quarta-feira, 12 de maio de 2021

O cínico poderia dizer:
mas o hobo diz :

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Ao passar na damrak vejo num armazém um anúncio pedindo empregados, fico interessado e entro, dirijo-me ao balcão, apresento-me e dizem-me para voltar daí a um mês. Ok, agradeço e volto à rua sabendo que talvez não voltarei lá e, olhando a sujidade nas minhas calças, penso no que a minha mãe uma vez me disse, ela uma voz anónima do povo em ditadura: nunca descures tua imagem. Às vezes dizia-me isso e eu ficava a pensar: mas quem é pobre pode andar asseado, arranjado?, ao que ela respondia: podes ser pobre mas fazer por não parecer. Ao que parece a higiene pagará todas as promessas mas… entre mim e a higiene há toda uma luta de classes e eu tenho algumas dúvidas de que queira ser manager ou até formar um partido lóbi. Sou assim: às vezes on às vezes off eu prefiro o estado de ov, um germe eternamente gerado e sempre pronto a renascer para um novo mundo numa nova ponte, quantas vezes já não mudei de vida?, tentar pelo menos. O cínico poderia dizer «às vezes ainda me ofereceram camisolas» mas o hobo diz «nunca tive estabilidade nem ilusões, apenas sonhos, tenho de me adaptar ao mundo mas o mundo quer que eu deixe de ser eu», para ser ele — o mundo que rende juros ao gestor de activos; para ser com ela — a munda, a mãe levando o pequeno-almoço à cama ou a mulher «faca e alguidar» com jantar romântico no dia de anos.

No fundo, minha mãe leva-me a deduzir a simulação futura, a intoxicação com um copo de água e talvez, agora é capaz de ser já um pouco tarde… um louco é-o muitas vezes por repressão ou impossibilidade de descarga sexual, farto de não ter alguma toura como parceira sexual, simula o amplexo na sua imaginação e usa as suas duas mãos em si próprio, sente-se senhor anarca monarca absoluto pondo e dispondo de si próprio, dizendo até que não precisa de gadja, que se basta a si mesmo. Porque não acredito em desequilíbrios químicos genéticos e tão só em espíritos que incubam no futuro em crianças da lua, às vezes o louco ou o joker joga contra si próprio, chega mesmo a escrever coisas reaccionárias, frases como: já não acredito na anarquia, na guerrilha criativa, eu nem sequer encontro uma gaja interessante, quanto mais mudar o mundo, a guerrilha significa spam, noise informativo, gosto de informação estruturada, organizada, não gosto do noise quântico da web.

Dito isto, nego tudo o que escrevi desde o último dois pontos. Há sempre alguém a processar a informação que me chega. A verdade é que ainda não cheguei ao nível necessário de conhecimento para eu próprio poder organizar o meu dia-a-dia, o excesso de informação que ainda não consigo processar convenientemente, sou um hobo ficando sem dinheiro a cada pacote de bolachas que compro, a cada grama de thc que compro e, claro, eu… dizem para eu voltar daqui a um mês porque vêem o modo como estou vestido, vêem que estou de passagem, um turista momentâneo suado e com as calças manchadas, alguém que não estará aqui por muito mais tempo.

Dou por mim a pensar tudo isto quando entro no prix d’ami para tomar café, compro uma grama e começo a enrolar. Um holandês corpulento vem falar comigo, se calhar já me tinha topado ao longo destes dias, fumamos o meu e um dele, fala-me que tenho de me registar oficialmente, podes ganhar mil e duzentos euros no mínimo mas tens de estar registado com residência. Digo-lhe que estou numa pousada e que não a aceitam como morada e depois é cara. Fala-me que no croydon hotel se arranja diárias de vinte e poucos euros. Where is that?, ele responde que passando a damrak fica na primeira rua depois do grasshopper. Fico interessado e pensativo e ele pergunta se eu o percebi, há aqui uma espécie de tensão sexual flutuando na névoa verde mas caminho noutra direcção, tenho de sair e atravessar para o lado de lá da damrak. Procuro o croydon hotel, viro na segunda rua à direita e encontro. We’re full! Ok regresso, nada feito, nada de quartos, sufoco, resigno-me à frustração e amargurado penso no meu futuro na rua ou na miséria da caridade alheia, resisto, digo-me que nada me impede de sonhar, imaginar mesmo uma cabana diferente: um espaço onde dormir, comer, defecar e mostrar o meu trabalho e vender claro, obter um rendimento mínimo de subsistência que pague a conta do supermercado, a tinta e a tela, a ganza e a conta da net e claro!, o aluguer da cabana.

Vivendo hoje o momento como se hoje venha a acontecer, penso aproveitar a voz de ka-spel, será uma epifania sonora adequada para descrever o momento que não se escreveu, até porque a revolução do microcosmos não é nunca televisionada: nobody waits forever, not even me for you on a desolate onway on a desperate lock in a forgotten universe ik waited so long for me to plant my flag half mask half way between two empty spaces lost but I will raise my white stick I’ll wave I always think I heard a voice your voice my love yes till a walkway towards the light you see I had no choice our life must go on well that’s all we always say isn’t it? our liiefffe muussst goooo... on.

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Manuelle Biezon


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