1. Há dias uma mulher que eu não conheço pessoalmente e que tem ultimamente mostrado algum interesse no meu trabalho, perguntou-me se era eu o retratado num quadro que postei num blog amigo. Como estava mal humorado, respondi-lhe torto porque ela viu um homem onde estava uma mulher. Então resolvi contactar a mulher retratada que é a minha amiga mais chegada e contar-lhe o caso dizendo: «É uma ofensa à minha pintura, à minha e à tua identidade como pessoa, onde já se viu confundir um homem com uma mulher, deve estar a precisar de renovar as lentes!» A minha amiga respondeu: «Foste mal-educado com ela. Ela, se calhar, só estava a meter conversa contigo.» De modo, que voltei a comentar no blog e tentei de modo mais educado simplesmente perguntar onde via ela um homem, ela desta vez respondeu e pediu desculpa pelo seu olhar. Eu aceitei as suas desculpas.
Porque poderia simplesmente responder que as mulheres que a Paula Rego pinta se parecem com homens de saia. Mas a Paula Rego é a Paula Rego e eu sou apenas o ZMB, um gajo que faz uns rabiscos.
2. O senhor que me arrenda o quarto veio ontem receber a renda. Nota-se que não tem grande apreço pela arte nem pela vida de artista. Mas parece gostar de mim por causa da minha simplicidade e honestidade, quando lhe falei do meu «rendimento médio mensal» para justificar que podia sem falta pagar a renda sempre a horas. Eu tinha-lhe perguntado se podia furar a parede para pendurar quadros, ele disse que sim e que assim dava alguma vida à casa. Desta vez, ele olhou para os quadros na parede e perguntou se tenho vendido muitos, eu disse alguns, poucos, o suficiente para poder pagar as contas da água e da luz quase quinze dias antes do final do prazo. Então, ele mostrou a sua simplicidade e a velada ofensa que eu como estava bem disposto ignorei: «Eu olho para este quadro e não lhe dou valor, mas se me disserem 'é do Picasso' aí eu já penso duas vezes, já lhe dou valor.» Eu respondi: «Claro, cada um com a sua arte, o seu modo de vida.» Ele recebeu o dinheiro a que tinha direito, apertou-me a mao duas ou três vezes e despediu-se.
3. Na galeria onde recentemente tenho vendido alguns trabalhos, o dono faz-me sempre uma festa quando apareço para mostrar o meu trabalho, geralmente por alturas do fim do mês. Ele sabe que eu vou lá com a intenção de ganhar o meu dinheiro para pagar a renda, mas ele parece gostar de mim, diz que eu lhe dou sorte, e já pude até comprová-lo. Uma vez, tinha eu vários trabalhos no chão da galeria para apreciação e possível compra, entrou um casal de italianos que comprou obras da galeria. O dono tem uma personalidade incrível e uma capacidade de comunicação acima da média, fala fluentemente inglês, francês e espanhol e sempre que entra um potencial cliente, ele acaba sempre por falar de mim e do meu trabalho. Ontem, resolveu comparar-me a AOS sem saber e muito me agradou pois disse que quando eu vivia na Ribeira fiz uns quadros sobre aquelas figuras mais castiças da Ribeira (estava a referir-se à minha série de artistas de rua, uma exposição que ele recusou organizar por se afastar do conceito geral da galeria) e acabou a perguntar-me se aquele último quadro, do qual lhe enviei a foto frisando que sabia que era um trabalho que não lhe interessaria, não estava a retratar uma prostituta. Eu disse que não, que não era nada relacionado com prostituição.
Destas três notas se conclui:
O olhar das pessoas que observam, às vezes, não coincide com o olhar e a mão do pintor.
Onde uma mulher viu um homem e um senhorio não viu nada de valor, um galerista viu uma prostituta.
Eu apoio a falta de consenso, quando há consenso não há conversa, não se aprende nada.
Só eu e ela, a minha amiga, sabemos o quanto este quadro é mágico.
:)
ResponderEliminar___
Se pudesse, comprar-te-ia uma tela, acredita, Zeta. Tens algumas que deixam a pinha a moer a casca do pinhão, o que é muito bom, tanto para ti como para quem observa. Creio que foi isso o que aconteceu com a Ana, que tem uma sensibilidade extraordinária. E, como bem induzes a ideia, o melhor do mundo é a diversidade :)
A diversidade, a dualidade, a duplicidade, a luz que absorve toda a luz e fica negra e invisível, a miscigenação, a mistura de cor, de pele, de realidade e ficção ou alucinação onde se não sabe o que é a verdade, como diz o Reeves :), ser hoje um e amanhã não ser nenhum ou sermos dois em movimento, com um rabisco de fotógrafo pincelado no cavalete, e alguma biblioteca, fonoteca e palete e tubos de tinta, what is truth?
ResponderEliminari read that somewhere, already :)
ResponderEliminar