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Terror e medo. Mais estranho que a bondade, é como se fosse a última vez que o jovem deus A beijou ou, então, ninguém viu o burro observar três corvos durante
três dias e nascer morto por alturas da terceira semana de Outono.
Terror e medo.
Foi quando o pó me bate mal e eu bloqueio.
Estou na BusStation às cinco da manhã. As luzes acendem-se na última música. Ouve-se Frank Sinatra cantar New York New York. Ouvem-se os clarinetes, os trompetes, os saxofones, new york new york, a BusStation está a fechar. De dia é restaurante, esplanada e parque temático,
à noite é a discoteca mais frequentada, a gerência aluga camionetas de longo curso para ir buscar os dancistas à cidade. Estou com mais um ou dois amigos não habituais e não tenho boleia.
Não há lugar para mim nos carros. Um deles vem comigo procurar no parque de estacionamento alguém que me possa dar boleia. Encontramos. Sou convidado a entrar no carro de um homem de talvez quarenta e
cinco anos, grisalho, sozinho ao volante. Sento-me ao lado dele, apresentamo-nos, ele diz que trabalha em feiras mas não parece cigano, não tem cara de cigano, é só um anónimo que decidiu
vir ao parque de estacionamento ver o ambiente, esteve por ali, talvez tenha mesmo pago bilhete para entrar. Pergunta-me quem eu sou e eu digo que sou estudante, agradeço ele dar-me boleia para a cidade. Continuamos
a falar e, de um momento para o outro, começa a falar de heroína, diz que é consumidor de heroína e, como vê que eu nada sei, começa a explicar os efeitos da heroína, o que se
sente, as precauções, diz que se a gente tiver sempre o produto podemos levar uma vida alegre, calma e confortável, diz que não devemos estar agarrados para não sentirmos a dependência
física.
Agora diz que vai fumar neste momento, cinco e meia da manhã. As pessoas já saíram todas do parque, já não há carros no parque e o que ele faz é
retirar o autorrádio da consola e, por trás, buscar um pequeno saco de plástico com castanha. Vai ao bolso e da carteira retira a prata, pega numa caneta bic laranja azul, retira-lhe a carga, cola uma fitacola
no furo da caneta desmaterializada e transformada em canudo, abre o saco de plástico, retira um bocado de pó, espalha-o na folha de estanho, aquece com o isqueiro por baixo, e dá um, dois riscos de fumo,
duas passas calmas e demoradas. Pergunta-me se quero fumar e eu digo que sim, quero eperimentar. Ele diz como eu devo fazer. Diz para eu segurar o canudo e aspirar o fumo que surge à medida que ele vai dando calor por
baixo da prata com o isqueiro. Dou uma passa só. Dou duas passas.
O que ele diz é verdade, começo a falar com ele, sinto mais segurança nas minhas palavras, já não estou tímido como estava, sou um aprendiz a ser
baptizado, sou um aluno confiante.
Ele diz que agora vamos sair e voltar à cidade, diz que me leva a casa, pergunta-me para que lado eu moro. Passamos pela bomba de gasolina junto aos acessos da autoestrada. Estacionamos.
Ele vai oferecer-me um café. Entramos e eu sinto-me como um executivo de gravata desapertada ao final do dia de trabalho a entrar no seu bar de excelência, a pedir ao seu empregado F de estimação
um scotche com gelo e a conversar com este e aquele sobre os câmbios na bolsa, e a programar mentalmente os detalhes da mulher que vai tentar encontrar esta noite para levar a jantar. É assim que me sinto, esqueço
a Maria, esqueço até a Dina Dois, a mulher de quem ainda não falei e que vi há dias na rua, cabelo verde longo, jeans azuis, alta e esguia, sapatilhas e mãos nos bolsos, tem um ar de neve,
uma frieza que combina com um certo elã de divina fatal, é nela que penso agora, confiante que estou, tomando um café com um feirante que me vai levar a casa, após me proporcionar uma experiência,
que eu há muito desejava ter, uma experiência feliz.
Saímos da bomba, entramos no carro, ele entra na autoestrada e sai no primeiro desvio, digo-lhe que a minha casa é perto da paragem ali mais à frente naquele viaduto.
Despedimo-nos. Seis e pouco da madrugada, o sol a nascer.
Venho para casa e não me apetece dormir para já. Vou para a sala, ponho uma cassete de Pop Dell’Arte, toca aquela música O amor é um gajo estranho e eu lembro-me que eles vêm ao dancíngue Passatempo no próximo Sábado. Mas o que recordo é a frase: o amor nunca
me mente quando eu me venho na sua boca. Esta música fica para sempre associada a Maria. Ó Maria como podíamos nós ser almas gémeas se és mulher e não gostas desta música?
Esta música que te gravei e ofereci, pela qual te usei para saber se me eras verdadeira ou se me mentias, e se me amavas e se mo provavas, e eu fiz-te tanto mal, este rife de guitarra ficará para sempre na minha
memória, o bar que tocar esta música será o meu porto seguro.
No Sábado seguinte, estou com o J e o L no Passatempo. Uma meia hora antes do concerto, eles dão na prata, perguntam se eu quero e eu digo que não. Vemos o concerto,
eu gosto do aspecto do Peste, de camisa branca com folhos e cabelo preto comprido frisado, vê-se que está com uma moca total e que talvez esteja a apanhar ele próprio uma seca, há poucos assistentes.
Mas Peste é sempre bom de ver e eu gosto do som. Acaba o concerto e vamos ao Armenia. Nada de novo, lá venho para casa.
Mas eis que dou novo bafo uns dias depois e este não tem boas consequências. Estou em casa de J que comecei a detestar e connosco está um estudante de química.
J agora compra a sua meia grama e fuma-a em meia hora. Vomita e ainda sente prazer. O estudante treme, quer dar um bafo. J nega-lho, ele põe-se de joelhos implorando, J diz para ele esperar, vira-se para mim e oferece-me,
eu aceito, dou um bafo e deixo-os, venho até ao Armenia ver o ambiente, aquela casa é deprimente, ao ponto a que chega a ressaca psicológica e depois a física.
Estou calmo, encosto-me ao balcão, peço uma cerveja, venho agora para os pilares de osso que formam a divisória entre a sala de bilhar e a pista de dança, ao
fundo o dj.
A Berta aparece. Tem o cabelo ondulado, castanho escuro, é minha conterrânea e boa estudante, embora emperrando nas cadeiras de matemática é boa nas cadeiras específicas,
ela sabe mais do que eu e, mesmo que eu acabe primeiro que ela o nosso curso, sinto que o futuro é para pessoas como ela, ela tem paixão eu não. A Berta vem ter comigo porque simpatiza comigo, ela tem
namorado que vai todos os dias de comboio para casa e que é meu amigo, eu simpatizo com ela, gosto de falar com ela.
Estamos aqui às três da manhã, eu com uma moca de heroína, ela tentando falar comigo, a rir-se para mim tentando contar uma anedota, e tentando que eu me ria,
ela sente especial carinho por mim, já uma vez nos encontrámos na BusStation ao fim da tarde de aulas, e depois de uns finos e uma conversa beijámo-nos como se nada fosse e nada precisasse de ser dito,
e do mesmo modo nos separámos, ambos sabendo que o namorado é nosso amigo e que nada se passou de facto, apenas uns beijos sedentos e espontâneos sem explicação. Mas agora ela está
aqui comigo e eu com uma moca de heroína, ela fala, ela ri-se, ela quer companhia, ela quer que eu fale com ela e eu não consigo abrir a boca, quero formar um bom pensamento e ele não se gera, os músculos
da boca estão rijos, tudo o que digo é: iá iá.
Ela acaba por se ir embora talvez despeitada mas sem saber porque estou eu assim. Eu sinto-me mal, a noite social acabou para mim. Venho-me embora. Chego a casa às quatro da manhã.
Ainda tenho um charro, ponho-me a ouvir o Legend do Bob Marley e digo: a partir de agora, para mim, a moca vai ser sempre e só o charro e mais nada, nunca mais
heroína, torna-me associal. Gostei a primeira vez, a heroína é boa quando a gente controla tudo e não precisa de mais nada, tem tudo à mão e não precisa de sair de casa, tendo
heroína, tendo comida, tendo tabaco, tendo mulher ou não, a heroína substitui a mulher, mas não gostei do que já vi, a literatura precisava de confirmação, hoje tive uma má
tripe, não consegui entreter a Berta, heroína nunca mais. Terror e medo nunca mais.
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Claudio Mur
Acredito que qualquer motivo é bom para dizer à branca que "nunca mais", mas este aqui em apreço, o de não conseguires "entreter a Berta", até à data, é aquele que melhor me soa! ;)
ResponderEliminarSim e para mim tem-me deixado longe da branca e da castanha. O sentimento de deixar ficar mal uma mulher foi e é para mim terrível. nem sempre sou ou ajo lucidamente mas a mulher para mim é mais importante que a droga dura, só concedo nas drogas leves que nos proporcionam conversa e ternura.
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