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-- viva Odorico! -- o bêbado gritou novamente
os fiscais DestaVez e DaOutra aceitaram, sem pagar, a cerveja que MariaComForça lhes ofereceu, deambularam pela festa, miraram de longe o recolhido galo, trocaram breves palavras com Edú e dirigiram-se intencionalmente à jovem jornalista
-- a jovem está munida da respectiva autorização?
-- como?
-- a jovem faz-se acompanhar da necessária documentação?
-- como assim?
-- estamos em Angola, minha jovem, aqui os acompanhamentos da comunicação social exigem documentações várias
-- não entendo
-- mas já vai entender -- DestaVez sorriu
-- sim, já vai entender -- DaOoutra confirmou
-- e os outros jornalistas, também precisam desses documentos?
-- os nacionais são inerentes
-- como?!
-- os nacionais já são inerentes, minha senhora, a documentação para reportagens, sobretudo de teor fotográfico, custa dinheiro, espero que a senhora esteja preparada
-- não sei se entendo
-- por sorte nós somos fiscais de funções multifacetadas, poderemos talvez ceder algumas informações e até a respectiva autorização
-- os senhores é que fornecem esses documentos? -- a moça, séria, quis resolver a questão para continuar com as fotografias -- trabalho para a BBC, e sou credenciada
-- mas está credenciada para este evento?
-- para este evento, especificamente, não... mas no geral...
-- no geral é uma coisa -- disse, lentamente, DestaVvez
-- no particular, mesmo que conjuntural... -- disse DaOoutra -- é outra estória
-- os senhores quem são?
-- somos DestaVez e DaOoutra, os fiscais
-- fiscais? de que Ministério?
-- de vários
-- vários? mas quais?
-- vários, quer dizer, também os que implicam este tipo de autorização
-- não sei se entendo
-- isso já percebi, que está com dificuldades em entender, quanto mais difícil de entender, mais difícil de fazer o seu trabalho
-- mas é preciso alguma autorização especial para cobrir eventos?
-- sim, porque há uma diferença entre comparecer e cobrir -- anunciou DestaVez
-- sim, há uma diferença -- confirmou DaOutra
-- mas normalmente...
-- minha senhora, isto não é uma situação normal, isto é uma inauguração cultural de teor paralelo...
-- como? -- a jornalista chegou a pensar que os fiscais estivessem bêbados
-- veja bem, a questão é que a senhora precisa de uma autorização, mas só nós sabemos que a senhora precisa dela... não é assim?
-- acho que sim
-- e só a senhora sabe que não a tem, então para quê complicar?
-- os senhores é que estão a complicar
-- não, a senhora é que não está a facilitar, se não facilitar mesmo, é que depois aparece a complicação
-- e como é que eu «facilito mesmo»?
-- por exemplo, com meia cabeça grande
-- como?
-- meia cabeça grande -- explicou DaOutra -- é uma nota, normalmente verde, de cinquenta dólares americanos, isto para não cobrarmos em euros, só porque no caso trata-se de uma madame jornalista
-- e se fosse homem?
-- homem? -- DaOutra olhou para DestaVez para que o irmão avaliasse a situação
-- homem seria cem euros ou mais
-- e porquê? -- a jornalista estava irritada
-- porque os angolanos são mais simpáticos com as damas
-- e se for um angolano que goste de homens?
-- que gosta de homens? mas como assim? -- DestaVez ficou nervoso
-- de homens, se for um fiscal que goste de homens... sabe? nesse caso talvez ele cobrasse meia cabeça grande a um jornalista da BBC homem... e podia cobrar cem euros a uma jornalista, mulher...
-- não estou a par de nenhum caso -- DaOutra também parecia confuso
-- eu ouvi dizer que os fiscais aqui em Luanda... costumam ser mais simpáticos com os jornalistas homens... não sei se é o vosso caso. aliás, eu ia escrever justamente sobre essa questão... vi tantos homens aqui na festa... até os senhores, que chegaram juntos
-- nós somos irmãos de pai
-- mas isso, lá na BBC, ninguém sabe...
-- bom, então vamos lá resolver as coisas melhor... -- DestaVez tossiu. -- desta vez a senhora pode prosseguir com o seu trabalho, e fica com esta nota verbal só de prevenção
-- agradeço a atenção, senhor fiscal
-- muito bem -- disse DestaVvez
-- muito bem, sim -- disse DaOutra
-- então sejas feliz, como dizem na igreja
-- obrigado, senhor fiscal
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, páginas 225-228
'Os transparentes'
Ondjaki
edição Caminho, 8ªed, 2015
:)) gostei muito deste conto (fiquei a pensar que tenho mesmo de arranjar o livro, quiçá antes de acabar com o Ulisses)
ResponderEliminarÉ um bom livro e penso que, apesar das situações serem inventadas, há um traço de verdade em todo o livro.
EliminarEu também tenho o Ulisses e acho que nunca o vou ler :)