sábado, 31 de outubro de 2020

«Sereno Variável» exposição colectiva em S. João da Madeira, Portugal

 



The exhibition “Sereno Variável” is now open to the public at the
Centro de Arte Oliva
.
The exhibition catalogue design by Dayana Lucas take shape in the format of a newspaper.
Make sure to grab yours when visit the exhibition.
Curated by Antonia Gaeta, #SerenoVariável is a story, a destiny, a form of personal writing, the study of a collection, or perhaps the invention of a reality where ogni pensiero vola (every thought flies) and which contains everything – every gesture, every writing, every rumour, every discovery, every scenic architecture, perspective and turnaround.

Featuring works by Abraham Hadad, Agatha Wojciechowsky, Agnès Baillon, Alain Lacoste, Albino Braz, Alekos Fassianos, Alessandra Michelangelo, Alexandre Lobanov, Almazov (Nicolaï Vorobiov), Aloïse Corbaz, Ana Carrondo, Anónimo espanhol (Collection Lafora), August Walla, Aurel Iselstöger, Barbara Demlczuk, C.V.M. (Carlos Victor Martins), Carlo Franco Stella, Christina Canetti, Daldo Marte, Davood Koochaki, Derrick Alexis Coard, Donald Mitchell, Donovan Durham, Dusan Kusmic, Dwight Mackintosh, Edmund Monsiel, Egidio Cuniberti, Ergasto Monichon, Ernst Kolb, Eugene von Bruenchenhein, Evaristo Rodrigues, Franck Lundangi, Friedrich Schröder-Sonnenstern, Gabriel Bien-Aimé, Gerald DePrie, Giovanni Battista Podestà, Giovanni Bosco, Gorgali Lorestani, Guo Fengyi, Hans Verschoor, Henry Speller, Igor Andreev, Jaber (Al-Mahjoub Jaber), Jacqueline Bartes, Jaime Fernandes, James Deeds, Janko Domsic, Jim Delarge, Joaquim Vicens Gironella, Johann Fischer, Johann Garber, Johann Hauser, John Henry Toney, Jorge Alberti Cadi, José Manuel Egea, Josef Karl Rädler, Joseph Barbiero, Josette Rispal, Karl Vondal, Kashinath Chawan, Lewis Smith, Lubos Plný, Malcom McKesson, Manuel Bonifácio, Manuel Carrondo, Marco Berlanda, Margarethe Held, Marilena Pelosi, Martha Grünenwaldt, Mary T. Smith, Masao Obata, Maurice Rapin, Michel Macréau, Miron Kiropol, Miroslav Tichý, Misleidys Francisca Castillo Pedroso, Mose Tolliver, Mozart Guerra, Nacius Joseph, Nina Karasek (Joële), P. Veerasamy, Paul Amar, Pépé Vignes (Joseph Vignes), Philipp Schöpke, Pierre Dessons, Pietro Ghizzardi, Prophet Royal Robertson, Raimundo Camilo, Reinaldo Eckenberger, Robert Combas, Roy Wenzel, Simone Le Carré-Galimard, Ted Gordon, Terry Turrell, Thornton Dial, Vitalis Cepkauskas, Wladyslaw Grygny, Ymène Chetouane, Zbyněk Semerák, ZMB (Rui Lourenço).
Discover artworks of intelligent creatures in the midst of shadows of mannerism and grotesque, with echoes of medieval literature and Central European epics. Within the exhibition rooms, the artworks are accompanied by mythological and enigmatic references in the form of masks, satires and illusionistic games.
On view until May 2, 2021.


#TregerSaintSilvestreCollection
#ArtBrut

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

A refutação do professor O



'

A refutação do professor O,
porque [até] o monstro precisa de amigos!, já o cantaram os Ornatos

- Hello professor O.! How are you keeping your self lately man?

- I'm fine man! And how are you, your self man? Are you doing all right man?

- Bem vamos lá acabar com estas tretas e falar… man!

- Tens aí a cena, faz esse enquanto eu ponho aqui um disco. Vai ser para arrasar.

- E que vais pôr?

- Halloween, a versão maxi dos Sonic Youth.

- Ah, lembro-me bem, de um lado Flower e do outro Halloween.

- Então, o que fizeste até ao dia de hoje?

Flower apanapa, svieira halloween e kim no muro do terraço.

Long brown curly hair and some weed in the belly, lábios de Cabinda.

Long black wavy hair and brown red breasts, lábios da Buraca.

A flor no meu pelourinho e tu olhando colada em mim, desejando que te dissolva.

O teu corpo animal olhando-me das dunas, eu que fotografo a possessão.

O teu desejo de me possuir nas nuvens porque te ofereci uma rosa vermelha.

Aquilo que ela é comigo eu sou com ela.

Às vezes a flor mostra-se infantil e a abóbora introjecta.

Horas mais tarde a abóbora projecta na musa o nosso interior ingénuo.

Um fio de prumo, um ponto de equilíbrio perfilando-se num trajecto em forma de ∞.

Às vezes a flor suga-me a consciência e a abóbora alcança a beleza.

Horas mais tarde a abóbora com uma tocha sugará a consciência da musa.

Que conclusão tirar de um maluco com meios de escape online?

Balanço, jingo, tendo e opto dizendo: não é esta a minha canção.

Apenas para sentir a convolução de mim com o absurdo em forma de ∞.

O resultado desta aniquilação: picos de existência e picas na bochecha do cu.

Escrevo que não sou profeta nem professor nem doutor ou médico.

No entanto filosofo e digo: a desordem de personalidades múltiplas é

Verdadeiramente o suprassumo da loucura, a verdadeira fragmentação.

A esquizofrenia é aquele estado de redução ao menos que zero,

À não consciência, onde no vazio invento o caos apenas para me sentir,

Personagens e identidades actuando para ser capaz de sentir a experiência de existir.

A fragmentação é teatral, perco-me no sonho devir ser algo.

Posso ser confundido ou usado como doença.

Serei mais talvez um modo de vida, uma dádiva, um potencial de ser.

Sempre que não me encaixo, sempre que pressinto que o mundo me oprime,

Lembro-me de partir e experienciar nova experiência de vida e se partisse hoje

Levaria como sempre comigo um objecto com valor fetichista.

Desta vez seria uma embalagem de calgon com resíduo do The Singer de Galás.

A pensar no feitiço, o professor O está hoje em casa a ouvir O disco. Diz:

Uma desgraçada berrando assim a um microfone,

Com o seu próprio acompanhamento de piano o nosso sangue pecador,

Berrando no dia do juízo final a nossa língua assassina.

Seremos a poeira, o musgo da laje gargalhando, fantasmando os viajantes in love.

O pintor muda uma vez mais de ambiente e na mesma sala vê um filme.

O que significa que mudou uma vez mais de cidade, agora habita Anexus 51.

Vê uma comédia com famílias felizes. As filhas crescem e irão para a faculdade.

O que elas não irão fazer em Lá? Festas e orgias?!, diz a personagem.

O que os rapazes não lhes farão, às minhas inocentes filhas!, ai meu deus!

Ah que raiva! 'Não sei qual das três amei menos…', relembra o professor O.

Então eu pintor rio-me da prole que não tenho.

Não tenho remorso. Agora… pouco provável que as venha a ter.

Deixo essa felicidade ansiolítica para o falecido professor que acabo de fumar.

As filhinhas queridas crescerão, ao mesmo tempo as suas maminhas.

Uma voz canta agora em memória cache:

Daddy's coming! Come to daddy!

Yeah! He's a bit of a control freak. Oh! She's a lady of doom.

Em solidariedade cada um de nós seguirá o seu próprio caminho.

A voz do professor raciocina ao dar o último suspiro neste dia no fim de mundo:

Deixei tudo, tive oportunidades, fodi tudo.

Desperdicei tudo por causa da arte. E onde estou eu agora? Ai ai… a obediência.

Expiar a culpa, a traição. 'Se eu pudesse [ao menos] pagar de outra forma'…

O pintor desenha na sua mente as linhas gerais. Soletra as suas vidas passadas:

I think professor O was a bit of a control freak.

He liked that way, he liked to control.

That's why he slammed the holy grail on the priest lady.

That's why he asked for suicide by murder. An useful fiction.

A conscious mistake we've got rid of since.

A conscious error we'll not omit: Lending the lair's lock.

Uma sensação uma cadeira um poster uma cama um quadro.

Frio como a noite eu pareço. Um vulcão de flores de cacto no deserto eu sou.

Um vaguear um delírio um tecto uma caneta um papel. Minto. Capto. Mância.

Nada sei do que realmente gostaria de parecer. Terno como os lençóis gostaria de ser.

Um objecto no meio da multidão perdido? Jamé!

Uma divagação uma negação uma escrita? Tujú!

Só como a sombra eu me sinto. A sombra que enfeiticei.

Uma sombra uma luz uma melodia um objecto um tema um lema uma conversa.

Triste como a noite? Nim! Em paz eu estou só mas não sozinho. Ela dorme.

Um esvoaçar de cigarros uma vontade de adormecer o poema.

Fraco o meu corpo eu permaneço em névoa verde.

Uma sensação de alívio… um sufi fumado com triste beleza.

Eu, [o tóxico místico,

não confundir com tosta mista porque prefiro torrada e galão]

Ouço Fatima Miranda e Galás. Fumo como um sufi.

Atinjo a leveza, dou piruetas no ar. Abandono-me ao vosso cantar sedutor.

Sou infinito no meu castelo masmorra e um grão pecador na areia da praia.

'

Claudio Mur


sexta-feira, 16 de outubro de 2020

E termina aqui a história da mulher invisível, do velho careta e da fresca

 ' 

«Arranjaram-me um quarto-atelier numa casa de artistas e conto sair até ao fim do mês. As contas estão pagas.»

Foi com esta mensagem de telemóvel que comuniquei ao senhor A que iria deixar o alojamento que ele me proporcionou nestes últimos quatro anos. Quatro anos numa ilha. Estou prestes a ser obrigado a mudar de designação, estou prestes a deixar de ser ilhado. Vou para uma casa de três andares, o andar do meio será meu, e no de cima fica a cozinha, a sala e a marquise. Vou ter vista panorâmica para o rio do ouro. Reparo que estão a civilizar a encosta em frente, a construir estrada, enredar a escarpa de terra, arbusto e rocha, a recuperar com fins turísticos (poderia lá ser de outra forma?!) as casas ribeirinhas, existe já cais para barcos-prisões e projecto de hotel de luxo e circuito pedonal e ciclovia.

Ainda não dormi na nova casa mas abrir as janelas e observar da marquise a paisagem sempre que vou lá deixar mais uns quantos quadros, uns quantos livros, uns quantos discos de vinil e cd, faz-me lembrar do meu pai há uns anos na sua marquise ao fim da tarde observando a paisagem, as árvores dos quintais interiores e os pássaros e insectos, enquanto eu o espiava e o imaginava a pensar nos incêndios na mata angolana há cinquenta anos, sendo ele jovem soldado, enquanto eu escrevia o poema-ódio, a carta-bomba à autoridade para quem eu pensava que, na opinião deles, eu era um importante rebelde, cheio de semente para destruir os alicerces do mundo que eu achava que me oprimia.

Foi no período de incubamento do meu último internamento, uma coisa freudiana, o meu pai era o mau e eu era um jesus bandido, uma vítima. Muita coisa mudou. Eu mudei e o meu pai também, e eu já não penso como pensava nessa altura, afinal acho que o meu pai está do lado do bem e eu talvez esteja agora a tentar convergir para o bem, sabendo que o caminho é longo.

Às vezes, a gente constrói muros à nossa volta, e muitas vezes são com a intenção de nos defendermos, de levarmos as mãos aos ouvidos para não ouvirmos os insultos que nos dirigem, é como a história que os Pink Floyd musicaram, criamos um espaço onde somos imunes à opressão da sociedade, fechamo-nos em casa e aumentamos o som da aparelhagem e desligamos do mundo.

É assim que eu aqui nestes últimos tempos na ilha me estava a sentir. É isso que eu digo ao senhorio quando ele vem buscar umas cartas que chegaram para ele.

-- Olhe, eu vi mais mulheres bonitas nestes dias que tenho ocupado a mudar as coisas para a nova casa do que nos últimos quatro anos. Pelo menos, é um regalo para os olhos.

-- Você sai porque tem medo do Luis mas olhe que a um vizinho sempre se pode virar a cara e metermo-nos em casa ignorando-o mas já não é tão fácil fazer o mesmo a uma pessoa que vive connosco na mesma casa, há sempre as questões da limpeza, da cozinha e da higiene.

-- Tem razão. Mas o meu novo colega parece boa pessoa e é artista um pouco como eu também, e não pense que é medo do Luis, eu é que estou farto de viver aqui, até há pouco tempo tinha aqui a minha amiga e isso disfarçava, mas agora ela está para Lisboa... e sabe.... sabe que o Luis ameaçou os vizinhos de pancada se falassem comigo?, partiu o nariz ao Giuliani como vingança e este agora só fala comigo às escondidas, no café ou assim, o oficial de obras que mora com ele também fala de vez em quando comigo mas só vem falar para pedir trocos, os outros que restam são o que eu chamo de «criaditos do luis comandante que não sabe nadar iô», que vivem ao sabor do vento, para onde mija o comandante as notas ou o resto do charro ou do caneco de coca é para onde eles se dirigem, às vezes vou de metro e, no final das escadas rolantes, ele vira à direita e eu sigo em frente... e nada, espiamo-nos mutuamente e nada, nem ele me dirige a palavra porque o comandante não deixa, nem eu quero saber mais dele para nada e até fico aliviado por ele já ter esquecido todas as histórias que lhe contei quando ele vinha para minha casa ouvir música e fumar charros. Ele agora é big business, a coca é a raínha dele, até já esqueceu a namorada e diz que se o filho nascer pelo menos tem uma mãe rica. Quero lá saber que ele vira à direita, eu sigo em frente.

É claro que não disse tudo isto ao senhor A. Estou imaginar uma espécie de diálogo, mas não deixa de ser tudo verdade. Também podia falar da família feliz que vive na primeira porta da ilha: bisavó, avô e avó, filho, e neta de agora quase quatro anos, nasceu por alturas da minha chegada à ilha. Recebi uma carta para essa menina por engano na minha caixa de correio, saí de casa e bati-lhes à porta e disse: «isto é para si» e entreguei-lhes a carta. É costume os carteiros, principalmente os mais desconhecedores da ilha, enganarem-se nas caixas de correio. Houve cartas que não me foram entregues, foram deixadas no muro à entrada, porque essas cartas eram colocadas por engano na família feliz e estes por vingança não mas entregavam. Eram retaliações de vizinhos, lembro o que escrevi na altura:

«Aconteceu-me algo parecido quando precisei de ajuda oficial, perguntaram pelo telefone da minha mãe. Ainda hoje vejo pessoas na rua que me agridem só por eu existir, um dia destes uma cabeleireira vinha a descer a rua com a companheira e um pequeno cão, o cão ladrou-me, ela afastou-o e disse: -- Ainda se fosses comer Alguém. Eu nada disse, o que ela queria era que eu respondesse para que dali surgisse a algazarra dos ditos e contos, se eu lhe respondesse qualquer coisa como «És linda como a noite, tens penteado muitos camones?, eles não te dão que chegue?, precisas de me incomodar?» Viriam certamente acusações em altos berros para todo o bairro ouvir dizendo isto e aquilo como aconteceu a semana passada quando, por causa de um cano da água, tive o vizinho a chamar-me de porco e de pintor da droga e o filhinho, aprendiz de gorila de claque, a querer bater-me. Pouco faltou para que eu entrasse em casa e pegasse no martelo e fosse lhes responder à letra dizendo «andem cá agora, quem são vocês para me insultarem!», mas foi melhor não ter feito nada porque o senhorio, ainda assim, veio e disse-me que «a corda parte sempre pelo lado mais fraco», pelo que eu engoli a mensagem. Não deixa de ser irónico porque o cano pertencia ao senhorio e eu estava a defender o seu património, é!, as pessoas odeiam o meu modo de vida, pisam no mais fraco e lambém o cu ao mais forte.»

Foi a partir desta altura que eu fiz amizade com a ilha, com aqueles que eu chamei de comunidade por oposição à família feliz, esqueci os maus, apaguei-os da narrativa e eles sempre a retaliarem com o estraviamento do correio, e abracei a comunidade do Giuliani e dos amigos, o Luis até caiu das escadas quando me vinha cumprimentar vendo-me entrar em casa com quadros pintados... e ele a dizer «nós também somos artistas!»

Belos artistas sem dúvida, uns artistas da merda, o Giuliani a dar-me livros dele para eu os rever e preparar para edição de autor dele, e perguntar-me se não há nada neles que o envergonhe... e eu: «não Giu o que tu escreves é verídico és tu próprio és genuíno» e eu a pensar «ele mudou o nome das gajas para o nome da mulher pela qual está platonicamente embeiçado, ele isto e ele aquilo, coisas vergonhosas que escreveu, quero lá saber, vou-me embora, quero lá saber do Luis técnico de electrónica, de som e de concertos, baterista e guitarrista, quero lá saber, a única vez que o vi tocar bateria vi-o furar a pele do tambor com a baqueta, há meses o Vermelho diz que viu fumo a sair de trás da aparelhagem e por isso o incêndio não alastrou, havia sido o comandante que decidira fazer um shant às colunas para cortar os graves e fazer de equalizador... élou! Só mesmo artistas seriam capazes de tal obra de arte, não quero saber, vou-me embora.

Mais uma semana e já durmo na nova casa.

-- Mas o Luis faz o quê mesmo?, pergunta o senhor A.

-- Não faz nada, vive à custa da mãe rica, sabe que ele quando houve a guerra, depois dos insultos e tentativa de arrombamento, andou a falar com a patareca da dona Teresa para ver se arranjava aliados contra mim, para ver se eles falavam todos consigo para você me pôr fora, e eu a pensar: logo a dona Teresa que, quando o Luis se passou da cabeça, ela mesmo perguntou à irmã do Giu se não queria chamar a polícia para levar o Luis de cana... essa mesma patareca velha que se vira para o agrónomo antropólogo que vem fumar com o Luis e lhe diz «o Luis é bom home.» É tudo demasiado decadente, a mãe do Giu... a verdadeira dona das casas onde a comunidade vive, a mãe do Giu gosta mais do Luis do que do próprio filho, o Luis ao telefone é só salamaleques, diz que fez obras na ilha e que no próximo mês lhe faz a transferência bancária e manda beijinhos e cumprimentos, enquanto que o Giu quando fala com a mãe é só choro e insultos e queixas contra a mãe... não dá senhor A, eu tenho mesmo de me mandar daqui para fora, esta casa parece uma prisão, estou bem cá dentro, mas mal saio porta fora a complexidade da comunidade e da família feliz e de todos os que vêm cá fumar e ser indrominados me atinge, quero derrubar o muro, se não o derrubo translado-me para outro lugar. Por isso, lhe digo, mais uma, duas semanas, e corto a água e a luz depois de mudar tudo, e só venho cá no fim do mês pagar a conta da luz e da água e entregar-lhe a chave, quero ver também se lhe limpo a casa, quero deixá-la com estava quando vim para cá, é certo que as paredes vão ficar cheias de buracos por causa dos pregos arrancados mas...

-- Você foi um bom inquilino, só a atenção com o meu correio, sabe que vieram cá famílias com filhos, mesmo dois filhos e me diziam «mas que casa bonita!» e eu nunca aluguei, chegavam a fazer fila à porta, eu metia o anúncio e combinava o encontro aqui. Mas você agradou-me. E agora, quando recebi a sua mensagem, até comentei «e eu a pensar que lhe estava a fazer um favor».

-- E estava, mas as coisas mudaram na minha vida e não vou para um sítio muito mais caro do que aqui, e preciso de uma nova mudança na minha vida, e novas pessoas, novas vidas às quais me ligar.

-- Ok, espero que tudo lhe corra bem.

-- Obrigado, e espero que, num futuro que espero que não aconteça porque seria um mau sinal, mas espero que se eu precisar no futuro de alojamento lhe possa ligar.

-- Você só apaga o meu número se quiser, mas também é preciso ver que aqui já poderá estar alugado, eu vou pôr anúncio...

-- Sim claro, quem diz aqui diz noutro lado.

-- Aqui, eu gostava de você aqui.

-- Obrigado pelo apoio, senhor A, e até ao fim do mês.

E muito mais coisas poderia ter dito ao senhorio, poderia ter-lhe falado de mais razões para sair daqui. Não foi só a questão da guerra contra os vizinhos da ilha, sejam eles a comunidade ou a família feliz, eram também os motivos da guerra, eu próprio tinha pensado «o Luis merece ser fodido» quando vi a atitude que ele tomou quando não me pagou o trabalho de ajudante nas obras naquele dia, dizendo que não tinha dinheiro ao mesmo tempo que escondia uma nota de cinquenta euros. Era toda uma cultura da farsa, toda a falta de cultura de uma comunidade de indivíduos que nasceram em berços de ouro e que de alguma maneira se desgraçaram aos olhos de toda a gente, e comeram o pão que o diabo amassou e continuam a comê-lo, ressabiados contra tudos e todos e com inveja de quem tem as condições mínimas que, mesmo essas, eles deixaram de ter, a saber: tiveram criados de sala de jantar e cozinheiros privados em casa dos pais e, hoje, vê-los comer com os dedos dá quase nojo; terem entrado para o programa de recuperação da hepatite c e terem tomado as pastilhas com vinho enquanto falavam com o comandante pelo telefone dizendo «olha agora estou a roubar o Estado em mais dois mil euros» e morrerem de cirrose um ano depois e todos chorarem e fazerem luto, deixarem o vinho com cerveja e meterem-se na poeira e na branca, e quando um deles entra também no programa, toma as pastilhas durante três meses fumando a coca, as pastilhas acabam e não vai fazer o teste de despistagem para ver se se curou da hepatite porque poderá acusar droga, e assim não quer saber se está curado ou não... tudo isto são coisas que eu preferiria não ter sabido, preferiria continuar inocente e pensar que somos sempre nós as vítimas e que quando nos desgraçamos a culpa é sempre dos outros, eu em alguns momentos fui parecido com eles, e nada do que com eles partilhei lhes foi útil.

Não fui professor e talvez tivesse querido sê-lo. Por isso, agora está na altura de ir partilhar para outro lado. Também com a minha amiga nada mais há a partilhar. O período de férias acabou. Ela, depois de uns dias em casa da Sandra, voltou para casa do Cá, que lhe voltou a oferecer abrigo de graça, eu aqui precisava de algum do seu dinheiro para suportar o aumento da renda e da despesa mensal. Ela preferiu o Cá. Vi-a há dias na estação do metro, continua perdida. Já não a consigo ajudar mais, ela não faz o suficiente por ela própria, quer comprar tudo feito, alguém que lho pague, foi isso que a convivência neste período de férias que passámos juntos me mostrou, ela cansou-se de mim e eu cansei-me dela.

 

E termina aqui a história da mulher invisível, do velho careta e da fresca, sendo que a fresca é a farsa da obra ou as obras. Obra imperfeita e bruta como só assim poderia ser por mim contada.

'

Claudio Mur

domingo, 11 de outubro de 2020

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

«Afinal, vocês têm muita sorte em possuírem olhos».

 '

O bufarinheiro dirigia-se precisamente para Verrières. E, quando se conhece a estrada que sobe até lá, fica a gente a perguntar-se como é que ele faz para trepar até la acima, assim cego e rodeado pelo mau tempo e, às vezes, pela noite.

Respondera-lhe que, para ele, era sempre noite.

-- Imagina tu! -- exclamou Honoré.

-- Bem sei -- respondeu Bobi. -- E ainda existem coisas mais extraordinárias. Por isso mesmo é que devemos ter confiança.

-- Nessa altura -- continuou Honoré -- disse-lhe: Já que vais para Verrières, importas-te de prevenir o compadre Ricardo? Conhece-lo? -- Se o conheço! Mora na quarta casa da rua, que fica por trás da fonte, na esquina da mercearia. Noutros tempos, havia nessa direcção uma velha amoreira, que depois cortaram. -- Disso não sei -- disse-lhe eu. -- Respondeu-me: «Sei eu. Não te rales!» -- Pedi-lhe, pois: poderás prevenir o Ricardo? -- Prevenirei o Ricardo, sim. Mas não posso ir dizer-lhe apenas: «previno-te.» De que é que o hei-de prevenir? -- De que a gente irá falar com ele. -- A gente, quem?

Sentia-me um tanto atrapalhado, sem saber se lho havia de dizer ou não. Perguntava a mim próprio «Vais dizer-lho?» No fundo, que arriscava eu? Respondi-lhe, pois «Trata-se de irmos apanhar corças à floresta de Nans.» Nessa altura, retorquiu-me: «Não contes comigo!» Afirmei-lhe: «Estou a pedir-te um favor». A sua resposta foi: «Não; estás a pedir-me uma coisa indecente. E eu não faço coisas indecentes. Poderia fazê-las a porcalhões como tu e aos teus iguais; mas, quanto ao que me dizes, não.» Olhei para ele, vi-lhe o rosto de velho e perguntei: Uma coisa indecente, porquê?» Respondeu-me: Mais indecente seria ainda o explicar-to. E, além disso, tenho que me ir embora.» Levantou-se, dizendo ainda: «Tu tens olhos. Todos vocês têm olhos. Eu sou cego de nascença. Por isso mesmo, não sei o que é que vocês chamam «ver com os olhos»; mas, a avaliar pelo que fazeis, não deve ser grande coisa. Ou, então, vocês não passam de uma cambada de sacanas. Porque ( -- e, nessa altura, caminhava já, e ter-se-ia ido embora, se eu o não retivesse?, porque vocês trazem sobre o corpo os efeitos disso.»

Puxei-o pelos braços e disse-lhe: «Senta-te. -- Não. -- Senta-te! -- Não». E procurava dirigir-se para a estrrada, onde a chuva... só vos digo isto! Por fim, sempre lhe disse: -- «Estás enganado. -- Não estou, não. -- Estás, sim, porque se trata de uma coisa extraordinária. Uma coisa que nem sempre acontece. Se to disser, ficarás a sabê-lo. Se to não disser, vais inventar, como é vulgar, e enganas-te. Senta-te, que quero dizer-to. E verás se não vale a pena.» Ia eu dizer que «olhou para mim». Impossível, porque é cego. Mas voltou os olhos para mim e eu pude ver, então, os seus olhos vazios, assim como a estrada, a chuva e o próprio mundo -- tudo vazio. E juro-vos que me pus a pensar cá para mim: Não. O mundo não é vazio.

«Senta-te». -- Querem matá-las? -- perguntou. -- De maneira nenhuma. -- Querem apanhá-las vivas para as venderem depois? -- Também não. -- Pois se as querem meter em jaulas, ainda é mais indecente.

-- De forma menhuma. -- Nesse caso, não compreendo. -- Alegra-me ouvir-te isso. Vou explicar-te o que há!

-- E vou dizer-te a verdade -- continuou Honoré, dirigindo-se a Bobi. -- Dir-te-ei tudo quanto lhe disse, embora não saiba nada do que pretendes fazer.

-- Que é que tu lhe contaste? -- perguntou Bobi.

-- O que me pareceu mais razoável.

-- Nesse caso, deve ser precisamente isso o que eu pretendo fazer -- respondeu Bobi.

-- Aí tens -- continuou Honoré. -- (Nessa altura, continuava a olhar-me com os seus olhos vazios.) Disse-lhe: «sou do planalto Grémone». -- conheço. -- A vida não é muito bela... E juro-vos que ele me respondeu A vida é muito bela. -- Comprámos um veado. Eu disse comprámos. Foi só o Jourdan, mas eu disse: comprámos.

-- Fizeste muito bem. exclamou Jourdan.

-- Comprámos um veado. -- Para quê? -- perguntou ele. -- Para nada -- respondi, depois de ter reflectido. -- Para nada, como? -- Para o termos ao nosso lado.

-- E é a verdade verdadeira -- interrompeu Bobi.

-- Mas foi muito difícil fazer-lhe comppreender isso.

-- Que é que ele não compreendia?

-- Que o veado era livre. Perguntava-me: «Vocês fecham-no em qualquer sítio?» -- Não. -- Vai para onde quer? -- Vai. -- Sempre? -- Sim. -- Anda por todo o lado? -- Anda. Vai visitar uns e outros, olha para todos e põe-se a correr. E nós vemo-lo a correr. -- Deve estragar-vos os campos! (E eu pus-me a pensar: Para o que resta deles! A chuva continuava a cair, nessa altura, como se quisesse esmagar a terra, e eu pude ouvir os regatos a correr pelos Ubacs, arrastando as sementes). E respondi-lhe: «Isso pouco nos importa!»

Ficou algum tempo a remoer essa ideia na cabeça. E, depois, fiquei com a impressão de que já não se dirigia a mim, quando falava, mas sim talvez ao cavalo. Este encontrava-se ao nosso lado, em cima das folhas e mexia-se, agora e logo, quando a água fria lhe tombava na espinha.

-- Aí está uma coisa nova! -- exclamou ele. -- Jamais se poderá adivinhar o que acabarão por fazer. Acabarão, talvez, por encontarem a coisa certa.

Dirigiu-se-me. «E, então, essa corças?» Respondi-lhe: «Essas corças são para ele, pois então!» -- Para que sejam mesmo dele? -- Sim. -- E livres? -- Pois claro! -- Quereis apanhá-las à rede, levá-las vivas para o planalto, deixá-las aí, onde ele as encontrará, se assim o quiser? -- É essa precisamente a nossa ideia. -- E depois?»

Foi, então, que comecei a inventar. «Depois -- disse eu --, não há mais nada. Terão corçazitas e veaditos: primeiro um, depois dois, depois quatro, depois dez - e bem desejaríamos que chegassem aos cem. E todos eles hão-de correr pelos campos. -- E que farão vocês deles? -- Nada. Isso é tudo. Contentar-nos-emos com isso.

-- Afinal, não inventaste nada -- interrompeu Bobi.

-- Então, é isso que vamos fazer?

-- Precisamente isso -- afirmou Bobi. -- E que disse ele?

-- Ficou calado, durante algum tempo, após o que respondeu: «Afinal, vocês têm muita sorte em possuírem olhos».

Em seguida, a chuva abrandou. Devia ser cerca das dez horas da manhã. Perguntei-lhe: «Posso contar contigo? -- Poderão contar comigo, todos quantos vocês forem, pois darei o recado».

'


páginas 162 - 165


''Que a paz seja connosco'' 

Jean Giono, livro de tiítulo original em francês; ''Que ma joie demeure''

edição Porto Editora (sem data)

sábado, 3 de outubro de 2020

Tribos do Amazonas



«Tribos do Amazonas»
desenho a lápis de grafite sobre papel de 300grsm grão fino
50cm por 70cm
2020 
ZMB

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Object denial crying child


«Object denial crying child»
óleo sobre tela, 
70cm por 80cm
2020 por ZMB

Este trabalho é um exorcismo de pensamentos «fora da norma»