'
(...) Só via a jovem loira, muito ocupada em abotoar as compridas luvas e sem dúvida ardendo em desejos de dançar. Quatro pares executavam já a mazurca; os tacões batiam no soalho e um capitão de infantaria entregava-se, de corpo, alma, pés e mãos, a improvisar passos como nem mesmo em sonhos alguém seria capaz de imaginar. Rompendo por entre os dançarinos, Chichikov chegou enfim junto da esposa do governador e da filha. E de súbito toda a audácia e confiança nele se esvaíram, dando lugar à timidez e ao embaraço.
Não queremos afirmar que o nosso herói estivesse enamorado. É duvidoso que homens da sua espécie, isto é, nem gordos nem magros, sejam capazes de amar. No entanto experimentava uma estranha sensação que não podia explicar. Mais tarde confessou que por momentos supôs que o baile, com o seu ruído e agitação, se perdia na distância; que as trompas e os violinos tocavam algures, para além das montanhas; que uma bruma semelhante ao fundo difuso dalguns quadros envolvia todas as coisas; e que nesse fundo impreciso se divisavam os traços finos da sedutora jovem, o seu belo rosto oval, o seu busto gracioso de colegial saída há pouco do internato, o singelo vestido branco que lhe modelava graciosamente as formas harmoniosas e puras. No meio dessa multidão turva e opaca, dir-se-ia uma luminosa aparição, uma figurinha diáfana de marfim...
Quantas coisas sucedem neste mundo!... Há momentos em que os próprios Chichikov se tornam poetas. Poeta é talvez dizer demasiado; em todo o caso o nosso herói sentiu-se de súbito um jovem, quase um hussardo. Viu ao lado das duas damas uma cadeira livre e apoderou-se dela imediatamente. Ao princípio, faltaram-lhe as palavras, a conversa não correu lá muito bem, mas pouco e pouco a língua soltou-se-lhe, foi readquirindo coragem, mas...
Com grande mágoa devo dizer que as pessoas que ocupam altas funções, mostram-se pouco expeditas a falar com as damas; os tenentes e capitães são mais hábeis nessa arte. Só Deus sabe como se arranjam; não dizem nada de especial e no entanto a jovem a quem se dirigem torce-se de riso na cadeira. Um conselheiro de Estado, ao contrário, pouco ou nada consegue: perde-se em considerações sobre a imensidade da Rússia, dirige-lhe algum cumprimento a que não falta espírito mas que tresanda a literatura, e se acaso sucede dizer alguma graça, então ri muito mais do que aquela a quem deseja agradar. Dizemos isto para o leitor compreender a razão por que a formosa loira se pôs a bocejar enquanto Chichikov falava. Aliás o nosso herói não deu por isso e continuou a desfiar um rosário de histórias engraçadas, inúmeras vezes repetidas já em ocasiões semelhantes.
'
página 276-277
'Almas mortas'
Gogol
tradução e prefácio de José António Machado
edição Portugália Editora
Sem comentários:
Enviar um comentário