quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Apresento-vos um velho defunto e careta chamado Sousa

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 O golpe

Descobri na minha prima uma atenção e uma disponibilidade para comigo falar. Com ela, consigo falar sem receio da minha vida e na minha família foi a primeira a saber que a Raíssa e eu tínhamos já desde o ano passado planos para vivermos juntos. Descobri igualmente que ela gosta de ler os meus textos, até agradeceu eu dar a conhecer a minha vida aos demais. Para ela é importante que o primo esteja bem mentalmente e que esteja seguro e bem acompanhado. Não julga o meu comportamento mas dá a sua opinião e faz as perguntas que acha necessárias à compreensão do que eu lhe conto.

Diz-me ela acerca das minhas férias com a Raíssa:

Continuas bem na companhia da tua amiga. E também ela está a adaptar-se a uma nova forma de vida. Curiosos os episódios provocadores dos dois homens com a tua Raíssa na estação. O povo do Porto ou é muito desbocado ou a beleza dessa menina deslumbra de tal modo que, em vez de receber uns belos piropos e elogios, acolhe propostas deselegantes e mal intencionadas?

Enfim, primo, muitas coisas giram ao contrário e muitos doidos constroem uma cidade. Continua com a tua escrita e vai dando notícias, ok?

Beijinhos e saúde

Eu respondo-lhe que a minha amiga tem muito carisma e que os palhaços destas bandas gostam de comprar o carisma.

Esta troca de palavras seria impossível com os meus pais ou as minhas irmãs, já os meus cunhados olhariam de lado, tossiriam, tiravam mais um bife grelhado da travessa para o prato e talvez pusessem um pouco de molho em cima. Isto ou diriam de gás o que lhes vai na alma porque, quando se trata de desconsiderar o familiar que não foi humilde quando o quiseram ajudar sem ele pedir, dizem sem filtros:

— O que se pode esperar de uma sopeira? É burra!

Pois é minha prima leitora, tu que me ouves de bom coração e que eu não quero perder como amiga de sangue, tu de quem ocasionais leitoras dos meus textos disseram seres tu uma heroína e me aconselharam a manter por ti o carinho que não fui capaz de manter com elas, a ti digo: este familiar que disse a frase em cima referia-se à minha antiga companheira. Ele foi naquele momento a voz da minha família, apenas a minha irmã lhe disse para não falar assim. Eu fiz cara feia e calei-me. Já me tinha separado há dois ou três anos dessa minha companheira, e já não havia honra a defender, eles nunca gostaram dela mas faziam todos jogo duplo: quando eu me chateava com ela e apanhava o autocarro para vir dormir em minha casa, quando chegava a casa já toda a gente sabia da chatice, nunca deram importância aos meus sentimentos, para eles eu era apenas o irmão, cunhado e filho que tinha saído de um internamento psiquiátrico e que conhecera uma mulher, com a qual renegava a sua própria família pois vivia mais em casa dela que na sua, e a quem tratava mal. Como ela chorava muito e chorava porque pedia e eu dizia que não dava, porque não queria ou não podia, ela chorava e dizia que eu não gostava dela e que tinha outra, era nesta altura que eu me vinha embora para casa da mamã e do papá, e chegava e a mamã já sabia de tudo, já tinha até prometido dar à minha companheira o que ela me tinha pedido a mim. Era este o jogo-duplo: iam fazendo caridade com ela porque eu era mau com ela ao que parece, fazia-a chorar e três mulheres na minha casa não gostavam de ver uma mulher chorar, eu sabia que a estavam a estragar, a dar-lhe mimo e a fazer-lhe ver que a preguiça compensa, tanto é que deixou de trabalhar e foi relaxando a procura de nova ocupação, se eu não lhe dava a minha mãe dava por mim porque ela dizia-lhe «ai dona eu gosto muito do seu filho». As minhas irmãs tinham-lhe tirado a pinta e só não mo diziam por causa da solidariedade feminina e para os meus cunhados ela era apenas uma sopeira que de facto gostava de mim. Quer dizer, amou-me nos primeiros meses e eu amei-a e, depois, quando vieram as contas para pagar e eu começo a ter de arranjar um emprego e acabo a perdê-lo porque ela me liga a cada cinco minutos se eu não atender a sua chamada em local de trabalho... é natural que eu comece a gostar menos dela e a olhá-la de um modo diferente, para ela eu tenho logo outra saia de roda. E começa o loop: zanga, autocarro, casa da mamã, conversa com a mãe anunciando o fim, duas semanas de intervalo, saudades, ela que sabe como me cativar cativa-me, casa da companheira, cama e paz feita.

Foi assim durante alguns anos, eu às vezes chegava a pensar que a única coisa de bom que o Estaline fez foi fazer planeamento a cinco anos, dizia eu rindo para mim: Estou num plano quinquenal com a Sanea, e ou vai ou racha.

Rachou porque a Sanea se tornou estúpida. Ela nunca foi burra. Ela era uma mulher activa, sabia trabalhar, era mulher oficial de limpeza em várias empresas de trabalho temporário, fazia umas horas aqui num banco, ali num escritório, acolá numa escola. Desleixou-se porque achou que não precisava, ou eu ou a minha minha dava-lhe, só precisava do pitch certo de voz e da lágrima pronta. Acontece que a minha mãe se fartou, a minha mãe começou a ver que não era o seu próprio filho que procedia mal e negou-lhe, a Sanea, ajuda. Ela passou-se dos carretos e insultou toda a minha família. E eu só tive uma coisa a fazer: saí do quarto que partilhava com a Sanea nessa tarde e liguei ao meu pai, pedi-lhe que mudasse o número de telefone da minha mãe e que eu ia arranjar um novo quarto para mim, a Sanea seria passado para mim. Demorei três dias a deixar Sanea para sempre: eu defendo as mulheres que amo mas se elas não me respeitam ou faltam ao respeito à minha mãe e restante família só porque se lembram... isso é o fim de tudo.

Serve tudo isto para comparar o passado com o presente e digo-te prima, para que eu próprio me estruture e, ao escrever, vá pensando no assunto e comece a tirar conclusões e futuras acções. Não o escrevo para me queixar e passar o problema para quem me lê, já não quero matar o leitor, quero procurar o caminho escrevendo-lhe os sobressaltos, as pedras nas quais tropeço, os autocarros nos quais entro, às vezes está-se na paragem e entra-se distraído no primeiro que aparece e, mesmo indo dar ao local errado na hora errada, consigo tirar prazer do amor que conheci nessa viagem. Foi assim com Sanea, é assim com a Raíssa com a qual viajo de vacanças neste momento. É Domingo à tarde. Raíssa vai sair para ir à Vendana falar com o Cá sobre a venda do carro que ele lhe ofereceu. Ela quer vender o carro porque quer voltar para o Brasil. Tem falado com a mãe pela videochamada e esta disse-lhe que conhece uma pessoa num hospital lá na terra dela que lhe arranja um lugar de assistente de enfermagem.

— É tudo o que eu quero, voltar para o pé da minha família, arranjar um emprego na área que gosto, renovar a carta de condução, vou dizer àquele estrupício que quero vender o carro porque ele, Cá, nem me deu tempo de o conduzir porque a minha carta de condução precisa de ser renovada, e eu sei o que ele passou para me oferecer o carro, mas ele fez-me mal, e ainda agora, quando fala comigo, fala sempre com um tijolo na mão.

— Ele fala assim mas ele ainda gosta de ti.

Digo eu e venho para o meu quarto. Raíssa tem o hábito de comer na cama. Sou eu que cozinho para os dois e como sozinho na sala. Ela está ocupada a usufruir da minha internet e a ver o seu filme de terror em dobragem de voz brasileira, às vezes nem sabe o nome dos filmes, e as vozes são irreais, os filmes não ficam atrás, terror ou suspense e tudo o que meta medo e crime, já vi com ela um tubarão de cinco cabeças abocanhar os veraneantes num iate, e se não tivesse visto as cinco cabeças do tubarão não imaginaria que algum guionista o pudesse inventar. Por isso como sozinho e ela quando tem fome, levanta-se e vai aquecer o taparuere, volta para a cama e come. Depois volta ao filme, ou ao face ou ao jogo de telemóvel. Não tenho televisão para ela ver a tevê brasileira mas ela vê tudo online. E eu como sozinho e começo nestas vacanças a sentir alguma frustração: afinal estou a viver na mesma casa com uma mulher, que abriguei num momento em que ela não tinha onde dormir, e ela só dorme, come, fuma, vê computador ou telemóvel, nem novo emprego procura e comigo pouco fala! Tem uma lista de números há duas semanas em cima da mesa de cabeceira, números para ligar para emprego e ligou uma vez e disseram-lhe que só no dia seguinte lhe davam a resposta e no dia seguinte não lhe deram resposta nenhuma e os outros números continuam sem ser marcados há duas semanas porque ela está indignada porque a doutora da empresa não lhe respondeu? E os dias passam e ela sem ser activa, fazendo durar o dia, dourar a pílula, amanhã, não me pressione, olhe, quero fazer o anúncio de venda do carro, quero imprimir este leãozinho, ponho o ano, e em baixo: Vende-se, mais o número para me ligarem.

Eu penso: atão, tu vais pôr o carro que o Cá te deu à venda, vais retirar o carro da garagem dele e colocá-lo junto ao café que ele frequenta com um cartão dizendo Vende-se. Um carro sem seguro. Boa sorte e boa lata a tua, penso eu, mas tu precisas de dinheiro para a viagem de avião, eu compreendo, bem dizes tu que a tua mãe está a fazer das tripas coração para falar com o prefeito lá do sítio e ele te pagar a viagem de regresso, mas tu tens que esquecer enviar a televisão e o sistema de som que te ficou do divórcio com o imperador, só em correio gastavas um balúrdio, tens ao menos a caixa da televisão?

— Eu arranjo, me acompanhas ao metro?

— Sim, vê se trazes uma mala com mais roupa, aqui em casa cabe mais uma mala, a outra roupa que falta metes nas duas malas que tens e combinas com a Fa, pois ela disse que as guardava lá no sótão do trabalho dela.

— Tá ok.

Despeço-me dela e venho para casa. Hoje estou com vontade de pintar. Comecei um novo quadro baseado num desenho ao qual chamei de Al Capone. Este desenho foi um desafio que me fizeram há anos, prova-me que sabes desenhar e desenha o Al Capone. Eu desenhei, mostrei e fui recompensado com uma pedra de ganza da boa, gostaram do desenho e, não o querendo comprar, deram-me ganza e pagaram-me o café, reconheceram desta maneira o meu valor nesse desenho. Neste desenho que estou a transpor para tela. Para o Al Capone de chapéu, fumando charuto e bebendo uísque, para o vice que lhe lê as notícias no jornal, para o homem dos livros que lhe faz as contas e as regista e também para aquele que conta o dinheiro.

Com tudo isto, vou pensando: logo à noite, ligo à minha mãe para ela tentar saber porque razão a Raíssa só está a receber setenta e quatro euros de rsi, mesmo não tendo bens e vivendo de favor em casa do Cá que a acolheu na Vendana após o divórcio, e agora comigo porque ele fartou-se de ela não lhe dar cona, e eu a acolhi.

— É como te digo, mãe, eu acolhi-a por caridade, ela estava para ficar na rua, e eu já a conheço há mais de quatro anos, e ela é minha amiga, carinhosa, não me grita, dá-me alegria.

— Ela sabe fazer pataniscas?

— Sabe sabe, minto eu mas digo a seguir a verdade: olha hoje Domingo, estivemos a fazer limpeza, a casa agora está um brinco, o senhorio aumentou-nos a renda em sessenta euros e quem cozinha arroz para um cozinha para dois, quem come dois pedaços de frango come só um...

— Não é bem assim mas tu é que sabes. Eu amanhã de manhã ligo para uma colega da segurança social, dou os dados dela e tento saber o porquê e se ela pode reclamar para vir receber o valor normal de rsi: os 189 euros ou lá quanto é...

— Está bem mãe, obrigado, depois se for preciso ela ir falar com alguém à segurança social, se for preciso, eu vou mesmo com ela.

— Está bem, até amanhã.

— Até amanhã mãe.

Desligo e Raíssa fala:

— Que é isso das pataniscas, que é isso?

— É como rissol, é bacalhau em vez de carne e com ovo e farinha.

— Mas eu não sei fazer isso não!

— Eu disse isso a ela, mas nem sei porque ela se lembrou das pataniscas, ela não te conhece, deve ser a desconfiança de mãe com nora.

E venho para o meu quarto, estou aborrecido com Raíssa, porque ela não pôs anúncio de Vende-se Carro nenhum quando foi esta tarde à Vendana, não trouxe mala nenhuma de casa do Cá, esteve de conversa furada em troca de galhardetes, ele disse que ela era uma tristeza e ainda lhe ofereceu um maço de cigarros fajuto. Para complicar a minha disposição, ela pediu-me para comprar ganza para ela e não quis comprar a meias comigo, deu-me um charro e eu disse: isto fuma-se e depois não há mais.

Mas não disse nada, fumei o seu presente e deitei-me a dormir.

De manhã, acordo e vou levantar dinheiro e compro a minha dose. Venho para casa. Ela continua a dormir. São duas da tarde. A minha mãe liga.

Diz que falou com a colega, que lhe disse que ela está a receber normalmente e que o seu processo está a ser gerido pela assistente social na Rua da Esperança, nº 87, e que não é possível fazer marcação por causa da Covid, mais vale irem lá directamente informarem-se, toma nota do nome da assistente social, olha que fecha às quatro!

— Está bem, obrigado mãe, mas o que é isso de receber normal? É normal isso de só receber setenta e quatro euros?

— A minha colega não deu pormenores, aponta o nome.

— Está bem mãe, obrigado.

Desligo. Raíssa continua a dormir. Não me apetece pintar, tenho de ir comprar mortalhas, tenho de ir ao talho, decido ir à Rua da Esperança fazer uma marcação para a Raíssa lá ir nos próximos dias. Estou-me a sentir um nabo, eu a trabalhar para ela e ela a dormir. E o que ela me é?, apenas uma amiga, já me deu cama mas há muito que isso passou para segundo plano, é certo que agora não me dá nada, nem eu peço. Gosto da sua companhia aqui em casa, ela distrai-me dos problemas com os vizinhos aqui na ilha. Mas vê só: tu a trabalhar para ela e ela a dormir. Vou lá e venho e ela a dormir.

Chego à Rua da Esperança às três e meia. Falo com a segurança, pergunto-lhe se é possível fazer uma marcação para uma amiga por causa do rsi, digo-lhe que a minha mãe já trabalhou na SS e que me conseguiu fazer saber o nome da assistente social da Raíssa e quando ela poderia vir falar com ela para perguntar os seus porquês e reclamar pelo aumento da prestação social. Ela dá-me os números de telefone directos mas diz que a telefonista está de férias, diz que a Raíssa pode vir cá na próxima Segunda, o dia em que a assistente retorna de férias.

Eu agradeço e venho-me embora mais contente. Agora só falta comprar mortalhas no sítio habitual.

Depois de sair da tabacaria e quase a chegar ao talho, a minha mãe telefona-me, diz-me que uma colega da SS lhe ligou a propósito de um socorrido da minha mãe na paróquia, porque a minha mãe embora reformada da SS faz trabalho social de apoio ao pobres da paróquia e, às vezes, as técnicas da Segurança Social telefonam-lhe, a minha mãe faz a ponte entre a SS e os pobres, agiliza pagamentos de rendas e de água e luz, vales de compras e outros apoios. Diz-me ela enquanto eu caminho para o talho:

— Essa colega estava a pedir-me um favor e eu voltei a falar sobre o caso da tua amiga, ela disse-me que a colega de manhã também lhe podia ter dito mas que não viu com cuidado a informação. Sim senhora, está a morar na rua tal na Vendana mas está a receber o valor correcto desde Fevereiro. E como ela mudou a morada para lá, o seu processo já não está na assistente da Rua da Esperança, ela está agora sem assistente social atribuída, por causa das complicações da covid, ela mais dia menos dia recebe uma convocatória.

— Mãe, como ela se divorciou em Dezembro... e depois mudou a morada para a Vendana, é possível que ela esteja a receber em duas contas diferentes, só pela hipótese de a conta ainda estar conjunta com o ex-marido, por erro do sistema informático ou coisa qualquer do género?

— Não, esta colega com quem eu falei agora à tarde diz que não, ela recebe certo desde Fevereiro. Agora tu vê lá, já foste enganado no passado...

— Obrigado mãe, eu resolvo.

Desligo e continuo o caminho para o talho. Chego à porta. Pergunto se posso e dizem para eu entrar. Peço dois frangos cortados aos bocadinhos. Pago cinco euros e cinquenta. Caminho para casa a pensar: então, ela enganou-me este tempo todo, mostrou o papel em como recebia setenta e quatro mas esse papel tem a data de Novembro. E ela fez a reclamação e recebe o valor correcto desde Fevereiro. Enganou o Cá que desconfiava que ela recebia mais do que o que dizia, mostrou-lhe o papel para provar e a mim disse-me que só me podia dar trinta euros para ajuda da renda, e eu a bancar comida, tabaco, cerveja uma vez por semana porque ela tem bebido pouco, e mais ganza, e a ajudá-la a escrever a reclamação para a multa do transporte público... e ela a receber cento e oitenta e nove, com dinheiro para pagar vinte euros de passe social de transporte público e não ter mais problemas com os fiscais, quando chegar a casa vou confrontá-la!

Digo-lhe tudo isto e mais, digo-lhe: — Eu não te pedi vida de cama, só te pedi alegria, companhia e sinceridade e tu mentiste-me, pedi-te quarenta euros por causa do aumento de renda e tu disseste que só podias dar trinta, e eu perdoei-te as dívidas anteriores, não te cobro nada pela água e a luz e tu afinal estás a receber a totalidade, não há nada a reclamar na SS. No próximo dia 23, vais-me dar sessenta euros de renda mais dez para a água e a luz. Concordas?

— Então eu vou ver se arranjo um sítio para eu me ficar.

— Pois vê se arranjas, e vê se arranjas antes de o senhorio aparecer. Podes sempre dar-me mais quarenta por este mês que passou e eu passo um pano no assunto e esqueço tudo, e no dia 23 pagas os setenta, tu só entendes a lei da bala!

Como ela não responde e continua no jogo decidida a ignorar o problema, pensando que eu mudo de ideias e não irei fazer um acto de descaridade, venho para o meu quarto e desligo o hotspot de internet. Assim, ela sem o jogo no telemóvel, sem o filme no computador e sem televisão para assistir, fuma um cigarro, fuma dois e começa a achar a situação pouco confortável, enquanto eu volto ao quadro do Al Capone para pintar um pouco mais e fazer um compasso de espera, ela acaba por dizer:

— Ainda comigo ao multibanco.

Saímos, ela na caixa do banco retira a consulta de movimentos, tem um saldo de dezoito euros e nos dez movimentos registados no papel, verifica-se que gastou quase duzentos euros.

— Como vês tens saldo.

— Eu nunca fiz uma consulta destas, não sabia...

— E não reparavas no dinheiro que levantavas?, pensas que caía do céu?

— Eu apenas levantava.

Eu nada digo. A Sanea era estúpida mas não burra. A Raíssa é burra e não estúpida. Ou tentou enrolar-me ou então é mesmo inocente. Deve mesmo ter pensado que o dinheiro lhe crescia na conta como no tempo do marido imperador e em que o banco tinha um fundo sem fim.

Ela agora diz que vai à Vendana falar com o Cá.

— Não tragas mala nenhuma. Quero uma resposta às minhas condições até amanhã à noite.

Ela não responde e dirige-se para a estação de metro e eu venho para casa. Venho procurar na internet novo alojamento para mim. Estou farto. A renda tornou-se cara. Preciso de novas pessoas. Antes fosse ela estar a mentir e saber que recebia já a totalidade do rsi, e não ser uma inocente que levanta dinheiro sem saber donde ele nasce, sem dar valor ao dinheiro e só se preocupar com alguma coisa a meio do mês, às vezes ao fim da primeira semana, quando a nascente seca por excesso de vasilhame enchido. Antes ela fosse mentirosa e não burra que não sabe a quantas anda. Ando eu a tentar ajudar uma pessoa, a tentar levantá-la do chão e todo o esforço é para nada, é em vão.

Mas uma questão fica: eu sempre disse aos vizinhos e ao Giuliani que a Raíssa era e é apenas minha amiga e nem lhes disse, apenas o senhorio sabe, que ela está há mais de um mês a viver de facto aqui, e apesar de não haver cama e ela ser uma amiga pela qual tenho carinho e alguma amizade e companheirismo de jornadas de diversão à noite... perco-me... tudo isto pensado não sei no que prefiro acreditar, se ela sabia e deu o golpe ou se foi apenas sempre burra e inocente. Se ela fosse simplesmente mentirosa, aí eu tinha algo que odiar. Se for apenas uma gaja a ficar lélé, aqui eu começo a ter desamor e a desprezar.

Quando venho da estação de metro onde a deixei, no caminho encontro o Nuno. Ele vem na minha direcção junto com um jovem da sua idade, devem vir da praia porque vêm em tronco nu. Ao cruzar-me com eles, olho-o nos olhos e digo:

— Atão Nuno, estás bom?

— Ah olá tu és o Sousa não és?

— Sim sou eu. Então está tudo bem?

— Sim olha tenho uma filha, deixa-me mostrar-te a foto. Tem três meses. Vives aqui?

— Sim, moro perto. E tu?

— Moro com o meu pai aqui perto no bairro, ele está tão chatinho...

— Mas ele está bem?

— Sim, fez um transplante renal.

— Olha tudo de bom para vocês e diz ao teu pai que está tudo bem entre nós.

— Sim, tu tinhas umas questões com ele...

— Mas é passado, diz-lhe que está tudo bem, abraço.

— Aperta aí!

Despeço-me do Nuno e ao chegar a casa são sete da tarde, ponho a tocar no computador uma lenda do funana: Bitori de Cabo Verde. Fumo um charro. Penso em Raíssa e no que fazer com ela se ela não aceitar as minhas condições e ao mesmo tempo não sair daqui, ser essa a resposta que ela me vai dar amanhã, porque já sei que ela não vem dormir a casa, ela não gostou das minhas palavras e no entanto acredito que ela me compreende, foi a nossa segunda discussão em mais de um mês de convívio, na primeira acusei-a de ser como eu: um bicho do mato e que era natural que eu agora estivesse mudado, afinal deixei de ser o amigo Ru com quem ela vinha divertir-se bebendo, fumando, ouvindo música e esquecendo primeiro o imperador e depois o Cá. Eu deixei de ser esse amigo colorido chamado Ru para voltar a ser o salvador de mulheres perdidas e abandonadas chamado Sousa, o Sousa que resgatou Sanea da violência doméstica, o Sousa que abriga Raíssa. Se ela quiser ficar sem aceitar os meus termos eu forço a saída daqui. Digo ao senhorio e saio quando arranjar sítio para mim e ela sai comigo mas não vai comigo. Dir-lhe-ei adeus.

Vou jantar e depois tomo um café, passo mais de uma hora a procurar na net quartos, ligo para dois dos mais baratos, dizem-me que já estão alugados, a três outros envio mensagem com pedido de informação por email.

É só esperar. Fumo mais um charro, saio para o café e ela telefona-me às nove da noite estou eu já no café a ver um filme do Dirty Harry:

— Olá

— Olá

— Olhe, está ficando tarde para eu entrar em casa, a Fa me ligou, vou até lá.

— Como correu na Vendana?

— O mesmo, continua tudo igual.

— Onde vais dormir hoje.

— Não sei. Amanhã eu te ligo.

Digo está bem e desligo.

O Te fala-me que a bófia fez o café na semana passada. Entraram três paisanos e perguntaram à empregada se ele, T com cadastro mas limpo actualmente, vende droga no café. O Te diz que a empregada disse-lhes que não se apercebera de nada, mas nada disse ao Te, informou a patroa e foi ela que disse ao Te.

— Eles andam aí, andam a estudar os locais, andam investigar as pessoas, mesmo a mim que tento hoje ajudar toda a gente e quando precisei ninguém me ajudou.

— Tens razão Te. Olha vou até casa, boa noite.

Ao chegar a casa, reparo que não tenho sono. Decido escrever uma carta por email à minha prima, estruturando a história deste período de férias e o clímax a que se chegou. Quando termino, revejo rapidamente, altero algumas coisas elucidando aqui e ali e envio. Ainda assim, o sono não chega. É agora uma da manhã. Ponho na rádio clássica mas uso a rádio online porque o meu rádio-leitor de cedês avariou e agora só posso ouvir rádio pela net e cedês no leitor do computador. Vejo as notícias dos jornais online. Ouço um programa de jazz e decido ler para ganhar sono, vou buscar à estante a antologia do Roger Wolfe. Folheio-o e decido ler alguns poemas e gravar a récita. É o que faço depois de preparar um café na cozinha e comer uma torrada com manteiga.

Roger Wolfe merece atenção dos leitores, é uma voz contemporânea e diz coisas verdadeiramente importantes no dia-a-dia de um ser desviante.

Quando acabo de ler alguns poemas da antologia, fumo um charro, o último porque me vem o sono. São quatro da manhã.

Acordo por volta do meio-dia. Faço um café enquanto faço a barba, almoço o resto do jantar de ontem, arroz de atum, descanso deitado como Napoleão quando perdeu a guerra, descanso e fumo um charro, ouço um elpê de Philip Jeck, são três da tarde e Raíssa liga:

— Oi, vou já praí, vou só tomar um café.

— Quando tiveres perto dá um toque que eu vou à estação falar contigo.

— Está bem.

Ponho em equação o modo e as palavras que vamos conversar. Ela acaba por dar o toque. Eu saio ao seu encontro. Quando ela chega, eu pergunto:

— Já tomou café?

— Já.

— Então novidades?

— Fiquei na Sandra esta noite.

— A tua amiga que tem as duas filhas e gere aquele bar onde fomos uma vez?

— Sim essa, mas ela já não tem o bar. Separou-se do gajo.

— Atão o que faz agora?

— Nada, toma conta das crianças. Eu vim só para buscar as minhas malas. Vamos para casa.

— Está bem, toma atenção a uma coisa, a minha mãe soube que tu já não estás nas mãos da assistente da Rua da Esperança, neste momento não tens assistente mas o teu processo já está na delegação da Vendana, toma atenção ao correio em casa do Cá, porque em breve vais receber uma convocatória.

— Ok, eu só estou chateada contigo porque tu pensas que eu te menti.

— Antes mentisses, antes tivesses tentado dar o golpe. Assim odiava-te. Assim só te tenho desamor. Tu dinamitaste tudo ao seres inocente, ao gastar sem saber quanto te depositam, gastar gastar...

— Eu sempre fui assim.

— E tu tinhas dinheiro para o passe do metro, e apanhaste uma multa e foste obrigada a escrever uma carta de tentativa de perdão, não precisavas de nada disto.

— Eu sei, agora pronto.

— Vou-te dizer o que vou dizer ao senhorio, vou-lhe mentir e dizer que arranjaste emprego em Lisboa, um contrato de seis meses num lar de idosos, e que tu decidiste ir porque é a tua área profissional, e vais para lá para ganhar dinheiro e voltares para o Brasil. Assim, ele não precisa de saber da nossa miséria e pode mesmo voltar a repor a renda no valor original. Não sei, vou tentar.

— Sabes que a Fa mudou de ideias? Afinal já não me deixa pôr lá as malas. Mudou de ideia.

— Pois, ela queria que tu fizesses programa no bar de alterne dela, sacar camparis de vinte e cinco euros ao cliente, com percentagens divididas entre vocês as duas, ela queria te explorar.

— Pois, eu começo a ver quem tenho. A ti não levo a mal. Você me ajudou.

— Olha, vê lá se na Sandra te comportas bem. Para dar certo de uma vez contigo. Eu ajudo-te a levar as malas de volta ao metro.

— Está bem. Sabe que ontem acabei por não apanhar o metro na estação e caminhei para a estação seguinte. Tava lá um gajo que me viu, passou um metro e não entrou, passaram dois e nada, sempre a olhar para mim. Então, eu saí pelas escadas do outro lado e vim embora.

— Era outro palerma a fazer-se ao pisco...

— Era masé um xisnove para me delatar.

— Atão, tu voltaste a passar à minha porta, no caminho para a estação seguinte?

— Sim. Bem, adeus.

— Tchau.

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anonim@s do século xxiii



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