quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

O Senhor Fumo

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O Senhor Fumo sempre foi duro com toda a gente, mas antigamente as suas opiniões e o seu modo de as dizer chocavam mais, as damas saíam da sala a chorar quando ele se punha a bitaitar, as mais velhas benziam-se e diziam «aquele filho da senhora sua mãe há-de arder no inferno, ora lá... pôr-se a dizer ao pai que haveria de fumar uma broca na tumba dele na tarde do seu funeral, não passa de um drógado, cruzes!»

Mas o que nem toda a gente sabe é que o Senhor Fumo sempre foi igualmente mau consigo próprio. E porquê? Havia uma explicação: ele considerava-se uma fraude. Uma fraude porque, dizia ele, nada era já real, verdadeiro e factual, passível de ser verificado. Uma fraude mas, se calhar, era apenas a sua consciência a lembrar o quanto havia mudado de opinião em relação a muitos assuntos, talvez se chame a isso maturidade mas o certo é que estava agora muito diferente dos tempos em que havia sido um jovem rebelde, daqueles que fazem por dar nas vistas pela excentricidade das suas atitudes em lugares de convívio público. Um exemplo concreto: chamavam-lhe Senhor Fumo porque costumava queimar haxe nos bares que frequentava e à vista de todos os noctâmbulos, depois fumava com orgulho, passeando o perfumo pelo meio da pista de dança ignorando todos os pedidos de partilha, ignorando até o perigo de o identificarem como marginal e lhe chamarem a polícia.

Vive agora quase só dessas memórias acontecidas, tornou-se um pouco indiferente ao correr do tempo porque, como dissera à sua mãe num almoço: «Hoje, a vontade existe mas o corpo já não aguenta. Às vezes, não me importava de fazer uma noitada como há vinte anos e voltar no primeiro autocarro da manhã às seis... já não tenho vida.»

O que Fumo quis de facto dizer mas não disse seria a verdade, seria contar que já não tem pulmões para fumar como antigamente, contar que, de manhã, os primeiros charros fazem-no tossir bastante, os lenços de pano salvam-no mas, começou ele em pensamento a compreender: já não tenho qualidade de fumo, tenho que reduzir, tenho de seguir o conselho do Gil e nunca fumar em jejum, ao acordar beber primeiro qualquer coisa quente, pôr um pão no bucho e só depois de bem acordado fumar o bóbe. e aí... ah!, ir ver estátuas egípcias ao museu e, depois, entrar num café com logradouro aberto até às duas da manhã, sonhar com a princesa e fazer o desenho desse desejado evento amoroso escrevendo para terminar um qualquer pormenor psicogeográfico como título para que, no futuro, ela possa ser minha de novo.

Mas tudo isto são apenas devaneios, impressões poéticas, ele sabe que a princesa não voltará. Ela um dia veio na forma de outra mulher, e Fumo viveu com ela duas temporadas. É inútil dizer que a culpa foi só dela. Ele sonhou com um pôr-do-sol a dois mas as únicas coisas dessa relação que sobraram para semente foram a sua tábua de passar a ferro, os seus olhos furibundos e os vampiros de Remon Chambi, porquê?!

Ele lembra-se porquê mas não o disse aos pais nesses almoços de regresso à casa paterna, tal e qual um filho pródigo, tal e qual: volta meu filho que estás perdoado!, não disse aos pais que uma noite, uns anos antes, chorara sozinho num jardim depois de ver um filme, onde um grupo de malucos institucionalizados havia arranjado maneira de ganhar dinheiro com o seu trabalho na Terapia Ocupacional. Sentira-se sozinho, desesperado e sem amigos no mundo. Porque na noite anterior à do filme ele, bêbado, insultara um gajo, que pensara ser seu amigo e que não levaria a mal a brincadeira estúpida. Acabara com um olho negro e com a frase «como vou eu arranjar dinheiro agora, como vou eu manter-me aqui, se todos me olham de lado e ninguém me dá trabalho?», porque acabara internado com delírios paranóicos, na Urgência tinha feito o possível para ser preso numa prisão em vez de no hospital, mas ninguém acreditou nele, julgaram-no doido, só um doido se apresentaria aos doentes em espera ao lado dele na Urgência como fornecedor gratuito de ganza, porque quando finalmente saiu da Casa Rosa, saiu reformado por invalidez.

Na altura, a depressão pós-internamento deixou-o sem vontade de nada, percebeu finalmente que tinha pés de barro, queria ser e desenhou-se leão ou lobo mas era apenas um gatinho alimentado a biberão e, por isso, não era ninguém e ninguém o queria como companhia, tinha andado anos a enganar-se, tinha batido no fundo. Os rabiscos que começou a desenhar não faziam sentido mas desenvolveu uma técnica de desenho: fazer e fumar um charro olhando uma folha branca de papel, deixar cair a cinza sobre a folha e desenhar aí um ponto, às vezes uma linha, repetir o processo todo e, depois, rodar a folha até ver aparecer nessas marcações de tinta um princípio de rosto, a fulguração de um corpo humano ou de um animal atávico, um dinossauro que lesse livros e lhe sugerisse uma frase que colasse todos os cacos da sua consciência, que desse relevância e explicasse o seu dia-a-dia.

O Senhor Fumo chama a esses riscos de desenhos marados, porque surgem muitas vezes do nada, do vazio e do branco da página mas que por captomancia divinatória se transformam em slogans com conteúdo pertinente no seu microcosmos.

O Senhor Fumo não é o pintor ZMB, é apenas mais um alter-ego zeligiano, uma construção, alguém que vos apresenta uma versão distorcida do seu mundo nesta zine.

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 Texto de Claudio Mur para uma futura zine da Opuntia Books

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