terça-feira, 23 de março de 2021

«lado a lado convivem bolos gourmet com sopas em taparuere»

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Ao atravessamos no semáforo verde em direcção à Praça da Batalha, viro-me para o Doutor A.R. Spider que me acompanha e digo-lhe:

-- Olha, há dias ia aqui onde nós estamos e apeteceu-me fazer um verso e enviar para o Rui Moreira, visto que ele quer acabar com as carrinhas... [carrinhas de distribuição gratuita de comida e outros items como roupa nas ruas do Porto]

-- Infame!, diz A R. e eu concordo:

-- É isso, eu ia a caminhar e ali, mais à frente, há um restaurante que faz takeaway, eu ia a caminhar e a ver muitos como eu caminhar para ir buscar a sopa da noite, e vi uma fila de gente, praí quinze pessoas à espera, olha, aqui mesmo, ora vê, à espera de uns bolos gourmet com muito creme e açúcar e do tamanho dum pastel de nata.

-- É mesmo!

-- Apeteceu-me fazer um verso, qualquer coisa como «lado a lado convivem bolos gourmet com sopas em taparuere» mas não fiz, não me achei capaz de descrever a realidade de modo a alguém com poder agir, quem sabe por caridade ou por simples humanidade. Por isso, não fiz o verso mas pensei que seria mais uma crónica, uma crónica longa que explicasse a esses aristocratas que governam a cidade que não podem varrer as pessoas como lixo, varrê-las das ruas do centro histórico para não incomodar a visão idílica que as revistas de turismo traansmitem sobre a cidade. Olha, há dias numa visita aos meus pais a meio da tarde, ao postigo da residência dos meus pais, ou seja, à porta de entrada, eu bem lhe disse «pai, nós não sabemos o que é a fome!», ele objectou e disse «eu sou do tempo da meia sardinha», mas eu respondi e ele compreendeu e ele veio da aldeia, não é como o Moreira que nasceu em berço dourado: «pai, tu venceste a fome e há pelo menos cinquenta anos que não a passas, eu mesmo nunca passei, eu não sei o que é ir buscar uma dose, e eles dão-nos esta saca de papel que parece a saca do pão mas um papel mais grosso, dão-nos a saca com a dose lá dentro, comemos nos degraus da igreja e há quem diga, tenho de ir ali a Passos Manuel buscar uma segunda dose, abriu lá outro restaurante solidário, continuo com fome». O meu pai admirou-se, espantou-se: «é!, pai, a fome anda à solta, a comida é pouca, para muitos deles é a única do dia, a única que comem, nós aqui em casa sempre fizémos quatro boas refeições e vocês hoje, que são só os dois, a mãe e tu ainda o fazem, eu lembro-me de, às vezes, assaltar o frigorífico para barrar tulicreme em moletes acabadinhos de chegar a casa quando me dava a fome... fome!?, vontade de comer, gulodice mas eles não, as pessoas que comem no restaurante solidário ou, agora com este vírus, lá vão buscar a dose takeaway, passam todo o dia apenas com a comida da noite, e claro, o dia passam-no pedindo uns trocos, cravando um cigarro, arranjando umas moedas para vinho a pacote cheio do chumbo que matou o Beethoven..., e o vinho consome-lhes energia, chupa-lhes já não a gordura que não têm mas a pouca carne nos ossos que ainda resta. Alguns, compram açúcar e adicionam-o ao vinho, mais fome dá», «podiam comer uma sopa em vez de beberem o vinho» diz o meu pai, «e quem os deixa sentar à mesa num restaurante?» e o meu pai cala-se.

Também eu me calo após estas palavras e Doutor A. R Spider continua calado, caminhamos para o restaurante. Estamos já a ulltapassar o Teatro e alguns adolescentes jogando o skate fazem pausa nas acrobacias, fazendo tenção de nos deixar passar. Eu registo e agrada-me o gesto deles, mas sigo com A. R. pela borda do átrio público junto à parede do Teatro deixndo-lhes o chão livre para se divertirem. Chegamos finalmente ao Terço, a fila contorna o edifício.

À nossa frente estão dois colegas a falar castelhano, viram-se para trás e reconhecem A. R.

-- Salud Dó-ctor.

-- Salud amigos, há dias bebi um vinho tinto muito bom, Rioja 1968!

-- Ah si, pero el vino blanco es mejor.

-- Si claro.

À nossa frente, a fila anda mais rápida já, a comida é dada à porta numa entrada lateral na descida da rua. Hoje, foi dia de receber a reforma para alguns, e um velhote algumas pessoas à nossa frente vê uma jovem negra que sobe a rua para entrar na fila, pára o seu caminhar e diz-lhe qualquer coisa e ela ri-se e eu ouço-a dizer ao velhote enquanto lhe dá o braço para caminharem juntos:

-- Não vamos comer, vamos gastar a reforma!

Atrás de mim, alguém comenta: -- Olha, vão estourar tudo.

E quem o diz parece, pelo som da sua voz, ressentido. Eu que não me viro para trás para lhe ver o rosto, imagino-o como um pretendente sentindo-se atraiçoado.

À frente, duas pessoas à frente dos espanhóis, uma mulher nova, talvez vinte e cinco anos, bem vestida, daquelas que a gente, às vezes, vê nas ruas comprando as montras das lojas de roupa, recebe a sua dose no saco de papel, o senhor do restaurante dá-lhe uma segunda dose porque ela está com uma menina de cinco ou seis anos, deve ser a filha. Ao vê-la, tomo consciência que não são só os pobres que estão com necessidade, também há gente que nunca sonhou precisar de ajuda que, agora nestes dias incertos, se vê e se sente no fundo, a precisar de ajuda e muitas vezes com vergonha de a pedir.

Após recebermos a nossa dose, subimos a rua, A. R. e eu, em direcção outra vez à praça. É nossa intenção sentarmo-nos a comer já nos degraus da igreja porque a comida está quentinha e A. R. não tem microondas em casa para aquecer a refeição.

Reparamos que há uma carrinha estacionada no passeio, pertence a uma associação religiosa, estão a dar café, ou melhor, uma bebida com café, parece cevada. Mas sabe bem. A. R. deixou a fila desta carrinha e dirigiu-se à banca lateral e pediu dois cafés, um para ele e outro para mim, eu entetanto guardo a vez e, à minha frente, um jovem, talvez de trinta anos, queixa-se que o Terço, só lhe deu uma dose e que, após a dose desta carrinha, vai a Passos Manuel buscar uma terceira.

-- É comida a mais, eu estou bem assim. Digo eu, mas ele explica a sua visão:

-- Perdi o trabalho, estou a dever três mil euros de renda, para mim não houve moratória porque o contrato é de boca, o senhorio é boa pessoa, arranjei trabalho nas obras, e preciso de comer durante a pausa do trabalho para o almoço, amanhã.

-- Sim, irmão, boa sorte. Digo eu.

Recebo também a minha dose e dou o nome, a associação gosta de ficar com um registo informal das pessoas que ajuda. Venho sentar-me finalmente nos degraus. A. R. fica na carrinha a ver se eles lhe arranjam uma camisola para este tempo frio. Depois vem sentar-se.

Comemos em silêncio. A espanhola sem-abrigo, que vive literalmente debaixo da ponte, vem pedir-nos um cigarro, não temos. Enquanto comemos, eu ponho-me a observar as gaivotas que comem os restos deixados por outros como nós no centro da praça, eles levantam-se e colocam a embalagem de estanho no chão e afastam-se. Logo, as gaivotas se aproximam para pousar e comer. Vejo como há uma gaivota alfa e que primeiro come ela, ela bica o resto da comida enquanto as outras fazem centro à embalagem, tentam aproximar e bicar, mas sempre respeitando a gaivota alfa, tentam e voltam para trás, só quando a alfa bicou o suficiente é que as outras comem. A lei da natureza é a lei do mais forte.

A dose de hoje do restaurante é uma covete de estanho com arroz branco e seis pequenas sardinhas fritas, bem cozinhadas, é preciso dizer. A dose inclui ainda dois ovos cozidos ainda com casca, uma bola de berlim e uma garrafa de água de um quarto de litro. Enquanto como as sardinhas e olho as gaivotas penso: «O meu pai era o sexto filho, segundo ele conta: o jantar de batatas cozidas com sardinha assada ou frita em azeite era parco, só havia quatro sardinhas, pelo menos eram gordas e não como estas que agora como, os avós comiam metade de uma e cada filho cada irmão comia metade também, um comia a cabeça e o outro o rabo da sardinha. É isso que os donos disto tudo não entendem, as carrinhas dão uma dose extra de comida, às vezes mais um taparuere de sopa de legumes e dão fruta, e dão sumo em pacote e dão café e dão roupa... as ruas ficam sujas e os pobres comem na rua, sim é verdade, mas são seres humanos que precisam de apoio e não de ser enxotados, ocultados da opinião pública, é preciso que alguém escreva sobre isto!»

E foi isso que eu fiz logo que cheguei a casa.

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Claudio Mur

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