Eu tenho dois cunhados, um é Zé António e o outro Tó José.
O Zé tem um curso de economia tirado numa privada mas começou a sua vida profissional através do pai que, trabalhando num hospital, o informou de um concurso e o meteu a trabalhar com ele. Como o pai tnha também uma empresa que fornecia serviços a hospitais, o Zé continuou na empresa do pai e chegou a sócio, hoje é dono da empresa e facturou milhares desde a covid.
O Tó é mais self made man, não tem curso superior mas subiu a custo numa empresa tecnlógica, faz regularmente visitas ao estrangeiro para formação ou negócios da empresa. Desde a covid trabalha mais em teletrabalho indo uma vez por semana à sede da empresa para reuniões.
Disse o meu pai ontem ao almoço: A tua irmã disse que o Tó estava com dor de barriga e não foi trabalhar, ficou em teletrabalho.
Disse o meu pai hoje, a rir: A tua irmã diz que o Tó se sentiu melhor ontem mas que depois comeu uma fartura e ficou doente de novo.
Atão, não foi trabalhar hoje, outra vez?, perguntei eu.
A minha mãe, por seu lado, perguntou: Onde arranjou ele a fartura?
O meu pai esclareceu: Ele ontem foi ao Mercadona, deve ter sido lá que a comprou.
Mas, pergunto eu, foi ao médico ao menos ver da dor de barriga, passou-lhe uma baixa, foi?
Não sei, disse o meu pai, ficou em teletrabalho.
É pai, que sorte ter um patrão como o dele!
Parece que estás com raiva do Tó.
Não, não estou contra ele, quem dera que todos os empregados tivessem patrões como o dele. Não estou contra ele por ele ter regalias, apenas estou contra ele e o Zé quando eles se põem a dizer que o pobre não quer trabalhar.
Há muitos pobres que não querem trabalhar, diz o meu pai.
Sim, há pobres que não aceitam ser escravos. A escravatura acabou há quase duzentos anos, oficialmente quero dizer. Mas hoje em dia, ela parece de volta. Só digo que nem todos têm um patrão como o Tó que nem precisou de atestado para não ir trabalhar. E quanto ao Zé, apanhei-o a falar ao telemóvel com o irmão e ele referia-se à empregada como escrava.
Como o meu pai não responde, eu continuo no mesmo tom: os meus cunhados falam de uma posição de privilégio e pensam que todos têm as mesmas condições que eles, e quem não tem essas condições é para eles um bandido que não quer trabalhar. Quantos pobres não são escravos? Para dar um exemplo concreto, pai: Eu, no Tijuana há quase três anos, quando fui assaltado na recepção do hotel e tive que sair atrás do hóspede que me roubara a carteira, atirei-me para cima dele na escadaria que dá para a rua, foi de madrugada e se viesse um carro atropelava-nos, fiquei cheio de nódoas nos braços e nos joelhos mas recuperei a carteira. No dia seguinte, pedi ao patrão para folgar e ele disse: Não, sr. Rogério, não pode ser, precisamos de si. E mostrou-me um taco de beisebol dizendo: da próxima vez com isto você abre a cabeça do bandido.
Ias ao médico, disse o meu pai.
Sim, pai, dizes isso porque confias muito nos médicos, não é? Mas tu quando precisas de um médico vais ao privado porque o centro de saúde não te atende. Infelizmente, tu também pensas como os meus cunhados. Vocês safam-se porque têm dinheiro. Ora, nem toda a gente tem o vosso dinheiro para se poder safar.
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