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Hoje, estava para colocar aqui no blogue um texto de 'A atenção' de Alberto Moravia. Isto de manhã por volta das dez horas. Comecei a transcrever mas as letras da edição, que possuo e me foi oferecida pelo Giuliani, são muito pequenas e eu começo a ver mal. Além disso, Gisele, a furacona, resolveu absorver toda a luz que entrava pela minha janela virada a norte. É certo que comprei uma lâmpada led de cinco watt que fornece cinquenta e portanto poderia acender a luz para ver melhor as letras e continuar a transcrever a passagem que geralmente selecciono dos livros que termino de ler. Mas não o fiz, desisti de transcrever e guardei o rascunho, «estou a ficar cegueta... da outra vez, no poema do Giuliani transcrevi que o cão tinha a língua perfurada quando na verdade tinha a língua apenas pendurada, era a palavra 'pendurada' que estava escrita, vê só: um cão punk!» pensei «a Gisela roubou a luz, lá como se chama aquela barragem lá na China que recebe o dinheiro da minha electricidade aumentou-me o tarifário, e eu estou sem paciência para escrever...» Às vezes, desisto facilmente, é uma espécie de mentalização, a ideia de que algo não está bem cresce, vai crescendo ao longo dos dias, e eu como geralmente estou sempre sozinho passo o tempo a pensar, é natural que as ideias cresçam assim, neurónio a neurónio. Às vezes, há uma rotina para me distrair dos meus neurónios e passar o tempo mas outras vezes a agonia instala-se logo que acordo e tomo uma caneca de café de saco pelas nove da manhã. Talvez tenha sido esse o caso hoje. Não, não totalmente. Às vezes, a agonia, a sensação de mente deslocada e fora do seu suporte -- o corpo -- e que me faz abandonar tudo e me estender ao comprido na cama porque não aguento a dor de cabeça, de barriga para baixo sentindo as ondas de energia transfixarem-se-me entre a cabeça e os pulmões, o estômago e a bexiga... às vezes penso que esta sensação se deve a eu na noite anterior não ter tomado os comprimidos, ou pelo menos não me conseguir lembrar de os ter tomado, e enquanto tento refazer a rotina do fim do jantar anterior para me recordar se os tomei ou não, a vontade de agir ou de lutar vai-se, a rotina desfaz-se e mais nada no dia correrá bem, hoje não transcreverei A atenção de Moravia porque estou meio doente, olho pela janela a chuva quase saraiva, o vento perfurando as línguas dos cães e deito-me ao comprido na cama, «hoje não chega correio, tenho de ir buscar a medicação e as molduras mas vou de tarde, talvez, talvez se o tempo abrir, mas senão... fazer o quê?, hoje não tenho vontade de pintar, aquela cor tem de secar antes de eu repintar, não consigo ler, que vou eu fazer hoje, miséria de vida secante!»
O telefone toca, o farmacêutico avisa-me de que a medicação só chega de tarde porque o laboratório não a enviou por o stock ter uma validade curta, o farmacêutico ligou-me para me perguntar se não havia problema, eu disse que não, disse até logo e desliguei. Levantei-me do ninho e decidi pôr a tocar Jac Berrocal no giradiscos. Achei que tinha de consertar um pormenor numa moldura e passei assim meia hora enquanto pela janela relampejava de vez em quando.
Primeiro, preparei um pouco de cartão canelado, cortei um rectângulo e pintei-o a acrílico em tons de azul com nuances adicionadas com amarelo. A minha ideia era colar este rectângulo ao k-line branco e disfarçar o fundo da moldura, porque num canto a placa de baquelite, que era o suporte do quadro pintado, estava amputada e parecia mal aquele branco da k-line por baixo do quadro. Eu tinha pedido ajuda à senhora da loja onde encomendo as molduras e ela sugeriu, caso eu não conseguisse, que ela mesmo abriria o verso da moldura, lascaria com x-acto o papel craft, retiraria as tachas que prendem a k-line à moldura e colaria do lado de dentro o rectângulo de cartão, «mas aí teria de lhe orçamentar a colagem e o senhor como é pintor pode fazer isso, caso não consiga ou tenha medo de danificar venha cá que eu faço... se conseguir venha cá que eu forro-lhe o verso da moldura sem custo adicional.» Na altura, fiquei sensibilizado com a sua ajuda e é por coisas como esta que eu tenho a minha lista de vendedores top para quando preciso de alguma coisa, mesmo que seja o azeite que só compro naquele supermercado, por exemplo. Fiquei sensibilizado e ela chamou-me de pintor, o que fez com que eu pensasse que não basta ser chamado de pintor, tenho também de agir como pintor e foi isso que fiz, hoje, pus-me a reparar um erro de casting: um suporte de baquelite com um corte que o torna iregular num canto e que, por isso, exigiria que eu o tivesse reparado antes sequer de o ter começado a pintar, como este quadro foi começado há dez anos e abandonado, ando ainda hoje a receber as ondas de choque, mas só porque me decidi a resgatá-lo do meu lixo artístico como se ele fosse um filho abandonado, não consigo abandonar uma tela e hoje sofro com os erros de casting, eu crio os erros e depois tento consertá-los, os pragmáticos chamam-me naif.
Almoçei e tomei o meu café de saco, pus-me a pensar que talvez fosse só buscar a medicação, porque está a chover e não queria ir de guarda-chuva numa mão e na outra a moldura para ser fechada na loja, «tanto peso e algo pode correr mal... vou lá amanhã, venho para casa e ponho-me a ler o Rushdie.» Entretanto, o sol por cima das nuvens começou a dar alguma claridade e eu pensei em acabar de transcrever o Moravia, teria tempo até sair às três da tarde mas desisti da ideia. Pus Lydia Lunch a tocar e a minha mente continuou a navegar quase apaticamente, é um daqueles dias em que me apetece não sair da cama, sem vontade até de ouvir som stereo saindo por colunas, nada para querer nada por que agir mas depois pensei «ouço o cd fumo mais um e saio, levo a moldura para fechar levo o guarda-chuva vou à farmácia e depois logo se vê se tenho luz natural ou vontade de ler ou escrever...»
Saí, entrei no metro, subi a rua e entrei na loja, a senhora atendendo uma cliente não deixou de me cumprimentar e eu fiz o mesmo. Veio outro empregado atender-me e eu entreguei a nota de encomenda para levantar e pagar o remanescente das três novas molduras, e agora vou escrever o diálogo para reforçar o que no fundo me levou a chegar a casa e escrever este texto:
-- E este trabalho, para que é?, diz o empregado olhando para a moldura que eu tinha desembrulhado.
-- Aqui, está a ver, foi com a sua colega... e apontei para o canto inferior direito mostrando o remendo de cartão que eu tinha colocado.
O senhor olhou para mim e num tom de voz que me pareceu quase demonstrar que ia resolver um problema criado por um colega disse-me: -- É para forrar?
-- Sim. Disse eu, e fiquei sem saber se ele já sabia o que eu pretendia, por a sua colega lhe ter falado que eu iria lá com este trabalho para finalizar, ou se estava zangado com os colegas que tinham feito um mau trabalho. A senhora olhou para mim e eu senti-lhe alguma mágoa no olhar, talvez ou talvez não, talvez fosse só que eu tenha percebido, que com a minha falta de palavras adequadas para explicar o que pretendia, dei a entender que me queixava de um serviço mal feito e ainda por cima apontei o dedo a dizer quem foi, e tudo isto não passava de um mal-entendido que eu criei, estupidamente não o consertei, o senhor disse que só demorava uns minutos, o trabalho veio finalizado, embrulhou-mo juntamente com os outros três que acabara de pagar e desejámos boa tarde. Saí da loja, a pensar em tudo isto, a pensar se é defeito e um sintoma ou é feitio o eu proceder assim: «a senhora ajudou-me e eu sem perceber o que eu próprio disse dei a entender que a culpa fora dela... quando não foi!, há aqui um padrão, às vezes queixo-me que o mundo me agride, e quantas vezes já não tratei mal as pessoas que me fazem bem?, por mais que tente sai merda de vez em quando.»
Há muita coisa que tenho de melhorar: há um desfasamento entre os meus actos e a consciência dos meus actos e palavras, talvez seja um défice de atenção, talvez, o meu eu-pragmático diz-me apenas para honrares a loja e continuares a lá ir fazer molduras, mas o meu eu-penitente não pode deixar de escrever este texto para registar o erro e pedir desculpa através do éter, não é a primeira vez que recorro a este meio, habituei-me a ele mas gostaria que fossem poucas as vezes em que a ele tenha de recorrer, preferia fazê-lo pessoalmente, e voltar a falar com algumas pessoas e ver se ainda seria possível remendar o caos.
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Claudio Mur
Talvez ela passe por aqui e leia ou um destes dias dê para lhe explicar o que sucedeu
ResponderEliminarProvavelmente ela diria que não se lembra de nada por não querer constrangir o cliente, eu que vou lá regularmente. É isso que vou continuar a fazer: ir lá e tentar não fazer asneira outra vez.
EliminarA minha vida está cheia destes casos, faz-me lembrar aquela série de tv de há uns anos em que o protagonista tinha uma lista de pessoas e acções que queria remendar. acho que se chamava My name is Earl.
obrigado pelo comentário
E depois, sabes o que é triste?, é saber que certas desculpas só são autênticas quando dadas no momento da eventual ofensa. e em certos momentos eu estou desatento ou então bloqueio na situação, como se fosse de raciocínio lento, ficando às vezes a pensar que as pessoas já sabem o que eu pretendo.
EliminarUm exemplo: há dias fiz tenção de ir vender dois livros usados, fiz mentalmente uma ista dos alfarrabistas e da conversa que começaria com o intuito de os vender, porque sei que está difícil vender livros. Pois acredita que o primeiro alfarrabista que entrei, um senhor já talvez com setenta anos me diz: «ora vamos lá ao negócio!» Era como se ele soubesse ao que eu ia. nessa tarde acabei por não ter sorte e em lado nenhum os vendi.