O meu vizinho Giuliani chega com Ximenes, vêm para conversar, ofereçer a pedra. Eu Zulmiro, mal disposto e com a azia de o meu Braga ter sido expoliado pelo árbitro e pelo var, nem sequer lhes ofereci café, obriguei o Giuliani a ir buscar das suas mortalhas, depois eu disse:
«Uma mortalha e agora que mais?»
Giu já me conhece, sabe dos meu súbitos humores e apresenta finalmente o material, começa a falar que o Pessoa naquele verso, o poeta é um fingidor, está errado e fala de si, diz que o poeta não finge, diz que escreve sempre a verdade, «eu não minto», diz ele, Giu é o nosso poeta, o poeta da comunidade do além, ainda há quinze dias na casa de cultura nos entretemos com a sua poesia, no final do sarau foi uma corrida aos livros de autor, Giu é o nosso poeta mas hoje eu Zulmiro estou mal disposto, o Ximenes que também é benfiquista como o Giuliani está caladinho que nem um rato e um pouco sonolento. Eu, que sou do Braga desde pequenino, estou irado e descarrego no Giu, digo: «Giu, não te esqueças que nestes meses já li muitos dos teus poemas, já sei as tuas ideias e as tuas contradições, e sim, tu finges, todos os poetas fingem, toda a gente finge, somos todos fingidores, fingimos todos a dor que deveras sentimos, ou não é assim o verso do poema?»
Ximenes que acha que eu tenho uma concepção vil do mundo, sorri quando vê o Giuliani fazer uma voz de sofrimento e dizer «não, eu não finjo a dor, eu sinto a dor... eu não escrevo mentiras, eu escrevo o que sei.» Mas eu continuo: «Giu, não não é assim, claro que escreves o que sabes, o que sentes, escreves a tua verdade, mas a questão não é essa, eu próprio já escrevi muito, e escrevi a minha verdade, o que sentia e também não poupei nas palavras, escrevi a verdade do que sentia. Mas a verdade é que às vezes aquilo que a gente escreve não é a verdade, a verdade com letra grande, muito do que sentímos não é verdade, às vezes até demos um jeito ao texto para o tornar mais sentido, mais verdadeiro, mais do jeito do que queremos dizer, tás a perceber?»
«Eu acho que os Sonetos vão ser um livro fixe, não é o que gostas mais, Zul?»
Pergunta-me Giuliani, e eu começo a dar a primeira passa do cacete e a tossir, porque não deveria de facto fumar e só fumo porque gosto de fumar (tenho este vício). Neste misto de tosse e ranho, lenço de pano, papel de arroz e filtros de cartão, a minha má-disposição começa a desvanecer-se, continuo fodido com o facto de provavelmente o Benfica ir ganhar mais um campeonato, recordo mesmo ontem no café um senhor idoso dizer para o amigo: «olha, parece como nos tempos do Botas.», continuo fodido mas não preciso de estar fodido com os meus vizinhos, eles não tem culpa de ser benfiquistas nem precisam de se sentir culpados por estarem contentes com o clube do seu coração, eu que sou do Braga desde pequenino e me fiz dragão estou mal disposto mas o poeta Giuliani ofereceu um charro, o meu primo Ximenes elogiou a música andaluza marroquina e eu estou a sentir no cérebro a vibração de jah, as ondas cerebrais intensas junto às orelhas, as pequenas quebras de tensão quando se prende a respiração depois de inspirar o charro, estou agora mais de acordo com a comunidade de iguais e digo ao Giu:
«Giu, já o disse ao Xis, eu não gosto muito dos teus poemas mas respeito-os, respeito a tua ideia de poesia, a tua luta, às vezes um gajo desiste aos vinte e não faz mais nada depois, e tu não, tu já lutas há cinquenta anos, é isso que eu respeito em ti, a poesia é a tua alma, uma pessoa sem alma não vive, se tu não tivesses a poesia não estarias já vivo...»
«Sim, tens razão, mas eu tenho poemas bonitos não achas?, eu acho que quando morrer as pessoas vão sentir a minha falta...»
«Sim Giu» E aqui a gargalhada torpe e irracional vem-me à boca, eu, digo:
«Sim, quando tu morreres muita gente vai sentir a tua falta, vamos todos sentir a falta daquele em quem bater, daquele de quem dizer, daquele que nos oferece charros e nos vai buscar mortalhas, daquele que nos dá uma seca àcerca de um qualquer poeta que nunca ouvímos falar, daquele que nos dá um livro, sim vamos sentir a tua falta eheheh, eu sei Giu que as minhas palavras são deficientes e até irónicas mas eu até acho que te estou a dar um elogio, tu fazes falta a muita gente, quaisquer que sejam as razões há muita gente que gosta de ti, vê só o teu sucesso no sarau!»
«Sim, aquela senhora no outro dia cumprimentou-me e deu-me os parabéns... não queres fazer outro?Apetece-te fumar outro?»
«Porque não?» Mudo o vinil e ponho Bass Culture de Linton Kwesi Johnson, mostro a capa ao Ximenes. «Está um bocado suja, mas o vinil está em bom estado.»
«Sim, era desta colecção, os reggae refreshers, que eu comprava os álbuns em cd, já te falei, foi quando não fiz o checkout que o gajo da pensão me ficou com os cds, não dormi lá nessa noite, não tive vinte euros para fazer o checkout...»
«Outra coisa que me chateia...» interrompe o poeta «...é o presidente vir falar mal dos populismos, vem falar mal do povo, eu escrevi os estatutos do partido popular português e nunca falei mal do povo...»
«Não, Giu, tu não compreendes, as palavras mudaram de significado, elas já não significam o que queriam dizer quando as estudaste, hoje em dia querem dizer outra coisa, tens que compreender: populismo não é falar mal do povo, populismo é os políticos fazerem promessas ao povo para obterem o voto e depois não cumprirem, hoje em dias os partidos populistas são os de extrema-direita, são aqueles que querem acabar com a cultura e a educação universal, querem expulsar os imigrantes, querem mais segurança e prender toda a gente...»
«Em Espanha? Aqui em Portugal?»
«Sim, estão a concorrer às eleições, é o chega, o basta, o caramba, agora imagina que um pobre cabo-verdiano, por exemplo, explorado por qualquer patrão numa obra ilegal, ou então, um casal de idosos a quem expulsam de casa para construir um alojamento local ou qualquer outro caso, imagina que eles também dizem basta, vão votar e sem saberem vêem um partido com esse nome, é lógico que vão votar nesse partido, há uma grande probabilidade, a palavra induz à acção e sem saberem vão votar num partido que a primeira medida que tomaria era expulsar todos os caboverdianos! é assim o populismo, é assim que eles obtêm os votos, é pelo engano, agora Giu, vê lá, não é por tu seres popular que vais votar nele, pois não?»
«Não te preocupes, chega de chegas, basta de bastas, caramba de carambas!»
«Olha, eu vou-te dizer em quem vou votar. Ontem, enquanto não vos chamei chulos a todos aquando do penalti roubado, eu estava a ler uma entrevista no jornal entre o Nuno Melo e o Rui Tavares, e depois em casa li na net que o Nuno Melo diz que o Vox em Espanha não é de extrema-direita, pois é mentira, eles são de facto fascistas e há fascistas em Portugal, tudo o que seja à direita está a tornar-se perigoso, eles mentem, gozam com a ignorância da população, do povo, olha o Bolsonaro no Brasil, ele quer acabar com o estudo de filosofia, quer acabar com a educação gratuita, há muito partido de direita, mesmo esses novos que surgiram agora em Portugal, que querem a mesma coisa, tornar tudo privado e só acessível a quem tiver dinheiro para o pagar, o mesmo na saúde, eles usam a ignorância dos mal-informados, pois eu vou votar no Livre, gosto das ideias do Rui Tavares.»
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