sábado, 23 de janeiro de 2016

Último cigarro: um cemitério de boas intenções: a convicção da vitória sobre o organismo

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Na página de guarda dum dicionário descubro esta declaração em bela caligrafia, emoldurada de floreados:
«Hoje, 2 de Fevereiro de 1886, troco o estudo do Direito pelo da Química. Último cigarro!»
Era de grande importância aquele último cigarro. Recordo-me de todas as esperanças que o acompanharam. O estudo do Direito Canónico, tão afastado da vida, havia-me maçado e eu preferi-lhe uma ciência que era a própria vida, embora fechada em retortas. Aquele derradeiro cigarro exprimia o meu desejo de actividade (tanto manual como cerebral) e de meditação serena, sombria, sólida.
Para escapar à série de combinações com base de carbono, em que não acreditava, regressei ao Direito. Meu Deus, foi um erro! E este marcado também por um último cigarro, cuja data encontro indicada num livro. Data igualmente importante. Resignava-me a voltar às disputas sobre a propriedade, renunciando de vez às séries de carbono. Percebera não ser talhado para a Química e para tanto concorri à minha falta de perícia manual. Como poderia, aliás, ser hábil continuando a fumar da maneira que fumava?
Nesta ocasião, que estou a analisar-me, assalta-me uma dúvida: talvez não gostasse tanto do tabaco senão pela vantagem de lhe assacar a culpa da minha incapacidade. Quem sabe se, deixando de fumar, eu chegaria realmente a ser o homem ideal e forte que supunha? Foi decerto esta dúvida que me prendeu ao vício: é uma forma cómoda de viver, esta de se julgar grande em potência. Arrisco a hipótese para explicar a fraqueza juvenil, mas sem convicção muito firme. Na actualidade, velho como sou e sem ninguém a exigir nada de mim, passo frequentemente dos cigarros às boas resoluções e destas aos cigarros. Que sentido têm hoje tais resoluções? Como o velho higienista que Goldoni descreve, quererei morrer de excelente saúde depois de haver passado toda a vida enfermo?
Certa vez, sendo estudante, fui obrigado, ao mudar de quarto, a renovar o papel da parede desse que eu deixava e que ficara todo coberto de datas. Talvez, ao transferir-me, pensasse que o aposento era já um cemitério de boas intenções e que eu ali não seria capaz de formular mais nenhumas.
Confesso que um cigarro me proporciona sabor mais intenso quando é o último. Os outros têm o seu sabor particular, porém menos forte; mas o do último provém da convicção de se ter alcançado uma vitória sobre o organismo e da esperança num futuro próximo cheio de força e de saúde. Os restantes gozam da sua importância, evidentemente, pois que acendendo-os também se afirma a nossa liberdade; mas o tal futuro distancia-se um pouco.
As datas nas paredes do quarto eram de cores diversas, algumas até pintadas a óleo. A minha deliberação, tomada de cada vez com a mais ingénua confiança, encontrava expressão adequada na vivacidade da cor -- o que devia empalidecer a inscrição consagrada à resolução precedente. Algumas delas desfrutavam da minha preferência, por causa da concordância dos números. Lembo-me duma data do século passado que me pareceu dever fechar para sempre o túmulo em que eu pretendia encerrar o meu vício: «Nono dia do nono mês de 1899.» Data significativa, não lhes parece? O novo século trouxe-me datas também musicais: «Primeiro dia do primeiro mês de 1901,» Ainda hoje se me afigura que, se ela se pudesse repetir, eu saberia recomeçar uma existência nova.
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páginas 12-13
"A consciência de Zeno"
Italo Svevo
Tradução de Maria Franco e Cabral do Nascimento
Edição Dom Quixote

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