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Levei as mãos à altura dos olhos para as examinar, mãos humanas, sujas, com dedos esfolados pelo trabalho como cepas de videira, mirei-as e baixei-as bruscamente com desprezo, deixando-as a baloiçar, e nesse momento soou a pausa matinal, a corrente parou e os operários e operárias sentaram-se debaixo de um grande quadro cheio de pioneses, comunicados e toda a espécie de papelada, tinham posto uma garrafa de leite à sua frente e desembrulhavam a merenda levada numa caixa pela empregada; comiam devagar e iam alternando as sanduíches de salame e de queijo com goles de leite e sumo de frutas, riam e conversavam, e eu tive de me agarrar firmemente ao corrimão porque, chegando-me aos ouvidos fragmentos das suas conversas, fiquei a saber que estes jovens formavam uma brigada socialista de trabalho, que todas as sextas-feiras iam na camioneta da empresa para um chalé da mesma nas montanhas dos Gigantes. Quando acabaram de comer, acenderam os cigarros, e fiquei a saber que no ano anterior tinham ido em excursão a Itália e a França e que este ano se preparavam para uma viagem à Bulgária e à Grécia, e quando os vi elaborarem tranquilamente a lista de participantes e convencerem-se mutuamente a irem todos juntos à Grécia, então não me admirei de vê-los despirem as camisolas, já o sol ia alto, para se bronzearem em tronco nu, combinando se, durante a tarde, haviam de ir nadar à Piscina Amarela ou jogar futebol em Modrany. As férias na Grécia deixaram-me abalado; eu, que me projectava na Grécia antiga apenas através da leitura de Herder e de Hegel, e me iniciara na visão dionisíaca do mundo em Friedrich Nietzsche, para dizer a verdade, nunca tinha ido de férias, gastava-as quase todas a pôr o trabalho em dia, por cada falta injustificada o chefe descontava-me dois dias, e se me sobrava algum dia, preferia que mo pagassem e ia trabalhar, pois tinha sempre trabalho em atraso; por baixo do pátio e no próprio pátio, havia sempre imenso papel, mais do que aquele que eu era capaz de empacotar, de modo que, ao longo destes trinta e cinco anos, tenho vivido diariamente o meu complexo de Sísifo, como escrevera tão bem o senhor Sartre, e ainda melhor o senhor Camus, porque quantos mais pacotes levavam do pátio, mais papel velho caía na minha cave, e assim indefinidamente, enquanto a brigadda socialista de trabalho, aqui em Bubny, tinha sempre o trabalho em dia. Tinham voltado todos ao trabalho, bronzeados -- o sol realça-lhes a cor dos corpos de efebos gregos --, não estavam minimamente perturbados com o facto de irem à Hélade nas férias e nada saberem sobre Aristóteles, Platão e Goethe, essa extensão da Grécia antiga, continuavam a trabalhar serenamente, e a separar o miolo dos livros das suas capas, arremessando as páginas apavoradas e eriçadas de medo para o tapete rolante, com a indiferença e calma, sem imaginarem o que um livro significa; afinal, alguém teve de escrever o livro, alguém teve de o ilustrar, alguém teve de o compor, alguém teve de o rever, alguém teve de o compor e de o rever de novo antes de o compor definitivamente, alguém teve de o imprimir e alguém teve de o ler uma última vez antes de o voltar a pôr, folha a folha, numa máquina que o encadernou, alguém teve de pegar nos livros e de os atar e empacotar, e alguém teve de fazer as contas a todo o trabalho que o livro deu, e alguém teve de decidir que este livro não se destinava a ser lido, alguém teve de o censurar e de ordenar que o deitassem no lixo, alguém teve de empilhar os livros no armazém, alguém teve de carregar novamente o camião e alguém teve de trazer os pacotes de livros até aqui, onde os operários e as operárias com luvas vermelhas, azuis, amarelas e alaranjadas lhes arrancam as entranhas e as deitam para o tapete rolante, que, imperturbável mas com movimentos precisos, leva as páginas eriçadas para debaixo da prensa gigantesca, que as comprime em pacotes, pacotes estes que vão para as fábricas de papel, onde os livros acabarão transformados em papel branco, inocente, sem a mácula das letras, para que novos livros possam ser impressos...
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páginas 99 - 103
'Uma solidão demasiado ruidosa'
Bohumil Hrabal
tradução de Ludmila Dismanová
edição Antígona
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