segunda-feira, 10 de maio de 2021

Devo ter sido picado pela tarântula eheh

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Está um calor abafado. Sinto o calor quando paro na passadeira. Um senhor com uma mala com rodas olha-me com o que poderá ser apenas um olhar de curiosidade, mas transformo-me a seus olhos num suspeito através do modo peculiar com que encaro as interpretações das personagens e sinto que ele me veste com linho de renegados gone to croatan, renegado por renegado sinto-me orgulhoso por pregar partidas à tia sáli, é assim que eu sou, devo ter sido picado pela tarântula eheh.

Entro num hotel info centre e tento arranjar um quarto para ficar a noite. Como a empregada está muito ocupada, pergunto a que horas fecha e o outro empregado diz às dez, pelo que saio e me dirijo à primeira coffee shop que encontro. Peço um café e pergunto se têm erva. Dirijo-me ao balcão da erva, vejo o menu, a preguiça lê muitas palavras que a ansiedade não elucida e pergunto apenas se não tem super skunk. Compro duas gramas por doze euros e venho para o balcão beber o café. Ao pagar flirto com a empregada toura, quero dizer loura, quero dizer morena boazona e pergunto-lhe onde posso arranjar quarto, digo-lhe com uma nota na mão e ela fala-me de um barco-hotel e até me dá indicações.

Fumo o primeiro charro em território livre holandês. Como todo o junkie é ciclista, corro em passo de vitória supersónica para o barco passando por mercados, esculpindo letterings de corporações no átrio de entrada, fotografando oficialmente associados e futuras presidentes do fmi, venerando taxas de juros e greves de taxistas em cidades mausoléu de lenin ou outro deus harmonioso que o valha, olhando sem comentar as horas em que o gato voltará a sair pela janela para descer os degraus e registar o próximo fix como um ivan de sombras gigantescas mugindo o seu império mas sobressaindo a sua sombra no fundo em graus de cinzento. O barco é grandioso mas dispendioso e não tenho capital. No entanto vejo um casal de mãos dadas. Param de caminhar, olham um para o outro e beijam-se.

Um homem do mar produzindo ilusão com a sua aparência de endinheirado e… reparo que este charro… a princípio, noto uma certa restrição de certas partes do meu cérebro em aceitar a moca, ondas de arrepio na superfície frontal, uma breve e aguda dor nos ossos temporais e é como se desdissesse os policiais científicos da mente e os neurónios ao se dissolverem não se reduzissem a cinzas mas abrissem sinapses e novas ligações para um futuro hospedeiro, há muito tempo andava o meu cérebro escondido sem poder imaginar. O calor abafado, o sabor a café, o sistema respiratório sendo progressivamente desentupido com recurso a lenços de pano, sinto-me vivo e funcional, iié!

Com grande moca imaginativa vou de gás ao hotel info centre às dez menos cinco. A empregada atende-me, verifica no sistema e arranja-me um quarto por cinquenta e cinco euros a noite. Tenho que fazer o checkout às onze da manhã e o pequeno almoço entre as oito e as dez da manhã. Chego ao quarto às dez e meia. Todo suado, dispo-me e vou tomar um banho gelado, deito-me por cima do lençol todo molhado, fumo outro charro e rio-me num flash, grito qualquer coisa sobre um pensamento que de súbito se torna realidade, tenho alta resposta mental, tenho o prazer fabulástico aliás de imaginar incendiar a santa maria sendo, como se, um santo daime sem consumir huasca até.

No entanto, digo que a moca é tão grande que até estou a ver estrelas. Ela acha banal e expressa um sorrisinho como se dizendo: ele está com uma moca, mas eu insisto: olha não acreditas?, olha elas ali, estou mesmo a ver estrelas, olha práli. E ela olha, ela que não acredita e pensa ser esta uma conversa com sorrisinhos marotos entre as partes. Olha e vê mesmos estrelas, vê as estrelas e ao mesmo tempo um pequeno clique, um jeito na espinha. Eu disse-te que nunca tinha visto estas estrelas na minha vida, ela acaba por concordar. Ela? Mas quem é esta ela? Sorrimos ambos e dizemos: na maria se formula o desejo e na joana a vontade se concretiza, é a moca… são estrelas de oito pontas num céu azul cobalto, ouvimos o franque zappa.

Penso que talvez me esteja a passar, ando meio desligado mas rio-me e sei que é só a ganza a bater, uma sensação que volta a acordar, a erva faz milagres e durante estas linhas, rodeado pela estrela maria e esta estrela joana que partilha comigo o seu charro, leio nas mortalhas de papel de arroz com goma de açúcar: grown in the earth, nourished by the water, powered by the wind, burned by the fire.

Se eu puder rir em vez de chorar, porque não procurar o riso?, nem que às vezes seja algo absurdo: imagina-me numa fotografia de jornal com a resenha do segundo prémio de pesca desportiva, eu, a cana de pesca e um atum de dois metros… no entanto, anoto mentalmente o desejo de este «nós» ser às vezes apenas o desejo de haver Alguma que pense como nós, ou seja eu e «tu» que sejas esta «alguma». Anoto ainda que quando se está acompanhado é possível dizer: olha ali tazaver aquela estrela? Mas olha… tu és mais bonita que ela!, e no entanto também é possível registar que quando se está só recorre-se frequentemente ao artificio, buscando a estrela e ela descendo até nós e… no dia seguinte o sol acorda e levanta-me do chão, eu canto-lhe a minha mais sofrível imitação do xano: seu guarda, pescar é para mim quase um acto de meditação, eu não sou delinquente, sou um homem carente, dormi na praça pensando nela, o peixe mordeu a linha. E depois quem pode dizer nunca ter acordado e visto estrelas!? Toca a circular eheheh, o peixe mordeu a linha e eu, que no sonho levitava em pose de mestre zen, caí ao chão e você, seu guarda, pôs-me a circular.

E ela sai para ir viver o seu modo de se fazer gente. Não me lembrarei mais do teu rosto mas considero-te bela o suficiente para que fiques anónima neste século vinte e três «e meio». E eu, de qualquer modo por precaução, vou ao saco e busco a dose de comprimidos enquanto a zero-cinza se carameliza. Responsabilidade num benha tardi!!

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Manuelle Biezon



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