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Devo agora contar-vos coisas difíceis de contar, principalmente quando se trata do passado longínquo. Vai para aí quinze anos desde que tudo se passou. Agora os tempos são bem diferentes. Quatro cafés por dia. Às vezes um hamburguer, outras vezes uma sandes de frango ou atum ou uma bifana no Marnoto. Mas a rotina ainda impera: a cantina alternando com a casa dos papás.
Alto! Alto e paira o baile! Disse papás e enganei-me. Onde escreví papás deveria ter escrito pais. Mas mesmo assim não ando assim tão longe da verdade, pois não sou eu o filho de duas estátuas egípcias? Escrevo tudo isto agora como se se passasse num futuro onde fosse possível que um filho adoptivo de um casal homossexual pudesse amar. Esse filho seria um funâmbulo de profissão. Chamar-se-ia de C. e teria uns vinte e um anos de virgindade gemendo ansiosos de bruta violação. Devido às realidades culturais seria admitido ao centro de reeducação alimentar CReEA de Derza e logo aí revelaria dotes literários, eis o que ele escreveu ouvindo COIL, numa toada egípcia enquanto olhava uma foto de família:
“Eu sou o filho de duas esfinges e Ela está representada por um busto namesma página. É a mulher, a princesa do meu destino. As duas estátuas egípcias são os meus verdadeiros pais, a minha mãe canta uma música retirada de um CD, parece descrever um ritual, ouço e tento corresponder ao criar a minha última obra. Então, esborrato metade de um tubo de verde na tela, simboliza aquilo que eles, os meus pais, mais querem, ou seja, sémen. Eles cantam e rejubilam aleluias, dizem: "oohh..."
Sou um filho liberal!, aceito o facto de os meus pais serem um casal homossexual e um deles dever ser a minha mãe que canta. Eu sei que eles só agora se revelaram, ou só agora os descobri, mas eles estiveram sempre presentes, eles sempre me vigiaram, nunca se impuseram, codificaram a informação para que um dia eu descobrisse a verdade. Acredito que sou o único detentor deste segredo. Nunca o revelarei. Chamar-me-iam de maluco. Não é correcto dizer as verdades que podem ofender o mundo. Claro que digo isto porque estou aqui no CReEA. A minha princesa sabe obviamente tudo, ela também faz parte deste plano cósmico, eu sei, foi tudo planeado entre as famílias, eu sei que ela sabe mais do que eu e mais do que revela ao telefone, ela é a princesa que espera que eu, o filho humilde de duas estátuas egípcias, vá ter com ela. O tempo não conta, afinal vivemos na eternidade, somos imortais.”
Quanto a mim, o humilde pintor R. diz não mais do que isto: a princesa is no more, ela mudou de identidade. Não sinto remorsos. Vivo na tristeza de revisitar a obra passada, na altura esta velha estória passava-se há trinta anos. Ia regressar de umas férias passadas na aldeia. Escrevera a Maria falando-lhe das danças do dia 15 de Agosto, dia da senhora da ascensão. Há trinta anos, ainda dançava. Depois, só dificilmente e com muita resignação, em casamentos ou baptizados. Hoje, não tenho vida social para a dança. Dias antes de lhe telefonar para combinar o reencontro, no momento em que as raparigas da aldeia me pareceram novas de mais, decidi que preferia a suave maturidade da beleza escultural da minha maria porque a joana apagara-se dos desejos da memória ou da wish list dos sistemas de pagamento das bibliotecas online. Pensei-o ouvindo a sua voz mas não o disse. Estava aninhado no chão da sala a consertar o suporte de madeira das cortinas da larga janela da casa dos meus pais em Triza. A meu lado, a lista telefónica e o telefone. Disquei os números e ela atendeu. Disse-lhe que voltava a Derza para a semana. Ela aludiu um pouco furiosa à dança que vinha descrita na missiva feita quase como uma declaração de amor... e ela perguntava se, quem sabe? não certamente o Deus fodilhão, eu não teria curtido curtido com alguma moçoila na festa. Umas cervejas e tal, um charrito inocente às nativas. Inocentes! Que palavra esta, a inocência, as índias americanas têm o peyote que... o meio de chegar à divindade. Inocentes estas nativas que eram bem folgosas,
apetitosas, mas não dava tempo para nada. Era a festa da aldeia, daqui a pouco no fim da rapsódia de quinze minutos anunciar-se-ia a meia noite com o fogo de artifício, e tudo chegaria ao fim. Nem tempo para um beijinho. Oh que pena! Não foi um telefonema agradável.
Na semana seguinte o gato morreria três vezes e o seu eu ficaria down sendo admitido no CReEA. Eis o que o professor O. disse a C. lá dentro encostado a paredes brancas com aquecedores eléctricos:
“A primeira morte: A secção dourada, a amizade. Bang! A segunda morte: Os cinco minutos após a morte, a droga. Bang! A terceira morte: Montecute. O amor e a Maria. Bang, bang, bang!!! Numa semana apenas, sim... em três dias! Uma dose de arromba para um filho da lasciva dedicação dos seus pais solares, sempre com a banda sonora dos COIL.
Toma lá que é para aprenderes, eu também tive a minha dose, oh C., eu podia ser teu pai... “
Depois disso e isto mais lá para a frente, freneticamente no futuro, o gato viria a falecer mais vezes do mundo, do amor e, por fim, da sua própria identidade. Como uma cebola, o seu eu seria descascado e fugir-lhe-ia a julgar pela incrível maneira de andar pela rua à hora do almoço a falar para paredes, entrando em salas de espera de camionetas para regiões longínquas e partilhando charros com sotaque com mortalhas violeta da loja Cassiber, imaginando que Joana apareceria salvadora para o tentar resgatar à impotência.
R. pega no livro cinzento e começa a ler ao acaso:
O mundo, o amor, a identidade, o dom da palavra e da comunicação, o dom de amar, o dom de não ter dúvidas de ser suficientemente amado, o dom de ser feliz e ser capaz de trabalhar...
O funâmbulo sai de casa. Esta está afastada dos primeiros vestígios de vegetação citadina, pessoas, prédios e luzes por um percurso de cinco minutos que tenho de percorrer ao longo de uma rua em alcatrão em trajectória parabólica com o feedback dos grilos e o ruído dos comboios que passam ao fundo. I’ve allways liked trains, diz a minha voz interior. Na rua, ouço a resposta de alguém que diz: Bem pelo menos poderá trabalhar nos comboios.
Por vezes, é bom sentir este silêncio. Hoje, ele é claustrofóbico. Ao chegar aos semáforos e em vez de entrar na confusão sonora da cidade, sigo a calma pela estrada nacional até aos próximos semáforos. Sinto uma estranha confusão mental. Já a tinha experimentado em books, no entanto, a realidade é uma coisa bem distinta, talvez por achar que nada deve ser real. Passo por um centro comercial e um cemitério quase de mão dadas, por ruas lentas, escuras e ladeadas por belas vivendas com roseirais de onde retiro flores para a colecção. Quando chego finalmente à civilização deverão ser onze horas da noite. Para passar tempo decido ir ao casino. Procuro gente desconhecida e um ambiente informal. Nunca tive sorte mas hoje não é importante, até parece um daqueles dias em que se joga lerpa com o pretexto de perder e descobrir os telhados de vidro do vizinho.
Bem! Preciso de explicar esta imagem real: por um truque na televisão passa um filme chamado Hunger com a Catherine Deneuve e o David Bowie, começa com lobos e vampiros. Eu digo aos benfiquistas do futebol: ja xau grande filme! Há quem pergunte que piada tem ver um animal a devorar carne. Não digo nada... mas existe um benfiquista, para o caso lhe vamos chamar de mr.grelos, que diz que viu o filme, que diz a frase subliminar com a qual se enterra magistralmente a meus olhos que nada dizem - na hora de assumir é que é o caralho. Nada digo. Apenas me rio, mais um que foi descoberto, descaíu-se e eu sei o seu segredo, ele sabe que eu sei, é mais um a odiar-me. Prefiro obviamente rir e ignorar o provável cisco no meu olho... e agora, quase por magia, o seu telhado foi-se. Quanto a perder aos dados ou à lerpa, posso sempre desculpar-me com a má-sorte.
Peço um fino mais outro e a seguir um Martini.
Enquanto marco os números, vou associando algumas ideias adquiridas através da leitura de Genet como a traição, a elegia da beleza, a definição do ideal glorificado como situação actual, um pouco fascista digamos. Eu, na vida real, duas horas após ter praticado um acto que defini como um acto de traição, e que acto é este? Em minha opinião, traí a amizade e a confiança. Se à traição misturar a ingenuidade posso definir a pureza ou a minha pureza. Serei eu puro então? Mas quererei ser eu puro? Estou aqui maquiavelicamente a perder dinheiro sem me importar e esse acto, digno de um qualquer gestor de empresas apenas porque tem dinheiro o suficiente para desperdiçar, é apenas o meu modo de me lamentar por ter realizado o acto de traição. Misturo o bem e o mal com confusão. Misturam-se, tornam-se um só ser andrógino sem significado interno, apenas exterior – a imagem. Assim, digo que não deveria haver pureza, eu deveria ter traído em consciência por o querer fazer mesmo e por razão nenhuma.
Compreender as razões não faz com que tenhamos razão. A ingenuidade não faz de nós menos culpados. Sobre a minha pele desce o escárnio e o frio, como admitir que se fazem coisas que se não deveriam fazer?
E depois do casino, qual o destino que a carta joga? Ainda não sei. Talvez um café chamado Oldman onde como moelas com pão e vinho tinto. Bebo para esquecer, não é bom beber para esquecer. Moon is violent with scarlet horses. Moon is violent with scarlet horses. (ad eternum...), diz a minha voz interior, o velho revolucionário O..
A partida dá-se para o bar seguinte, do Oldman para o Arménia. Dentro do Armenia, encosto-me ao balcão mais chegado à pista de dança onde posso observar outros seres humanos a divertirem-se ou, sei lá!, quem sabe igualmente cheios de merda. É tudo uma questão de disfarce talvez. Alguém vem falar comigo mas a minha fala é estranha. Hoje, não sou o tipo beto do liceu com os cabelos compridos que fuma ganzas nem o maior galã do planeta de facto azul marinho na discoteca, cortei o cabelo há quinze dias e quando fumava um cigarro à porta de casa os meus vizinhos disseram-me que parecia mais homem assim, quanto ao fato só se ele for o meu fato-macaco. Hoje, envelheci subitamente e a minha voz reflecte o meu pensamento, não é a mascara do mesmo. Parece-me que, a partir de hoje, vai ser sempre essa voz estranha, tensa, fria, reflectida em demasia com a excepção de alguns casos cada vez mais frequentes de delírios de loucura. Para melhor ocupar o meu tempo, deito-me no sofá e quando paro de ler lentamente uma frase olho para o tecto absolutamente branco, flipo, faço comparações, tiro conclusões e tudo parece adaptar-se à realidade como se em cada frase houvesse um conteúdo psicogeográfico em acção. É tudo tão estranho, tudo tão diferente. É como se estivéssemos num perigoso processo de falha de objectividade. Engraçado, não sinto ódio pela humanidade, apenas emerge o ódio por mim próprio. Sinto náuseas de me não estar a divertir como todos os outros. Como nem sequer tenho vontade de tentar, a realidade começa a transparecer como uma sucessão infinita de círculos e mais círculos desenhados sobre brasas onde me tento equilibrar. Tenho que confessar que nunca pratiquei yoga. Sou um puto.
Alguém me fala de um negócio. Alguém me fala em experimentar coca.
Quanto é? Três contos, amanhã no Oldman por volta das nove. Combinei com o elemento X., o Y., o Z.. Está bem. Estendo o cartão de consumo, peço mais um fino. Mais tarde aparece a ganza. É raro encontrá-la mas quando aparece nunca falha, há sempre ganza por perto. Queres fumar um charro? Sure! Uma montanha deles… mas aqui dentro? Olha à nossa volta, analisa e conclui: Tens razão, é melhor lá fora, vamos esperar um pouco, agora não me apetece, já fumei muitos aqui dentro. Quando o bar fechar, então? Sim.
Quando saímos, os nossos olhos procuram de imediato um lugar confortável de preferência recatado e verde porque dizem que a polícia tem andado por aí, olha, é mesmo aqui nestas escadas, queres ver? Olho e vejo as escadas traseiras de um edifício de quatro andares, é mesmo aqui. Daqui a duas horas talvez amanheça. Tens um cigarro? Queres que te faça um filtro? Pode ser. Penso que não passo de um crivo enferrujado onde o milho é seleccionado. Observo a ganza, concluo que não importa o tempo que se demora a fazer um charro, é sim necessário que a qualidade permaneça, que estecticamente seja sempre mais, seja sempre um outro distinto no meio de todos. Penso em retórica, penso em felicidade, penso em porque sentem as pessoas necessidade de falar com outras pessoas. Quando a prata é retirada da carteira, a ganza embrulha a pedra e explica-me que assim o calor pode
ser distribuído regularmente por toda a superfície. Descubro que ainda tenho muito para andar. Quando ela queima a ponta para não fumarmos papel e finalmente o acende, começa a desenvolver-se uma estranha conversa a três: a ganza, a minha consciência e eu.
Ela começa a contar uma de longas histórias sobre ganza e algum pó. Eu duvido, pergunto como e porquê, respondo sim ou não, a minha consciência tira as suas conclusões cheias de duplos sentidos. Ela descobriu que era irónica, uma vez chamaram-lhe até de cínica, talvez a minha consciência seja um psiquiatra maluco ou um analista de massas. Fumamos mais um? Estava a ver que nunca mais falavas. Amanhece.
Quando vou para casa caminhando muito lentamente por volta das nove da manhã, tento sair do nevoeiro. Se para alguma coisa serve dizer isto, só me deito passado o meio-dia após ter escrito oito páginas. Além da ganza agradou-me o formato, um diálogo a três. Infelizmente perdi tudo isto quando o eu alienado mas apaixonado se despistou e mudou de pele uma vez mais, desta vez seria para o eu ressacado.
Na longitude do tempo, segue-se um sonho branco.
Acordo por volta das seis da tarde com a cabeça, os olhos pesados e sobretudo muito calmo. Penso nessa calma exterior mas o interior diz que estou sozinho e pendurado no mundo, posso permitir-me não falar nada durante o caminho para o café, no entanto parece-me tabu. Enquanto tomo café releio o que escrevi, procuro compreender a ideia ainda obscura e muito imperceptível de me tornar escritor. Certamente para me curar.
Combinei ontem no Armenia fumar coca. Falo de um livro, dum pecado, duma fracção de maldade, de uma pura tentativa de moralidade, ser sincero. Ao sentir-me culpado, o meu desejo é auto destruir-me, esquecer-me.
Pouco antes das nove horas entro no Oldman e sento-me ao lado de Y. que aguardava sozinho. Peço um café e ponho-me a pensar no livro Narrativa com cocaína de Aguéev. Dez minutos depois, X. entra. Conheço-o superficialmente mas não demora o tempo de fumar dois charros para o passar a detestar e verificar que não tenho nada para lhe dizer. Tal como para mim, é a sua primeira vez mas é como se tivesse o nervosismo de um agarrado, passa várias vezes a mão pelo nariz, diz frequentemente coisas sem nexo, a sua histeria sugere-me vagamente a de um chulo falando com as mulheres numa noite em que tudo corre mal. Nunca uma espera foi tão desagradável. Durante vinte minutos, penso em Aguéev e no Filipe LaFéria e no que terei eu a ver com tudo isto?
Finalmente toda a gente chega, somos seis ao todo, vamos a uma casa ali perto, o dono da casa começa a desembrulhar a prata e explica-nos: não vamos snifar a coca, vamos sim fumá-la. Diz-se que é a base do crack, não somos assim tão ricos. Não interessa, todos esperamos e o elemento X. coça-se. Surge-me a imagem de Alice numa terra de neve. Estranho, a minha passa não sabe a nada, o elemento Y diz o mesmo, só X. se passa. Estúpido ou porque a sociedade cria estúpidos. Dou mais uma passa, na minha cabeça surge Portishead, sinto-me só e além disso penso que te amo.
Nada acontece. A mim está a bater largo, diz X.. Quem já tinha fumado nada diz, terá o seu modo de curtir.
Saímos todos e voltamos ao Oldman onde se pede cerveja. Nada nos une, ouviste!, diz a minha voz interior. Bebemos um fino hoje porque a maior parte de nós tem vontade de beber todos os dias, porque hoje fumamos coca em conjunto. É para mim um acto nihilista. Sinto os lábios frios. Bebo e
sinto esse frio, um frio leve e contínuo. Sinceramente esperava outras sensações, sinto-me um provador de vinhos irritado com a má qualidade e que ninguém me toque! Fala-se de negócios, alguém não conseguiu arranjar ganza ou então o amigo fumou mais do que devia, berrou os colegas e por fim alguém dá a ideia de irmos a outra casa para mais que uma simples cortesia.
Entramos. As divisões estão vazias na escuridão. Sentamo-nos na sala e vemos televisão. Passado algum tempo, o elemento Z. levanta-se e bate a uma das portas de onde sai pelas franjas luz. Que queres? Quero ter o nosso filho aos quarenta anos, divago a minha voz interior falando para ninguém.
Quero enterrar a minha mente na merda. Minutos esvoaçantes. O barulho de uma porta a abrir, uma degradação onde nunca tinha estado, fuma-se pó em cima da cama. O que mais me impressiona é não o acto de fumar mas sim a alteração das expressões faciais, os desejos, as frases impacientes: se tivéssemos coca podíamos fumar speedball, hey a prata parou por aí? Queres experimentar? Não. Talvez a minha vontade de desaparecer não seja assim tão verdadeira.
Y. e o meu eu exterior voltam ao Oldman. Pedimos vinho verde. Diz-me que o vinho corta o efeito da coca mas como pode ser se não bateu nada? Não percebo. Parece-me que esta noite nunca mais passa. Interessava-me, isso sim, que os meus três contos tivessem servido para alguma coisa e não se ficasse apenas pelas histórias de sublimados poetas, nem que fosse só para me transformar numa qualquer espécie de zombie como aquele que entrou no café sem conseguir dizer uma palavra, soltar um gesto, deixar de cambalear. Quando se fuma pó por uma questão de experimentação, é bem capaz de ser fixe olhar fixamente para a ponta do sapato durante uma tarde inteira mas quando se observa ao longo do tempo a evolução de cúmplices de ganza que até são pessoas fixes, contam anedotas e tudo e depois caem no sofrimento físico, na ilusão de realidade entrando em quartos implorando bafos e ninguém os pode ajudar porque somos todos capazes de estar na mesma situação ou então porque não temos a vontade ou a paciência de estômago para ajudar, algo me convence que o desejo de desaparecer necessita de outros meios para se realizar.
Não me recordo de muito mais coisas deste dia a não ser ter-lhe telefonado. Ela deve estar a chegar de férias, eu tenho uma tonelada sincera de saudades e de amor para dar… de volta. É-me difícil falar da noite seguinte. Há coisas que me assustam.
Combinamos em sua casa para jantar. Não nos vemos há três meses. Não posso estar bem disposto como consequência dos dias anteriores e vou reparando em alguma reserva da sua parte, por exemplo, em coisas muito simples como o facto de a querer como habitualmente beijar e ela dizer que a cozinha tem de ser arrumada primeiro e, segundo, tem de ir telefonar, ir a qualquer lado. Vamos telefonar então, vamos ao Arménia beber uma cerveja, nota-se que tem algo para dizer que não parece ser fácil de dizer, decidimos jogar bilhar. Não faço uma única jogada decente, a cabeça pesa-me, está mais frio do que nunca. Quando o jogo acaba quero ir para casa, ela quer ir para algum lado. Foda-se!, não estamos juntos há mais de três meses. Não é difícil desconfiar dos porquês, no entanto quando esses porquês parecem estar a acontecer é fácil eu desejar-me acéfalo e pensar que se trata de uma simples indisposição. Quando finalmente entramos vamos ver televisão e passado algum tempo ela retira forças de dentro de si para dizer que a partir de hoje não quer mais estar comigo, quer ser apenas minha amiga. Ouço tudo. Já não dá para pensar em ser acéfalo, diz a voz interior, a lâmpada estava acesa, era apenas eu que tinha um pano a tentar encobri-la. Agora a lâmpada pegou fogo.
As minhas primeiras palavras são um monumento à frieza: Então, já não há nada a fazer aqui. Vou-me embora. Ela diz: Não vás, gostaria que passasses uma última noite comigo. Porquê, se queres acabar tudo? Com lágrimas ela diz: Eu queria fazê-lo antes das férias mas não tive coragem, estava muito perto de ti… passaram-se três meses onde tive tempo de pensar em tudo, em se valeria a pena continuar… quero ser tua amiga. Oiço tudo isto e vejo-me para minha incredulidade a aceitar tudo muito placidamente. Estou deitado no seu regaço, digo-lhe que gosto da música que está a passar no
canal de música, digo-lhe que não vou passar a noite com ela, ela diz que assim seria mais fácil de aceitar. Como se fosse possível dois namorados que acabaram de romper dormirem juntos como amigos, como se não houvesse amor ou houvesse uma espécie de amor superior.
Tudo pela sanita abaixo.
Fomo-nos deitar. Digo: até amanhã; e viro-me para o outro lado, reparo porém que não consigo dormir e que sinto todo o tempo que passamos juntos passar à frente dos meus olhos. Posso abraçar-te? Ela diz que sim, eu começo a abraçá-la, a beijá-la, a beijá-la cada vez com mais sofreguidão até que em desespero lhe peço para fazer amor e é engraçado notar quantas vezes já não tinha pensado nisto antes, comme s’il était la derniére fois. Vocês sabem a letra.
Ela começa a chorar dizendo que não. Tento forçá-la, sinto-me louco e com vontade de a violentar. Nada . Choramos os dois abraçados. Estou a ficar louco, sem ar, tudo me parece pequeno, escuro, nada existe mais.
Quando acordamos no dia seguinte, o primeiro pensamento do funâmbulo é sair dali e fugir para bem longe. No entanto, volta a bater à porta, esquecera-se de calçar os sapatos. Caminha em direcção a casa. A manhã está radiosa. O sol está e exige óculos de sol para as olheiras. A caminho de casa para numa pastelaria para acalmar os nervos.
No sábado seguinte, o eu alienado foi jogar futebol com os seus colegas. Foi um sinal de que ao gato se impunha uma mudança. Mas vamos por partes. Agora vou-vos ler um poema muito importante pois esse gato passaria a prestar mais atenção ao seu espelho e a seguir em direcção aos lobos. Começaria a reflectir sobre si próprio:
“Terror e medo.
Stranger than kindness comme s'il était la derniére fois a young god will ever kiss Her or perhaps it was just no one saw the carny go watch 3 crows during 3 days, born young dead on the 3rd week of Autumn.
Terror e medo.”
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do livro 'Kcoillapso'
por Claudio Mur
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Este texto, na maior parte, é baseado em factos ocorridos
e a conversa entre 'a ganza, a minha consciência e eu' marca o momento
em que me apercebi que havia uma dissociação/oposição entre mim e o meu interior:
como se eu pensasse uma coisa e fosse levado a fazer o contrário
só para ninguém, nem eu próprio, se ficar a rir.
Na altura não compreendi o significado mas
hoje acho que foi a minha primeira manifestação de esquizofrenia social.