terça-feira, 20 de março de 2018

O diário não era apenas o jornal da minha vida, mas até o espelho secreto da minha alma

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Baba não veio almoçar a casa, provavelmente acompanharia Cora, ou saíra com Santoro. Comi só, depois meti-me no quarto, instalei-me à secretária e comecei a folhear o diário.
Reli a página, no começo, onde previno reservar-me o direito de acrescentar aos factos realmente havidos outros factos, estes últimos inventados, atinentes a servir como materiais para o romance que pretendia escrever mais tarde; e caí numa profunda meditação.
Afinal a que vinha uma tal advertência? Realmente por querer reservar-me, desde escrever o diário, o direito de preparar o romance? Ou não antes porque queria poder dizer certas coisas que na vida real não existem? E para esconder de mim mesmo outras que pelo contrário existem?
Na verdade, se um dia realmente me dispusesse a escrever o romance, então deveria não apenas aceitar tudo quanto juntara no diário com a finalidade de completar e, por assim dizer, tornar mais real a realidade, mas igualmente alijar quanto lhe sobrepusera, qual máscara no rosto da mesma realidade, de cada vez que ela me parecera inconfessável mesmo num diário. Ora este trabalho de desbaste anunciava-se-me como nada fácil, sejam os acrescentos que serviam para aprofundar e integrar a realidade, sejam aqueles que pelo contrário a dissimulavam, não estavam ali por razões meramente literárias, de engrenagem romanesca, mas por motivos extraliterários que, como sentia, me era difícil, para não dizer impossível, esclarecer até de mim para comigo. Em suma, o diário não era apenas o jornal da minha vida, mas até o espelho secreto da minha alma. E de facto eu tinha relatado ali, além de alguns sonhos reais e verdadeiros que me tinham parecido mais significativos eventos e personagens que sabia inventados mas que, como os sonhos nocturnos, haviam servido, no momento de os inventar, para esconder ou desafogar certas paixões.
O homem comum tem apenas os sonhos, os que sonha dormindo tanto como os sonhados de olhos abertos; mas o romancista, a mais dos sonhos, dispõe das invenções dos seus romances. Como os sonhos, tais invenções não são o que parecem; e significam mais do que quanto pretendem significar. Ora, há duas espécies de romancistas: os que crêem nas suas invenções e os que não crêem nelas. Aos primeiros admite-se que escrevam romances que se assemelham a enigmas figurados, dos quais, porém, eles próprios ignoram a resolução; os segundos, pelo contrário, detêm a chave do que escrevem e por isso estão aptos a manifestar o que está escondido. Eu pertenço evidentemente à segunda categoria.
Tudo isto parecerá porventura misterioso. Mas pense-se: um diário não é a verdade porque, no próprio momento em que o diarista relata um acontecimento de que foi protagonista, já não é quem o viveu mas quem o escreve; quem o viveu é, pois, uma personagem bem distinta, com a qual o diarista tem uma relação de juízo ou, preferindo-se, de representação. E sendo verdade que entre o diarista e o protagonista dos acontecimentos do diário há completa identificação, também é verdade que essa identificação está na origem de quaisquer truques ou mentiras ou reticências que modifiquem, amputem ou dissimulem os acontecimentos referidos no mesmo diário. Na realidade, o diário é sempre sincero, sempre verdadeiro; somente será necessário buscar a sinceridade e a verdade além dos eventos.
Esta é a razão porque diários, jornais, autobiografias, confissões e memórias são, todos, pouco mais ou menos, mentirosos no sentido factual e verdadeiros psicologicamente. Tal como um espelho no qual quem se vê pode fazê-lo tomando esta ou aquela atitude. A verdade não está tanto na imagem quanto no carácter da personagem que, no momento exacto em que o espelho lhe reflecte a imagem, por assim dizer se vai criando como por encanto. Mas esta personagem não pode ser aceite tal como é: deve ser interpretada, submetida a uma operação crítica. Então saltará à vista que é o resultado de quase automáticas mentiras, reticências, disfarces.
No meu caso, a operação crítica que revelava? Revelava que a personagem do diário tinha sido obtida mediante a supressão de toda uma parte da realidade, e que o seu verdadeiro carácter se definia precisamente não só através da realidade suprimida, mas também do facto em si desta supressão.
Decerto: a personagem do diário era um romancista que decide, na mira de posteriormente arquitectar um romance, manter o diário de um período da sua vida. Ora o curioso era isto: uma vez atingido o termo do diário, o projecto do romance jogava fora a personagem do romancista. Se na verdade quisesse escrever um dia o romance, devia admitir que não fora apenas o projecto do romance que me levara a manter o diário, isto é, a fazer-me passar da desatenção à atenção e, em consequência, bater à porta de Baba, mas até, concomitantemente, qualquer coisa mais de muito menos elevado e de toda a maneira não literária. Essa qualquer coisa mais eu suprimira-a para construir a figura do romancista, mas agora o projecto do romance constrangia-me a admitir-lhe a existência, mais, a alicerçar sobre ela toda aquela vivência.
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páginas 253-255

'A atenção'
Alberto Moravia
tradução de Pedro da Silveira
edição Livros Unibolso

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