quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

O gato do carreiro que era filho do cachorro aparecera em casa do tio como papagaio que era pai do boi que era filho da lavadeira que tinha nascido do gato, avô do primeiro, e de uma serpente que era, por sua vez, tia do boi.

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Mas o mais interessante espectáculo da sua longa vida, e que lhe absorvia inesgotavelmente e divertidamente as atenções, estava para «aquém» (em relação ao seu mundo de génio) da curta vida dos mortais que observava. Ao longo das décadas e dos séculos, sempre em permanente contacto com a aldeia, e uma aldeia muito isolada das outras, ele acabara conhecendo todas as almas de que dispunha aquela pequena parcela da humanidade. E destas, apesar da vida simples que era a vivida ali, haviam sido muito poucas as que tinham desaparecido, ascendidas ao Sumo Bem. A grande maioria delas, presa à terra pelos pecados, as faltas, as distracções no ritual quotidiano, ficava na aldeia, depois que a morte sobrevinha e os cadáveres eram reduzidos pelo fogo de que, da sua árvore, ele só via o fumo que, dos lados do cemitério (que ele conhecia perfeitamente pelas descrições que dele faziam os demónios de lá, que às vezes vinham até à árvore, de visita, para uma conversinha de gente desocupada em tão pequena aldeia), se erguia esbranquiçado para o céu azul. Elas, é claro, não se conheciam directamente umas às outras, nem a si mesmas. Ele, porém, conhecia-as a todas, sob os invólucros de carne em que se abrigavam para continuar a existência terrena a que tinham vindo. E o divertido era precisamente o invólucro.

Porque os invólucros eram extremamente mprevistos, conforme as disponibilidades momentâneas da Natureza, e segundo a carga de pecados e faltas a ser expiada. E sempre imprevistos eram os acidentes daí resultantes. Quando o fuminho subia nos ares, ele, que já observara quem tinha morrido, e conhecia do defunto os mínimos hábitos, ficava logo a espera... E não tardava que, de uma toca qualquer, saísse a começar a vida, um rato, uma formiga, um lagarto, sabiam os deuses o quê, que ele imediatamente reconhecia. Um velho terrívelmente sovina e desconfiado, que muitas vezes o ameaçara de cortar-lhe a árvore (coisa que, só de ser pensada, o arripiava), reaparecera transformado em cão. Mas, em vez de ser cão manso e respeitoso, não havia hora que não viesse alçar a perna contra a árvore. Morrera depois atropelado por uma carroça, e logo reapareceu como rato. Este rato causara-lhe inquietações, com a sua mania de querer instalar-se na árvore, nas covas fundas entre as raízes. Fora preciso mobilizar toda a família para impor-lhe o respeito. Claro que um dia, depois de torturado até à morte pelo rapazio que o caçara (e se escondera atrás da árvore para fazer tão proibida coisa), ele o vira passar como lagarto, um lagarto repugnante e aleijado. Desta vez parecia que aprendera a lição. E ele chegara a permitir que o bicho, desprezado por todos os seus iguais, sofrendo de amor por um lagarto fémea que morava perto da árvore, subisse desajeitadamente para os ramos, de onde podia contemplar -- arquejante e lacrimoso -- a amada, que nem queria sentir que ele a olhava. E fôra assim que uma vez morrera, de inanição e desastre, pois que, muito fraco, se deixara cair no chão, e no chão ficara para morrer. Era agora um gato ajuizadíssimo, que não caçava mesmo um mísero maina que lhe pousasse no pé, e vivia em meditação contínua, deitado virtuosamente à porta da casa de um seu neto (neto do velho que ele conhecera ao instalar-se na árvore). Era de esperar que recuperasse a forma humana.

Divertidíssim era também, usando a sua omnisciência e a sua memória de génio, combinar estas transmigrações das almas com as genealogias humanas e animais daquele pequeno mundo. E também as vicissitudes por que iam passando as encarnações. O gato do carreiro que era filho do cachorro aparecera em casa do tio como papagaio que era pai do boi que era filho da lavadeira que tinha nascido do gato, avô do primeiro, e de uma serpente que era, por sua vez, tia do boi. Estes parentescos espirituais só ele os conhecia, e só ele, com a sua imediata consciência do invisível a que pertencia, podia estabelecer. As almas não sabiam disto, em caso algum, a não ser por raros e fugidios pressentimentos que não eram capazes, presas da carne, de interpretar, ou por pura teoria que, isso, sim, interpretavam o mais que podiam, quando eram humanas. Muitas vezes ouvia os habitantes da aldeia (que ele já conhecera como antepassado deles mesmos ou de animais que lhes circulavam ao pé), perto dele, e convencidos de que a sombra da árvore os inspirava, fazerem as mais cómicas conjecturas a respeito das suas vidas passadas e futuras. Melhor dizendo, só das passadas, porque, apesar das modéstias que ostentavam, sempre se imaginavam conquistando o céu.

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Jorge de Sena em «Kama e o Génio» 

no livro «Antigas e novas andanças do demónio», páginas 145 - 147

edição Edições 70

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