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Passara várias noites com mulheres. Ainda não passara um dia inteiro com uma. O dia correu-nos sem que o tempo se nos fizesse sentir. Demais, eu notara há muito tempo não possuir exacta noção do tempo. Direi melhor, dizendo que a minha medida do tempo é inconciliável com a vulgar. Momentos há em que saio de mim e ouço o tempo fluir como um sussurro de água. Este murmúrio do tempo confunde-se-me às vezes com o zumbido de um insecto, o uivo do vento ao longe, o tiquetaque dum relógio, o ranger de uma pena no papel, o apito abafado dum ouvido doente... E dizer que tais ruídos me fazem ouvir o silêncio ou sentir correr o tempo -- são-me expressões equivalentes. Ao fim de certas tardes, penso na manhã do próprio dia como se houvera sido há dias. E ao da semana, outras vezes, conservo só a impressão dum dia baço, incolor, chato... Nem falo já das cenas que decorreram há anos, e me são sempre de hoje; dos intervalos em que um sobressalto do coração sustém as horas; ds conversas que se arrastam eternidades; dos instantes imensos, petrificados; ou daqueles dias que súbito nos arrastam numa velocidade vertiginosa... Sendo da experiência comum, tudo isto é ainda em mim complicado por qualquer tique particular.
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José Régio em Jogo da Cabra Cega, página 224 - 225
edição Opera Omnia
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