A chave
Cinco horas da tarde. Clemente está de folga. Esteve a ouvir Repas Froid do Ghédalia Tazartès e agora decidiu ir ao café. Pega no «Este país não é para velhos» do Cormac McCarthy. Estava à venda dentro de uma cesta de livros na janela duma lojinha da zona onde uma senhora ganha a vida passando a ferro. Pega nos auriculares do telemóvel, num caderno e na caneta. Está sol. As duas mesas da esplanada tem as cadeiras levantadas. «Não está em uso», pensa Clemente, «vou lá para dentro.» Entra e olha para a sua mesa habitual. Está vaga. Olha para o balcão e pede ao patrão um café e um copo com água. Senta-se. Olha em frente e vê uma mulher de pé junto a uma mesa. Come um bolo de arroz de costas para toda a gente e virada para a janela com o estore baixado. Clemente tem a sensação de que a conhece de algum lado ou momento no passado. Mas ela não olha para ele, ou melhor, parece que o viu e se virou de costas para ele não a ver. O patrão traz o café à mesa de Clemente e recebe a moeda de pagamento. Clemente continua intrigado, quem é ela? Ela vem ao balcão, paga com o telemóvel, sai porta fora com o bolo num guardanapo, Clemente não chegou a cruzar o olhar com ela, não a reconheceu, apenas tentou ver se ela entraria nalgum carro mas ela sai pela lateral e desaparece. Clemente faz uma ideia do quem ela poderia ser mas não tem a certeza. Ela, pelo seu lado, é como se dele tivesse fugido. Clemente acaba de ver um fantasma.
Clemente chama fantasmas a estas pessoas que lhe aparecem aleatoriamente no seu quotidiano mais banal e que ele pensa que conhece mas não sabe donde, pessoas que dele parecem fugir.
«Olha, deve ser alguém a quem eu fiz mal, eu ou as minhas palavras...»
Clemente pensa nisto e decide ligar ao empresário para ele lhe vender cinco euros de «paz de espírito». Mas o empresário diz-lhe antes de desligar a chamada: «Para ti, estarei sempre longe, até sempre!»
Clemente fica fodido e fica a pensar: «olha, outro que me cancela, mas que fiz eu? Terei tocado nalguma nota que vibrou de mais e partiu algum vidro? Mas, se assim for, ninguém me responde, não tenho valor no mercado das opiniões, cancelam-me silenciosamente, fecham-me as portas, ignoram-me, condenam-me à inexistência, vou fazer um filme explicativo com pássaros bumerangue. Com banda sonora e sobreposição de imagens à Eisenstein, e comboios, avenidas de paralelo e passeios calcetados, árvores enfezadas e pássaros raquíticos, mar, traineiras rachadas a meio enferrujando desde o tempo do Cavaco, fantasmas, sereias e gaivotas. Para conseguir os direitos de uso de imagem e som de outros artistas, jogarei a cartada de mestre, eheheh: os bons valores cristãos do filho pródigo que tem de mudar de autocarro da próxima vez, é... e aplico na pós-produção o filtro Ghosting que transforma as pessoas em movimento em fantasmas em movimento eheheh».
Clemente pega no caderno e começa a escrever a voz-off de uma possível cena a filmar:
Quando desembarquei no cais da estação de comboio e comecei a descer a avenida foi como se eu fosse Moisés seguido de cinquenta e um camelos carregando os meus pertences, fugindo dos egípcios, ou seja, fugindo do mundo, foi como se atravessasse o mar Vermelho e as águas se abrissem: todas as pessoas me davam a passagem ou desviavam-se de mim. Ao fundo do passeio, antigas namoradas entravam por portas esconsas escondendo-se. Um cego, cheirando-me a cinquenta metros de distância, sentindo o cheiro da peste, atirou-se para o meio da rua e caiu dentro duma tampa de saneamento aberta. (De nada valera o presidente andar por ali, de vez em quando, a calcetar a rua. A tampa estava aberta porque os funcionários estão em greve ao bagaço e sem bagaço não há trabalho.) O imperador desfilava nu pelo passeio e, claro, nada era com ele, nada se passava, eram tudo mentiras dos jornalistas, ele vinha na minha direcção com aquele ar empinado, boca aberta a comer mosquitos em vez de santinis, com as mãos a tapar o pirilau, e pareceu mesmo ser o único que me queria dizer coisas, mas logo veio um ciclista que quase nos atropelou e fugiu agoniado quando me viu, deixou a bicicleta no passeio e disse: «Podes ficar com a bicicleta, e se não ficares contente ainda te ofereço uma trotinete!»
Clemente ri-se, pára de escrever, lê o que escreveu e pensa que a chave do texto se extraviou, «acho que mudaram a fechadura, cancelaram-me.» Clemente sente-se culpado, é culpado. Mas de quê? O imperador nu pareceu que ia opinar mas falou falou e acabou a dizer nada.
Claudio Mur
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