segunda-feira, 8 de setembro de 2014

O biógrafo vendo-se desesperado a tentar salvar a biografia do seu melhor amigo que lhe dirá que não precisa do seu deus mas que o livro está bom para o público

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O pior é que, se continuo assim, vou acabar por escrever mais sobre mim mesmo do que sobre Johnny. Começo a parecer-me com um evangelista e isso não tem piada nenhuma. Enquanto regressava a casa pensei, com o cinismo necessário para recuperar a confiança, que no livro sobre Johnny só referi de passagem, discretamente, o lado patológico da sua personalidade. Não me pareceu necessário explicar às pessoas que Johnny crê passear por campos repletos de urnas ou que as pinturas se movem quando ele as fita; fantasmas da marijuana, ao fim e ao cabo, que acabam com a cura da desintoxicação. Mas dir-se-ia que Johnny me oferece esses fantasmas, mos coloca, como outros tantos lenços, no bolso, até chegar a hora de os vir buscar. E acho que sou o único que os suporta, que com eles convive e os teme; e ninguém o sabe, nem mesmo Johnny. Não se podem confessar tais coisas a Johnny, como se confessariam a um homem realmente grande, ao mestre perante o qual nos humilhamos em troca de um conselho. Que mundo é este que me cabe carregar como um fardo? Que tipo de evangelista sou eu? Em Johnny não existe a menor grandeza, soube-o desde que o conheci, desde que comecei a admirá-lo. Já há algum tempo que isto não me surpreende, ainda que, a princípio, me parecesse desconcertante essa falta de grandeza, talvez por se tratar de uma dimensão que uma pessoa não está disposta a aplicar ao primeiro que chega e, sobretudo, aos homens do jazz. Não sei porquê (não sei porquê) acreditei por um momento que, em Johnny, havia uma grandeza que ele desmente de dia para dia (ou que nós desmentimos e, na realidade, não é o mesmo; porque, sejamos sérios, em Johnny há como que um fantasma de outro Johnny que poderia ser, e esse outro Johnny está repleto de grandeza; o fantasma apercebe-se que lhe falta essa dimensão que, no entanto, evoca e contém negativamente).
Digo isto porque as tentativas de Johnny para mudar de vida, desde o suicídio falhado à marijuana, são as que seria de esperar de alguém tão sem grandeza como ele. Creio que, contudo, o admiro mais por isso, porque se trata realmente do chimpanzé que quer aprender a ler, um pobre tipo que vai de ventas contras as paredes e não se convence e começa de novo. Ah, mas se um dia o chimpanzé se põe a ler, que ruína em massa, que trapalhada, que salve-se quem puder, eu primeiro. É terrível que um homem sem grandeza alguma se lance desta forma contra a parede. Denuncia-nos a todos com o choque dos seus ossos, despedaça-nos com o primeiro trecho da sua música. (Os mártires, os heróis, de acordo: estamos seguros com eles. Mas Johnny!).
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Julio Cortázar
em  'O perseguidor'

na selecção de contos "As armas secretas"
edição Cavalo de Ferro 2014

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