domingo, 5 de janeiro de 2025

Jaromil, o poeta bufo

 O quarto da cineasta está cheio de discursos e de fumo, através dos quais um dos homens (andará por volta dos trinta) olha atentamente para Jaromil desde há alguns momentos: «Tenho a impressão de já ter ouvido falar de si», disse-lhe por fim.

-- De mim? -- exclamou Jaromil cheio de satisfação.

O homem perguntou a Jaromil se não era ele o rapaz que desde miúdo frequentava a casa do pintor.

Jaromil sentia-se feliz por poder, graças a uma relação comum, ligar-se mais solidamente àquela sociedade de pessoas desconhecidas, e apressou-se a responder afirmativamente.

-- Mas não o vais ver há muito tempo -- disse o homem.

-- Sim, há muito tempo.

-- E porquê?

Jaromil não sabia que resposta dar, e encolheu os ombros.

-- Eu sei porque é, sim. Isso podia trazer problemas à tua carreira.

Jaromil esforçou-se por rir.

-- A minha carreira?

-- Publicas versos, recitas poemas nos comícios, a dona desta casa fez um filme sobre ti para garantir a sua reputação política. Ao passo que o pintor está proibido de fazer exposições. Sabes que a imprensa o retrata como um inimigo do povo?

Jaromil calava-se.

-- Sabes ou não sabes?

-- Sim, ouvi dizer isso.

-- Parece que os quadros dele são abjecções burguesas.

Jaromil calava-se.

-- E sabes o que é feito do pintor?

Jaromil encolheu os ombros.

-- Expulsaram-no do liceu, e ele trabalha como servente nas obras. Porque não quer renunciar às suas ideias. Só pode pintar à noite com luz artificial. Mas pinta belos quadros, enquanto tu escreves belas merdas!


página 361 - 362

Milan Kundera em «A vida não é aqui»

tradução de Miguel Serras Pereira

edição D. Quixote


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