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Continuo a segurar a minha cabeça e observo pequenos nadas à frente dos meus olhos, pequenos nadas como se os meus olhos chorassem e a realidade aparecesse refractada pelas bolhas de lágrimas, olho, fecho os olhos e tenho medo do escuro, abro os olhos e sonho, sonho de olhos abertos pequenos nadas que não dão uma história coerente.
Vou à casa de banho no primeiro andar. Sento-me e fico durante uma eternidade de quinze minutos, esperando que algo aconteça, olhando pelo janelo da casa de banho, olhando por esta, uma nova janela do tamanho da minha cabeça emoldurada, olhando o mundo que parece em paz fora da janela.
O vidro, no entanto, é branco e baço. A parede continua a ser branca. Não está forrada a papel. A claridade reflecte-se na parede que é uma massa não uniforme, pois se fixar um pequeno ponto deste espaço branco ou ligeiramente matizado pela presença sombra de um outro todo branco, ele logo se transforma numa infinita quantidade de ínfimos pontos de várias cores surgindo à medida da percepção, da tomada de consciência que adquiro a cada instante, sempre diferente, como se um pontilhista estivesse a criar um quadro só para mim ou se fosse eu que tivesse a criar um quadro pontilhista ao longo destes momentos brancos com uma mão invisível chamada Eu.
Valerie e as amigas acordam num quarto ao lado e começam a conversar, a rir-se. Analiso-me perante elas, digo que é bom ouvir todas estas vozes que parecem de crianças, confundindo-se no som de pequenos risos ao longo de um espaço onde dormem.
Estou numa casa de banho, fechado, sentado com as mãos a tentarem esconder a claridade angelical e silenciosa, fechando os olhos, abrindo os olhos, segurando a cabeça que pretende cair para um dos lados por causa do peso dos sonhos e do pescoço que parece estar podre.
As raparigas foram sair a noite passada, acordaram agora, tem dezoito, dezanove anos, falam de um modo que há muito tempo já não ouvia, aquele de acordar acompanhado, sonho uma banda desenhada compostas por memórias bonitas carregadas de inocência, alegria, aspiração alcançada, tudo aquilo que já não tenho.
Quão longe parece o dia em que, durante uma festa, uma rapariga entrou no meu quarto e olhou para o quadro que eu pintara e gritou quase histérica: foste tu que fizeste isto?, quão longínquo parece o dia em que fiz um quadro num ou dois dias, a pedido de uma amiga, e quando lho mostrei, ela gritou quase histérica: é para mim?
A histeria revela verdades, às vezes difíceis mas sempre válidas, hoje esse histerismo desapareceu do meu caminho, já não sou capaz de provocar qualquer emoção nas pessoas, gradualmente vou ficando inválido, vou morrendo dia após noite, noite após dia, ao longo de um tempo em que tento aprender e conhecer cada vez mais pintores e escolas de arte porque penso que se quiser ser aceite terei de perceber a história e dominar a técnica, esquecendo a minha memória, o meu inconsciente, tornando-me cada vez mais racional, racional até ao infinito da invalidez, da morte, do inferno minimal que vi naquela janela da sala, agora vejo nestas paredes pontilhistas angelicais, e vejo neste postigo angelical.
Sim, esta janela é do tamanho da minha cabeça, daria uma bela fotografia se alguém, estando do lado de fora da casa, a fotografasse.
Vou à sala grande onde Joe já não dorme. Depois, vou a cozinha onde, no meio da confusão de pratos sujos, copos, tostas de pão, manteiga, facas e garfos, toalha, lava-louça, lavo um copo e bebo um pouco de àgua. Volto à sala dos três sofas e sento-me no sofá a olhar para a lareira.
Aqui todas as casas tem lareira, lembro-me dos tempos em que não havia nem televisão nem rádio e passávamos o tempo a esquecermo-nos nas cores surgindo da fogueira enquanto se contavam histórias antigas: eles estão a queimar a recordação que guardam do seu nascimento ou a adorar a aparição que surge da fogueira... não sei, a mãe, ou a mulher que toma conta do filho que nasce. Ao mesmo tempo que a memória esquece, ela observa calmamente com as mãos nos bolsos a imagem e as palavras enigmáticas gravadas na parede, ela recusa ver a realidade daquilo que ele nunca lhe disse porque nunca o soube, pressentiu ou teve medo, ela esconde-se da realidade de ele estar a tentar transferí-la da realidade para a representação subjectiva da sua essência numa imagem.
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John Moore em
'Mushrooms or a procura do espaço e a identidade'
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