e nasce uma cidade
invento o conteúdo geográfico das coisas.
Escrevo um nome e nasce Dublin
porque Dublin escrevi.
Se onde ponho um traço nasce uma via de ferro
então é um comboio em direcção a Roma.
Faço uma cidade e vejo-me um néon
ponho um anúncio e nasce cigaretta.
O italiano compõe o soar da palavra
eu dou uma entoação ao segredo do fim
Se há um horizonte para divulgar o Sol
há uma expectação para divulgar o coração
Se há um moinho para os lados de Perpignan
há Daudet a repousar o Sol numa cadeira
Se há Avignon, uma festa, a França, a Península Itálica,
Burgos e todas as catedrais espanholas
há uma cidade cheia de Sol a compor a direcção
Se o mar fica no fim
Lisboa fica ao pé de Lisboa fica súbito
como se o Tejo fosse um braço decepado
e um cacilheiro total o pano de uma bandeira
Pensa-se no rumor tribal que inunda todas as ruas
faz-se um boulevard duma avenida nossa
põe-se Lautréamont a inventar um prédio.
Há a loucura a iundar a parede
o relógio que
se primeiro bateu na cabeça de Poe
bate depois no sangue feito do conto
divulgado no livro
Lê-se o fígado do poeta no álcool derramado
sobre o desmaio de Ligeia
se esta tem as mãos ebúrneas nasce âmbar
nas mãos brancas duma conceição tripartida.
Ah, se onde ponho a imaginação nasce um lírio
derramem-me a história duma amante sobre a cabeça
pois sou o amante duma perversão absoluta.
Não rasgues o sentido do ombro aí onde tens o tatu do destino
e aí onde só a virgindade do teu androceu malino
pode factar a dimensão do totem a inundar de carácter
todo o céu africano.
Ah, nasça-me um árabe de luz com seu corpo moreno
contradizendo a logia
nasça-lhe uma idade de rosto sua idade gidiana
para compor a tenda com precaução indefinida.
Reveja-se o jeep inglês de Lawrence
que inundava o deserto duma celtidade absoluta,
o zénite solar sobre o bico da tenda.
Só a imagem dum rio pode dar ao poema
toda esta noção geográfica que o poema não tem.
Bramaputra
se nasceres no papel vou dizer à ondina do gnomo
que a floresta não constrói.
Ponho uma fonte a cantar na cabeça do gnomo
e o gnomo surge e nasce
como o ícone divulgado.
É rica a mitologia germana
para dar um sentido ao godo que de chifres na cabeça
usa um segredo quotidiano pendular
que é o pulso esquerdo de uma fêmea.
Põe-se-lhe a data
e o poema nasce
rubicundo
como a ponta dum lápis
que escrevesse no registo
o nome macho dum bebé.
I achieve
I finalize
eu acabo
eu finalizo.
É o poema terminado.
António Gancho
quarta-feira, 7 de dezembro de 2022
Bebê bebé
domingo, 4 de dezembro de 2022
sábado, 3 de dezembro de 2022
Mi com os pais
«Mi com os pais»
aguarela sobre papel tamanho A3
2022
ZMB
(A linha preta foi desenhada com marcador de preto permanente)
quinta-feira, 1 de dezembro de 2022
O Senhor Fumo
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O Senhor Fumo sempre foi duro com toda a gente, mas antigamente as suas opiniões e o seu modo de as dizer chocavam mais, as damas saíam da sala a chorar quando ele se punha a bitaitar, as mais velhas benziam-se e diziam «aquele filho da senhora sua mãe há-de arder no inferno, ora lá... pôr-se a dizer ao pai que haveria de fumar uma broca na tumba dele na tarde do seu funeral, não passa de um drógado, cruzes!»
Mas o que nem toda a gente sabe é que o Senhor Fumo sempre foi igualmente mau consigo próprio. E porquê? Havia uma explicação: ele considerava-se uma fraude. Uma fraude porque, dizia ele, nada era já real, verdadeiro e factual, passível de ser verificado. Uma fraude mas, se calhar, era apenas a sua consciência a lembrar o quanto havia mudado de opinião em relação a muitos assuntos, talvez se chame a isso maturidade mas o certo é que estava agora muito diferente dos tempos em que havia sido um jovem rebelde, daqueles que fazem por dar nas vistas pela excentricidade das suas atitudes em lugares de convívio público. Um exemplo concreto: chamavam-lhe Senhor Fumo porque costumava queimar haxe nos bares que frequentava e à vista de todos os noctâmbulos, depois fumava com orgulho, passeando o perfumo pelo meio da pista de dança ignorando todos os pedidos de partilha, ignorando até o perigo de o identificarem como marginal e lhe chamarem a polícia.
Vive agora quase só dessas memórias acontecidas, tornou-se um pouco indiferente ao correr do tempo porque, como dissera à sua mãe num almoço: «Hoje, a vontade existe mas o corpo já não aguenta. Às vezes, não me importava de fazer uma noitada como há vinte anos e voltar no primeiro autocarro da manhã às seis... já não tenho vida.»
O que Fumo quis de facto dizer mas não disse seria a verdade, seria contar que já não tem pulmões para fumar como antigamente, contar que, de manhã, os primeiros charros fazem-no tossir bastante, os lenços de pano salvam-no mas, começou ele em pensamento a compreender: já não tenho qualidade de fumo, tenho que reduzir, tenho de seguir o conselho do Gil e nunca fumar em jejum, ao acordar beber primeiro qualquer coisa quente, pôr um pão no bucho e só depois de bem acordado fumar o bóbe. e aí... ah!, ir ver estátuas egípcias ao museu e, depois, entrar num café com logradouro aberto até às duas da manhã, sonhar com a princesa e fazer o desenho desse desejado evento amoroso escrevendo para terminar um qualquer pormenor psicogeográfico como título para que, no futuro, ela possa ser minha de novo.
Mas tudo isto são apenas devaneios, impressões poéticas, ele sabe que a princesa não voltará. Ela um dia veio na forma de outra mulher, e Fumo viveu com ela duas temporadas. É inútil dizer que a culpa foi só dela. Ele sonhou com um pôr-do-sol a dois mas as únicas coisas dessa relação que sobraram para semente foram a sua tábua de passar a ferro, os seus olhos furibundos e os vampiros de Remon Chambi, porquê?!
Ele lembra-se porquê mas não o disse aos pais nesses almoços de regresso à casa paterna, tal e qual um filho pródigo, tal e qual: volta meu filho que estás perdoado!, não disse aos pais que uma noite, uns anos antes, chorara sozinho num jardim depois de ver um filme, onde um grupo de malucos institucionalizados havia arranjado maneira de ganhar dinheiro com o seu trabalho na Terapia Ocupacional. Sentira-se sozinho, desesperado e sem amigos no mundo. Porque na noite anterior à do filme ele, bêbado, insultara um gajo, que pensara ser seu amigo e que não levaria a mal a brincadeira estúpida. Acabara com um olho negro e com a frase «como vou eu arranjar dinheiro agora, como vou eu manter-me aqui, se todos me olham de lado e ninguém me dá trabalho?», porque acabara internado com delírios paranóicos, na Urgência tinha feito o possível para ser preso numa prisão em vez de no hospital, mas ninguém acreditou nele, julgaram-no doido, só um doido se apresentaria aos doentes em espera ao lado dele na Urgência como fornecedor gratuito de ganza, porque quando finalmente saiu da Casa Rosa, saiu reformado por invalidez.
Na altura, a depressão pós-internamento deixou-o sem vontade de nada, percebeu finalmente que tinha pés de barro, queria ser e desenhou-se leão ou lobo mas era apenas um gatinho alimentado a biberão e, por isso, não era ninguém e ninguém o queria como companhia, tinha andado anos a enganar-se, tinha batido no fundo. Os rabiscos que começou a desenhar não faziam sentido mas desenvolveu uma técnica de desenho: fazer e fumar um charro olhando uma folha branca de papel, deixar cair a cinza sobre a folha e desenhar aí um ponto, às vezes uma linha, repetir o processo todo e, depois, rodar a folha até ver aparecer nessas marcações de tinta um princípio de rosto, a fulguração de um corpo humano ou de um animal atávico, um dinossauro que lesse livros e lhe sugerisse uma frase que colasse todos os cacos da sua consciência, que desse relevância e explicasse o seu dia-a-dia.
O Senhor Fumo chama a esses riscos de desenhos marados, porque surgem muitas vezes do nada, do vazio e do branco da página mas que por captomancia divinatória se transformam em slogans com conteúdo pertinente no seu microcosmos.
O Senhor Fumo não é o pintor ZMB, é apenas mais um alter-ego zeligiano, uma construção, alguém que vos apresenta uma versão distorcida do seu mundo nesta zine.
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Texto de Claudio Mur para uma futura zine da Opuntia Books
http://opuntia-syndrome.blogspot.com/
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