terça-feira, 2 de abril de 2019

Diz que não e dar-te-ei um dólar

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Melindrava-o a minha independência, aquilo a que chamava a minha indiferença. Se me via obrigado a pedir-lhe umas massas, ficava encantado, pois isso proporcionava-lhe ensejo para me pregar um sermão acerca da amizade: «Então também precisas de ter dinheiro?», perguntava, com um grande sorriso de satisfação a alastrar-lhe pela cara toda. «Então o poeta também tem de comer? Bem, bem... É uma sorte poderes recorreres a mim, Henry, meu rapaz, pois eu sou brando contigo, conheço-te, meu filho da mãe sem coração. De quanto precisas? Não tenho muito, mas reparto o que tenho contigo. É justo, não é? Ou achas, meu sacana, que te devo dar tudo quanto tenho e ir pedir emprestado a outro para mim? Suponho que te está a apetecer uma boa refeição, hem? Presunto com ovos não seria suficientemente bom, pois não? E se calhar também gostavas que te levasse de automóvel ao restaurante, hem? Olha, meu menino, levanta-te um bocadinho dessa cadeira, para te meter uma almofada debaixo do cu. Sim, senhor, estás falido! Jesus, falido está tu sempre. Não me lembro de te ter visto, nunca, com dinheiro na algibeira. Ouve cá, alguma vez sentes vergonha de ti mesmo? Falas desses vadios com quem ando... Pois fica sabendo que esses vadios nunca me vêm pedinchar dinheiro como tu. Têm mais orgulho do que tu, prefiririam roubá-lo a vir pedinchar-mo. Mas tu, merda, tu estás cheio de ideias bombásticas, tu queres modificar o mundo e toda essa conversa... não queres trabalhar por dinheiro, oh, não, isso não é para ti! Mas esperas que alguém to dê numa bandeja de prata. Felizmento há tipos como eu, que te compreendem. Precisas de te compreender a ti mesmo, Henry. Andas a sonhar. Toda a gente precisa de comer, ou não sabias? A maioria das pessoas está disposta a trabalhar para se sustentar, não fica na cama todo o dia como tu, que de repente enfias as calças e corres a pedir auxílio ao primeiro amigo que encontras. Supõe que não me encontravas. Que farias? Não respondas... sei o que vais dizer. Mas, escuta, não podes continuar toda a vida assim. Claro que falas bem e é um prazer ouvir-te. És o único tipo que conheço com quem gosto realmente de falar. Mas aonde te conduzirá isso? Um destes dias filam-te por vadiagem. Sabes que não passas de um vadio, não sabes? Nem sequer chegas aos calcanhares dos outros vadios contra os quais pregas. Onde estás quando eu estou em apuros? Ninguém te encontra. Não respondes às minhas cartas, não atendes os telefones e às vezes até te escondes quando te vou visitar. Escuta, eu sei... não precisas de me explicar. Sei que não estás interessado em ouvir as minhas histórias a toda a hora. Mas, merda, às vezes preciso realmente de falar contigo. Tu bem te importas, porém. Desde que estejas protegido da chuva e a meter outra refeição no papo, sentes-te feliz. Não pensas nos teus amigos, a não ser quando estás desesperado, isso não é maneira de um gajo proceder, pois não? Diz que não e dar-te-ei um dólar. Chiça, Henry, és o único verdadeiro amigo que tenho, mas também és um grandessíssimo interesseiro. És um filho da puta de um não-presta-para-nada nato. Preferes morrer de fome a deitar a mão a qualquer coisa de útil...»
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, páginas 255 - 256

'O Trópico de Capricórnio'
Henry Miller
Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues
Edição Livros do Brasil

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