Entrei na pastelaria para comprar o pão este Domingo uma hora depois do que é geralmente habitual e, portanto, o evento foi fortuito e casual, porque irrepetível, porque fugiu à rotina das manhãs em que regresso do turno nocturno e estou com vontade de tomar o pequeno-almoço, comprar o pão e vir para casa dormir. Porque já era tarde, ignorei o pequeno-almoço e pus-me na fila para a compra do pão. Uma senhora apenas à minha frente e ao lado, em modo de espera olhando para dentro do balcão, outra senhora estava. E foi ela que me captou a atenção: era da minha altura (e este é um pormenor importante), vestia sobriamente e agasalhada com um casaco comprido por causa do frio, tinha uma pele de rosto bem cuidada, um cabelo castanho bem penteado, em suma, era uma mulher linda ali no balcão olhando em frente para mim que estava a três metros dela na fila do pão, e eu sempre que vejo uma mulher linda colo os olhos nela e só desgrudo tentando disfarçar para que ela não se sinta talvez incomodada. Naquelas dezenas de segundos em que estive à espera da minha vez, olhei para a mulher linda, admirando a sua beleza, ela parecia jovem, parecia ter pouco mais de trinta anos, e olhei e ia olhando também para a caixa onde o empregado servia o pão, e ela, a mulher linda, olhava para o balcão e olhava para mim, também ela parecia como eu -- admirada, estávamos os dois banzados pelo outro, parecia que nos conhecíamos.
Chegou a minha vez, o empregado sorriu e eu sorri para ele, dissse bom-dia e pedi sete pães, pus o dinheiro em cima do balcão. Foi aí que a mulher linda falou, melhor, chamou por mim, disse o meu nome porque talvez reconheceu a minha voz, chamou interrogativamente a ver se era mesmo eu: -- Ru, Ru?
E eu peguei no pão, nem sei se peguei no troco, e fiquei com o pão nas mãos a olhar banzado, maravilhado com aquela beleza que por algum motivo ali à minha frente me conhecia e me chamava com um sorriso no rosto, eu também me recordava daquela voz, só estava banzado porque não sabia donde.
-- Sou a Berta, a Berta!
Fez-se luz, a minha noite de trabalho tinha sido monótona, estava até aborrecido por questões laterais, estava no início dos meus dois dias de descanso, queria dormir, mas naquele momento fez-se luz:
-- Mas estás tão... estás tão...
Eu queria dizer «estás tão linda» mas as palavras faltavam-me, eu estava siderado, a Berta dos meus livros, a Berta minha colega na universidade há mais de vinte anos estava aqui na minha zona e sorria para mim.
-- Estou mais velha!, disse ela sorrindo.
-- Estamos todos!, sorrimos os dois.
Depois eu disse, como que a sinalizar o meu espanto, ela era originalmente de Gaia, o que estaria ela a fazer em Tintus Rius?
-- Eu moro aqui!
-- Onde?, perguntou ela.
-- Ali à frente em Carreiros.
-- Vou-te dizer onde moro, um pouco abaixo do Dallas.
-- Ainda estás com o... com o...
-- Com o Ferreira [nome fictício]? Sim, temos dois filhotes, eles agora estão no futebol, e eu estou aqui a comprar um bolo, fazem anos.
E eu banzado a ouvir, sorrindo e sem palavras, contente, e ela como sempre, sempre alegre e feliz, mostrando que a vida a tratou bem, que os seus cinquenta anos de idade a mantiveram elegante, como se tivesse menos vinte anos.
-- Costumas vir aqui?
-- Sim, respondi, é aqui que compro sempre o pão.
Não dissemos muito mais coisas, despedimo-nos com dois beijos na face, como amigos de longa data e eu vim-me embora para casa, deslumbrado, contente, foi o que disse ao jantar aos meus pais:
-- Mãe, foi como se uma figura pública de quem tu gostasses, olha, o Celinho!, te encontrasse na rua e te fizesse uma festa. Foi assim como eu me senti hoje no Mister Pão, uma beldade gostou de me ver. E eu vim para casa e por isso até demorei uns tempos a adormecer porque estive a lembrar a Berta e o Ferreira e os nossos tempos da universidade, fomos os três caloiros no mesmo ano e se eu depois me extraviei, eles os dois, que já na altura eram namorados, representam para mim o tempo em que a vida era feliz e inocente, temos boas histórias, o Ferreira até costumava contar uma que lhe ficou na memória: estava eu e ele na bar da associação de estudantes, esta tinha quatro mesas de bilhar, e eu estava a jogar com ele, éramos caloiros, aparecem dois tipos que nos pareceram veteranos e que nos convidaram para uma partida perde-paga, e nós com medo de sermos praxados mas confiantes aceitámos, estivemos praí três ou quatro horas a jogar e ganhámos, nem sei agora se tivemos plateia de colegas caloiros a ver-nos jogar, mas ganhámos e os dois tipos afinal nem eram estudantes e muito menos veteranos, eram dois tipos da cidade que entraram no bar, o bar era de porta aberta a todos e não apenas para universitários... é... bons tempos. É, mãe, e fiquei contente por vê-la, e eu pensei durante muito tempo que todos os meus amigos da universidade me detestavam e ela não, fez-me ver que é capaz de haver muita gente do passado a recordar-me, a lembrar-se de mim, a ainda gostar de mim, eu que pensei que só lá fiz merda. Mas também fez-me ver o quanto eu sou anti-social, qualquer outra pessoa hoje no meu lugar teria trocado números de telefone e contactos e marcado um encontro, até com o Ferreira para irmos beber um copo e falarmos da vida, mas eu não fiz isso, ela estava ali à minha frente, linda como sempre, jovem e elegante e sem a vida a ter tratado mal, e a vida a mim tratou-me mal, é claro que iria gostar de saber onde o Ferreira trabalha e onde ela Berta trabalha mas aí eu teria de falar de mim e do que sou hoje e lembrar o passado e não quis fazê-lo para não falar de miséria e vim para casa dormir.
-- Olha, dizes que és anti-social, olha, a dona Lininha que ajuda na Loja falou comigo e pediu-me conselho, o neto também é anti-social, não arranja amigos, até o mandaram ao psiquiatra..., diz a minha mãe.
-- Não arranja amigos, há muitas razões para não se ter amigos, é só ser-se mau ou só fazer merda, e também há os falsos amigos, não sei, o psiquiatra vai-lhe dar comprimidos, vai torná-lo num zombie.
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Claudio Mur
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