segunda-feira, 29 de abril de 2019

Declaração pessoal de voto

O meu vizinho Giuliani chega com Ximenes, vêm para conversar, ofereçer a pedra. Eu Zulmiro, mal disposto e com a azia de o meu Braga ter sido expoliado pelo árbitro e pelo var, nem sequer lhes ofereci café, obriguei o Giuliani a ir buscar das suas mortalhas, depois eu disse: 
«Uma mortalha e agora que mais?» 
Giu já me conhece, sabe dos meu súbitos humores e apresenta finalmente o material, começa a falar que o Pessoa naquele verso, o poeta é um fingidor, está errado e fala de si, diz que o poeta não finge, diz que escreve sempre a verdade, «eu não minto», diz ele, Giu é o nosso poeta, o poeta da comunidade do além, ainda há quinze dias na casa de cultura nos entretemos com a sua poesia, no final do sarau foi uma corrida aos livros de autor, Giu é o nosso poeta mas hoje eu Zulmiro estou mal disposto, o Ximenes que também é benfiquista como o Giuliani está caladinho que nem um rato e um pouco sonolento. Eu, que sou do Braga desde pequenino, estou irado e descarrego no Giu, digo: «Giu, não te esqueças que nestes meses já li muitos dos teus poemas, já sei as tuas ideias e as tuas contradições, e sim, tu finges, todos os poetas fingem, toda a gente finge, somos todos fingidores, fingimos todos a dor que deveras sentimos, ou não é assim o verso do poema?» 
Ximenes que acha que eu tenho uma concepção vil do mundo, sorri quando vê o Giuliani fazer uma voz de sofrimento e dizer «não, eu não finjo a dor, eu sinto a dor... eu não escrevo mentiras, eu escrevo o que sei.» Mas eu continuo: «Giu, não não é assim, claro que escreves o que sabes, o que sentes, escreves a tua verdade, mas a questão não é essa, eu próprio já escrevi muito, e escrevi a minha verdade, o que sentia e também não poupei nas palavras, escrevi a verdade do que sentia. Mas a verdade é que às vezes aquilo que a gente escreve não é a verdade, a verdade com letra grande, muito do que sentímos não é verdade, às vezes até demos um jeito ao texto para o tornar mais sentido, mais verdadeiro, mais do jeito do que queremos dizer, tás a perceber?»
«Eu acho que os Sonetos vão ser um livro fixe, não é o que gostas mais, Zul?»
Pergunta-me Giuliani, e eu começo a dar a primeira passa do cacete e a tossir, porque não deveria de facto fumar e só fumo porque gosto de fumar (tenho este vício). Neste misto de tosse e ranho, lenço de pano, papel de arroz e filtros de cartão, a minha má-disposição começa a desvanecer-se, continuo fodido com o facto de provavelmente o Benfica ir ganhar mais um campeonato, recordo mesmo ontem no café um senhor idoso dizer para o amigo: «olha, parece como nos tempos do Botas.», continuo fodido mas não preciso de estar fodido com os meus vizinhos, eles não tem culpa de ser benfiquistas nem precisam de se sentir culpados por estarem contentes com o clube do seu coração, eu que sou do Braga desde pequenino e me fiz dragão estou mal disposto mas o poeta Giuliani ofereceu um charro, o meu primo Ximenes elogiou a música andaluza marroquina e eu estou a sentir no cérebro a vibração de jah, as ondas cerebrais intensas junto às orelhas, as pequenas quebras de tensão quando se prende a respiração depois de inspirar o charro, estou agora mais de acordo com a comunidade de iguais e digo ao Giu:
«Giu, já o disse ao Xis, eu não gosto muito dos teus poemas mas respeito-os, respeito a tua ideia de poesia, a tua luta, às vezes um gajo desiste aos vinte e não faz mais nada depois, e tu não, tu já lutas há cinquenta anos, é isso que eu respeito em ti, a poesia é a tua alma, uma pessoa sem alma não vive, se tu não tivesses a poesia não estarias já vivo...»
«Sim, tens razão, mas eu tenho poemas bonitos não achas?, eu acho que quando morrer as pessoas vão sentir a minha falta...»
«Sim Giu» E aqui a gargalhada torpe e irracional vem-me à boca, eu, digo:
«Sim, quando tu morreres muita gente vai sentir a tua falta, vamos todos sentir a falta daquele em quem bater, daquele de quem dizer, daquele que nos oferece charros e nos vai buscar mortalhas, daquele que nos dá uma seca àcerca de um qualquer poeta que nunca ouvímos falar, daquele que nos dá um livro, sim vamos sentir a tua falta eheheh, eu sei Giu que as minhas palavras são deficientes e até irónicas mas eu até acho que te estou a dar um elogio, tu fazes falta a muita gente, quaisquer que sejam as razões há muita gente que gosta de ti, vê só o teu sucesso no sarau!»
«Sim, aquela senhora no outro dia cumprimentou-me e deu-me os parabéns... não queres fazer outro?Apetece-te fumar outro?»
«Porque não?» Mudo o vinil e ponho Bass Culture de Linton Kwesi Johnson, mostro a capa ao Ximenes. «Está um bocado suja, mas o vinil está em bom estado.»
«Sim, era desta colecção, os reggae refreshers, que eu comprava os álbuns em cd, já te falei, foi quando não fiz o checkout que o gajo da pensão me ficou com os cds, não dormi lá nessa noite, não tive vinte euros para fazer o checkout...»
«Outra coisa que me chateia...» interrompe o poeta «...é o presidente vir falar mal dos populismos, vem falar mal do povo, eu escrevi os estatutos do partido popular português e nunca falei mal do povo...»
«Não, Giu, tu não compreendes, as palavras mudaram de significado, elas já não significam o que queriam dizer quando as estudaste, hoje em dia querem dizer outra coisa, tens que compreender: populismo não é falar mal do povo, populismo é os políticos fazerem promessas ao povo para obterem o voto e depois não cumprirem, hoje em dias os partidos populistas são os de extrema-direita, são aqueles que querem acabar com a cultura e a educação universal, querem expulsar os imigrantes, querem mais segurança e prender toda a gente...»
«Em Espanha? Aqui em Portugal?»
«Sim, estão a concorrer às eleições, é o chega, o basta, o caramba, agora imagina que um pobre cabo-verdiano, por exemplo, explorado por qualquer patrão numa obra ilegal, ou então, um casal de idosos a quem expulsam de casa para construir um alojamento local ou qualquer outro caso, imagina que eles também dizem basta, vão votar e sem saberem vêem um partido com esse nome, é lógico que vão votar nesse partido, há uma grande probabilidade, a palavra induz à acção e sem saberem vão votar num partido que a primeira medida que tomaria era expulsar todos os caboverdianos! é assim o populismo, é assim que eles obtêm os votos, é pelo engano, agora Giu, vê lá, não é por tu seres popular que vais votar nele, pois não?»
«Não te preocupes, chega de chegas, basta de bastas, caramba de carambas!»
«Olha, eu vou-te dizer em quem vou votar. Ontem, enquanto não vos chamei chulos a todos aquando do penalti roubado, eu estava a ler uma entrevista no jornal entre o Nuno Melo e o Rui Tavares, e depois em casa li na net que o Nuno Melo diz que o Vox em Espanha não é de extrema-direita, pois é mentira, eles são de facto fascistas e há fascistas em Portugal, tudo o que seja à direita está a tornar-se perigoso, eles mentem, gozam com a ignorância da população, do povo, olha o Bolsonaro no Brasil, ele quer acabar com o estudo de filosofia, quer acabar com a educação gratuita, há muito partido de direita, mesmo esses novos que surgiram agora em Portugal, que querem a mesma coisa, tornar tudo privado e só acessível a quem tiver dinheiro para o pagar, o mesmo na saúde, eles usam a ignorância dos mal-informados, pois eu vou votar no Livre, gosto das ideias do Rui Tavares.»

sábado, 27 de abril de 2019

A casa de Júlio Poeta


'A casa de Júlio Poeta'
óleo sobre tela
54cm por 65cm
2018
ZMB


November 2019:
This painting is now sold.
Thank you



***

Este trabalho foi feito reciclando uma tela já pintada que o Julião encontrou no lixo.
A única coisa que mantive do original foi a textura em tons de verde na parede por cima do Julião.

Daqui a um ou dois anos farão cinquenta anos que J. Alberto Allen Vidal escreve poemas.
Tem dezenas de livros inéditos.
É possivel que uma editora do Porto lhe publique um livro nos próximos meses.
Brevemente, uma associação cultural vai passar no seu écran o filme 'Silencio' de Christophe Bisson 
onde Julião participa juntamente com outros sem-abrigo do Porto. 
Igualmente, na mesma noite poderá igualmente ver-se o filme de Luis Costa chamado 'Júlio Poeta'
Para o próximo ano, é possível que uma Casa da Cultura da freguesia lhe produza um 
sarau cultural onde Julião lerá poemas e, com roupas oferecidas pela junta,
poderá mostrar aos bem-pensantes que no dia-a-dia o desprezam na rua,
que ele é um ser válido apesar de pobre e que merece algumas grandes palmas por escrever poemas
desde antes da queda  da ditadura salazarista.

Cenas do Covil nº4


'Cenas do Covil nº4'
óleo sobre pano cru
55,5cm por 113cm (com grade)
1999 - 2018
ZMB

(For sale, shipping is already added to the price)
it ships rolled up inside a tube

300€ (European Union and UK); 325€ (rest of the world)
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L'homme et son chien


'L'homme et son chien'
óleo sobre tela
60cm por 90cm
2017
ZMB

http://zmb-mur.blogspot.com/2017/11/lhomme-et-son-chien-le-video.html

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sexta-feira, 26 de abril de 2019

«Bandjido!:)»

Eu cheguei lá
Eu cheguei lá
mas me esqueci do que ia dizer
do que ia falar
Eu cheguei lá
Eu cheguei lá
Maria Amélia, eu passei toda a noite sonhando
Maria Amélia, eu passei toda a noite pensando
lindas palavras que eu preparei para lhe dizer
Mas me esqueci
Mas me esqueci
Eu cheguei lá


Reggae é a liberdade dos jovens

O meu primo Ximenes Laurindo Ameixa, hoje confortavelmente sentado no cadeirão a receber a renda pelo seu trabalho de nenhum, mandou-me enviar prà gente de todo o mundo estas duas músicas reggae em baixo.
Acreditamos plenamente que a música consegue curar uma doença depressiva. a música reggae fala de liberdade, de amor por si e pelo semelhante, é uma música um pouco utópica e fora da norma da sociedade em que vivemos.
Um ganzado geralmente é inofensivo e não faz mal a ninguém, é pacífico. Um alcoólico pode tornar-se violento e ofensivo, um heroínamo só pensa em arranjar dinheiro para evitar as dores da ressaca física e pode tornar-se um gatuno, um janado em comprimidos prescritos torna-se irresponsável quando os toma com álcool, diz que está apenas a seguir os conselhos do médico. O dinheiro é ainda a pior droga, a televisão aliena, vivemos rodeados de droga e até precisamos dela para viver o dia a dia.
Quem não tem um guilty pleasure viciante?
Digam-me uma pessoa que não tenha vícios ou paixões escondidas e tantas vezes recalcadas, que falam mal dos vícios do outro mas quanto aos seus preferem ignorar e dizer que não é vício, nem sequer problema?






quinta-feira, 25 de abril de 2019

Tias e beatas de tribunal

Há que ter cuidado com certas mulheres das quais as poucas coisas que sabemos é trabalharem em tribunais, nem que seja a servir café, e que se dizem do lado das «mulheres honestas» que os seus superiores, como aquele juiz que se tornou mediático, pretendem defender por oposição às «mulheres adúlteras» que acabam a castigar em acórdãos. Há que ter cuidado porque podem arranjar expedientes para nos preudicar a vida. Não havendo nada de criminoso a imputar-nos, apenas o fumar de vez em quando um charro, dedicam-se enquanto se imaginam a trabalhar num processo a escrever textos cor-de-rosa onde os personagens masculinos são todos uns escroques em relação às mulheres ou às antigas namoradas. Venho-me apercebendo disso ao longo dos meses. O que me incomoda um pouco, é ver um outro pormenor que eu ficcionei a partir da minha vida ser trucidado, distorcido e adaptado. Eu tenho um pouco a mania da perseguição mas não há texto que ela escreva que não tenha um pormenor que eu não veja como uma espécie de facada literária. É certo que não é plágio mas incomoda-me ver que esta mulher, que também é blogger, insiste em mostrar ao mundo, o que me parece ser, o seu ressabiamento perante os homens. Não tem ela uma vida feliz?, o grande amor da sua vida deixou-a por uma «desavergonhada» e não conseguiu ainda encontrar um marido para quem cozinhar?, porque não ficciona ela histórias bonitas acerca dos seus homens, os seus homens fizeram-lhes todos mal, teve ela alguma vez um homem na vida?
São perguntas que não lhe quis fazer quando tomei café com ela uma única vez, incomodou-me o seu olhar inquisidor quando quis, tal como se fosse polícia ou psiquiatra, saber se eu fumava. Mas não se importou quando eu lhe disse que Prozac ou comprimidos para dormir também são droga e até admitiu que a eles recorreu para curar uma depressão. Tenho eu de dar link e audiência a esta mulher, para quem os meus hábitos e modo de vida são censuráveis, além de na tal nossa conversa não ter surgido nenhuma faísca? Já há alguns meses que a eliminei do facebook.
Tenham cuidado com as mulheres despeitadas, algumas ficarão para tias ou mesmo beatas.
Que nas suas histórias haja ao menos sal, alho ou pimenta será pedir em demasia.

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Eek-a-Mouse oié

O Zulmiro é tão insolente que chega a ser fino, um mano gentil para todas as lojas de discos. Quando lhe chegam as notas azuis à mão, o Zulmiro que também é Maria faz a festa, começa por acordar sem despertador precisamente antes de se inciar a transmissão do programa Palavras de Bolso na rádio clássica e felizmente pública (para qual o Zulmiro Maria, que é Belo de apelido, paga uma taxa na factura da luz àquelas três gargantas chinesas e ao Ameixa, Ximenes Laurindo, seu primo que também beneficia por ser o homem do cadeirão). Depois de ouvir as vozes do programa, levanta a pressiana, oscula o ar, verifica se o sol está presente. Dirige-se à cozinha, prepara café, toma uma chuveirada rápida no polivã, recolhe a chávena de café, volta para o quarto e, enquanto os jornalistas culturais da rádio falam e apresentam as novidades do dia, ele começa a pensar em listas. Ele não sabe o que nasceu primeiro: se as notas azuis, se as listas de discos a obter, aquela reimpressão daquele álbum lendário que acaba de chegar à loja da taune, o Zulmiro pensa «Ora, disco é cultura, cultura é droga fixe, a droga mata a fome, com esta nota azul vou comprar o Gonçalo F. Cardoso e as suas Impressões de uma Ilha, vou ouvir o disco e vou ser feliz ao imaginar-me em Zanzíbar a viver da pintura de cocos», diz Zulmiro que também é Maria que também é Belo, que se vestiu de fato branco do melhor tecido e com um gorro branco a dizer Hamster D, para ir à loja.
Como habitual em todas as lojas que frequenta, em que é um habitual, de cada vez que lá vai é bem tratado, gostam dele em todas as lojas, gostam também quando ele compra aquele disco que mais ninguém compra. Zulmiro sente-se extasiado quando sente que chegou ao disco primeiro que outro vagabundo qualquer e tão insolente quanto ele, gostam tanto dele que a Maria chega a ter ciúmes de tanto sorriso e apertos de mão e promessas que transpiram, porque o mundo vive de promessas, eu cá acho que eles pensam que ele é rico, porque gasta tantas notas azuis em discos como o vizinho em tabaco Regina, os padrinhos em jantares a dois com licor Beirão. O que eles não sabem é o que eu vou contar a seguir, eu que sou o espelho do Zulmiro que também é Maria e também é Belo, fui eu que lhe dei o nome, uma homenagem orgulhosa à tia, e ao maior surrealista António Maria e também ao Ruy, o saudado e saudoso Belo. Tenho a dizer-lhes o seguinte: «O Zulmiro é um drógado!», é um viciado em música em suporte físico, também faz dauneloudes mas se gostar quer ter aquele disco, aquele capa em cartão, «ah!» como ele gosta de observar aquela serigrafia em cartão e capa do segundo disco dos Cassiber à luz do sol, como ele gosta de desmaiar quando ouve o sax do Albert Ayler a chorar em Vibrations... só visto!, eu sei do que falo, estou presente como espelho de canto de quarto nesta sua nova casa, vejo a moca que ele apanha quando pôe o cd gravado da k7 ''Super'' dos Nihil Aut Mors, enfim que dizer... eu quase que aceito o modo de vida dele, ele é feliz assim sendo um drogado musical. Mas para muita gente põe-se um problema: donde vêm as notas azuis? As lojas não se importam, querem é que ele consuma, mas os vizinhos já o acusaram de ser contrabandista e traficante, chegaram a dizer que a droga entrava à noite em casa pela calada, palhaços!, grandes estrumpfas do calhau mais longe do sol!, nem sequer imaginam que a droga vem via postal e entregue pelo carteiro, ainda hoje chegou uma edição de 180 gramas em vinil preto da banda sonora do filme do Gainsbourg, sim o Jetaime!, mas aí o Zulmiro até que ficou desiludido, achou que a música era como droga marada, daquela rena que sabe a petróleo ou acetona (quando não é mesmo madeira, chegou a acontecer), tanta versão do jetaime e nem uma única cantada pela Jane e pelo Serge. Mas o Zulmiro arranjou solução, sabe de um dealer nos Baixos Países que tem para venda uma reimpressão do single, vejam lá!, sete polegadas de droga com a voz da Jane e do Serge por apenas um conto de kenga mais portes... o Zulmiro espera ansiosamente o próximo dia oito, o dia em que chegam as notas azuis, entretanto ele mandou-me enviar, a uma irmã que ele conheceu recentemente numa caixa de comentários, um video de um jamaicano chamado eek-a-mouse:






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sábado, 20 de abril de 2019

Pó de Anjo



Reading of 'Pó de anjo',
a poem written by Paulo da Costa Domingos and inside a 2019 book by the poet called 'Carmes'.
On the background we can hear sounds by the band No Noise Reduction and they are taken from a compilation CD of way out Portuguese music edited by the Ananana label

(um bem-haja ao poeta)

domingo, 14 de abril de 2019

Sara, a rainha cantando coisas bunitas

(Não diga a ninguém)
(Eu não digo a ninguém) Diz-me coisas bunitas Diz-me coisas bunitas Sussurradas ao ouvido com sabor Diz-me Que a minha carapinha te faz lembrar Uma coroa de rainha Diz-me ainda Que nunca viste Um sorriso igual ao meu, só meu Quero ouvir Tanta coisa que só podes falar baixinho Por isso fala comigo Diz-me coisas bunitas Diz-me coisas bunitas Sussurradas ao ouvido com sabor Chego mais perto, dá-me amor É o caminho mais certo Inspira-te, perde a vergonha Diz-me que queres casar comigo E então deixa-te de coisas Perde dessa mania De fingir que nada sentes Diz-me coisas bunitas Diz-me coisas bunitas Sussurradas ao ouvido com sabor Chego mais perto, dá-me amor É o caminho mais certo (Arco-íres, lua-cheia, paz) (Riso de bebê) Entra por baixo da pele Acende a luz no meu peito Embala-me o coração Encontra-me a pulsação Diz-me coisas bunitas Diz-me coisas bunitas Sussurradas ao ouvido com sabor Chego mais perto, dá-me amor É o caminho mais certo Diz-me coisas bunitas Diz-me coisas bunitas Coisas bunitas Diz-me coisas docinhas Coisas bunitas Diz-me coisas bunitas Coisas bunitas Diz-me coisas docinhas Coisas bunitas



https://www.discogs.com/Sara-Tavares-Fitxadu/release/11508276

sábado, 6 de abril de 2019

Mixtape for a kiss

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(Madredeus no youtube)
-- Geralmente eu penso que falo muito mas não faço nada... mas eu já tenho a minha cruz...
(’’a barca da fantasia / o meu sonho acaba tarde / deixa a alma de vigia’’)
-- ... eu não quero cometer os mesmos erros...
(’’acordar é que eu não queria’’)
-- ... estou tentando ser diferente...
-- Vá, escolhe uma música.
-- Eu sou meia míope, eu sem óculos não enxergo!
-- Olha, esta também é fixe!
-- Num gosto.
-- Dá uma oportunidade!
-- Não simpatizei.
-- Ó...
-- Pá, quando gosto gosto, quando não gosto não sou obrigada a...
-- Escolhe aí uma música!
-- Ã... aquela música... a...
-- Amor Electro, a máquina, a nossa música?
-- Isso!
-- Ei já não ouço isto há muito tempo.
-- Quero essa música no meu telemóvel.
-- Tá bem.
(’’não ter o que fazer/ tudo a acontecer’’)
-- Já viste como eu sou uma mulher sortuda?
-- É! És muito prendada!
-- Ihiihihii... na verdade eu sou uma mulher sortuda, toda a gente gosta de mim...
-- Pois...
-- Bom, pelo menos a maior parte dos homens... eu acho que sim...
-- Sim, mas não só, as mulheres também, nem todas te querem foder, por exemplo a Vanda do bar... ela gosta de ti, ela compreende a tua natureza, ela gosta de pessoas como tu... vê-se que é uma pessoa fixe, que encara...
-- Não sei porquê, mas eu acho que tu estás interessado na menina...
-- A Vanda é muito bonita... é bonita, achei interessante, é um regalo para os olhos.
-- Estás interessado nela...
-- Não estou nada, é bonita, mas não vai acontecer nada, não vou fazer nada, não vou...
-- Mas estás interessado...
-- É bonita, é interessante, gostei muito dela hoje, do vestido, das tatuagens...
-- Anda lá, diz a verdade para mim!
-- Não estou nada interessado não... mas gostei.
-- Anda lá, somos amigos pô... quer dizer... eu posso falar das minhas merdas... e tu não falas das tuas porquê?
-- Não... é... é uma mulher e não uma menina, é uma mulher de vinte e cinco anos... deve ser a idade que ela deve ter... tava muito bem vestida... muito bem apresentada para uma empregada de bar... o corpo é fabuloso... as tatuagens são bonitas...
-- humhumm...
-- É atraente... mas agora... não me vou meter com ela, ela está a trabalhar, não vou estragar o trabalho dela... só por causa dum... fetiche... ela é bonita de ver, é fixe para toda a gente, enche o bar, ganha clientes...
-- Ela é carismática...
-- É, ela é um pouco como tu, ela atrai as pessoas aos bares, tal como tu só por estares num bar as pessoas acabam por entrar no bar... ela é igual...
-- Ã, eu fiz quem entrar no bar?
-- Tou a dizer... a tua presença, a tua cara é tão carismática... as pessoas sentem curiosidade...
-- Ah, estás falando do Araújo!
-- Qual Araújo?
-- O negro...
-- Ah aquele... tu disseste que o conhecias do...
-- Sim, mas ele estava ali acompanhado de muitas mulheres...
-- Mas ele quando veio falar contigo, ele estava sózinho...
-- Mas naquele dia que a gente foi lá à esplanada, ele estava com muitas mulheres...
-- Mas estás a falar de quem? Aquele que falou contigo agora neste bar?
-- Sim, o negro.
-- Quando é que eu o vi antes?
-- Eu vi ele quando nós fomos lá na primeira vez...
-- Ah, na Terça-Feira ele estava lá? Não reparei...
-- Eu fui contigo fumar um cigarro, ele olhou para mim, eu olhei, ele sorriu e eu fiz assim...
-- Ã... Não reparei, só reparei hoje pela primeira vez, não tinha reparado nele... olha tens o isqueiro?
-- Eu não, não tenho o teu isqueiro. Ou eu tenho? Deixa eu ver.
-- Ora vê.
-- Não, não tenho, tenho o meu, é... se quiser me revistar?
-- Não...
-- Ah, está aí no teu rabo, estavas sentado nele, olha... já ia levar por tabela!
-- Não... eu estava a perguntar porque assim ajudaste a encontrá-lo.
-- Eu sou tudo menos ladrona! Vê lá, presta atenção, já estás farto de me conhecer.
-- Claro, não estou a dizer nada disso, não entres em filmes, não estou a duvidar de ti, perguntei porque podias tê-lo visto, não é? Para ajudar a encontrar... E agora qual é que queres? Olha, esta é fixe!
-- Não quero, não sei quem é.
-- Pronto, esta agora é fixe!
-- Num gosto, não gosto dessa música!
(The Gift: ’’Talvez por eu não saber falar de cor/ Imaginei’’)
-- Ah gosto!
-- É, é bonita...
-- É, eu só não gosto do princípio da música...
-- Mas tens que dar uma oportunidade...
-- É mesmo uma voz do caralho...
(’’O teu virar de costas/ Um último adeus’’)
-- Sabes que ela é casada com um cantor de heavy-metal? É assim uma junção de mundos diferentes...
-- É mas cada um vive à... ele tem a ideia dele que é cantar o que gosta, aquilo em que acredita... e ela também...
-- Sim, e às vezes colaboram os dois, cantam juntos...
-- E?
-- É fixe, é bonito até.
-- Quer dizer que?
-- Gostam um do outro, gostam de fazer coisas em conjunto, isso é bom...
-- É vero!
-- Olha, esta tem o Rui Veloso, gosta desta?
(Perfume: ’’câmera lenta/ oito ou oitenta)
-- Veríssimo, é o meu amigo, já estive com ele pessoalmente, eu sou uma pobre mas sou uma pobre vip foodasse ihihih
-- Sim já me tinhas falado...
(’’o livro que não li, o filme que não vi’’)
-- Dá-me um beijinho...
-- Tu gosta muito de mim, não gosta?
-- Um bocadinho! Dá-me um beijinho...
-- Au au, olha que eu mordo! Bom, já dei!
-- Só mais um...
-- Never!
-- Jamais?
'

anonim@s do século XXIII

terça-feira, 2 de abril de 2019

Diz que não e dar-te-ei um dólar

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Melindrava-o a minha independência, aquilo a que chamava a minha indiferença. Se me via obrigado a pedir-lhe umas massas, ficava encantado, pois isso proporcionava-lhe ensejo para me pregar um sermão acerca da amizade: «Então também precisas de ter dinheiro?», perguntava, com um grande sorriso de satisfação a alastrar-lhe pela cara toda. «Então o poeta também tem de comer? Bem, bem... É uma sorte poderes recorreres a mim, Henry, meu rapaz, pois eu sou brando contigo, conheço-te, meu filho da mãe sem coração. De quanto precisas? Não tenho muito, mas reparto o que tenho contigo. É justo, não é? Ou achas, meu sacana, que te devo dar tudo quanto tenho e ir pedir emprestado a outro para mim? Suponho que te está a apetecer uma boa refeição, hem? Presunto com ovos não seria suficientemente bom, pois não? E se calhar também gostavas que te levasse de automóvel ao restaurante, hem? Olha, meu menino, levanta-te um bocadinho dessa cadeira, para te meter uma almofada debaixo do cu. Sim, senhor, estás falido! Jesus, falido está tu sempre. Não me lembro de te ter visto, nunca, com dinheiro na algibeira. Ouve cá, alguma vez sentes vergonha de ti mesmo? Falas desses vadios com quem ando... Pois fica sabendo que esses vadios nunca me vêm pedinchar dinheiro como tu. Têm mais orgulho do que tu, prefiririam roubá-lo a vir pedinchar-mo. Mas tu, merda, tu estás cheio de ideias bombásticas, tu queres modificar o mundo e toda essa conversa... não queres trabalhar por dinheiro, oh, não, isso não é para ti! Mas esperas que alguém to dê numa bandeja de prata. Felizmento há tipos como eu, que te compreendem. Precisas de te compreender a ti mesmo, Henry. Andas a sonhar. Toda a gente precisa de comer, ou não sabias? A maioria das pessoas está disposta a trabalhar para se sustentar, não fica na cama todo o dia como tu, que de repente enfias as calças e corres a pedir auxílio ao primeiro amigo que encontras. Supõe que não me encontravas. Que farias? Não respondas... sei o que vais dizer. Mas, escuta, não podes continuar toda a vida assim. Claro que falas bem e é um prazer ouvir-te. És o único tipo que conheço com quem gosto realmente de falar. Mas aonde te conduzirá isso? Um destes dias filam-te por vadiagem. Sabes que não passas de um vadio, não sabes? Nem sequer chegas aos calcanhares dos outros vadios contra os quais pregas. Onde estás quando eu estou em apuros? Ninguém te encontra. Não respondes às minhas cartas, não atendes os telefones e às vezes até te escondes quando te vou visitar. Escuta, eu sei... não precisas de me explicar. Sei que não estás interessado em ouvir as minhas histórias a toda a hora. Mas, merda, às vezes preciso realmente de falar contigo. Tu bem te importas, porém. Desde que estejas protegido da chuva e a meter outra refeição no papo, sentes-te feliz. Não pensas nos teus amigos, a não ser quando estás desesperado, isso não é maneira de um gajo proceder, pois não? Diz que não e dar-te-ei um dólar. Chiça, Henry, és o único verdadeiro amigo que tenho, mas também és um grandessíssimo interesseiro. És um filho da puta de um não-presta-para-nada nato. Preferes morrer de fome a deitar a mão a qualquer coisa de útil...»
'

, páginas 255 - 256

'O Trópico de Capricórnio'
Henry Miller
Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues
Edição Livros do Brasil