É claro que Rogério, depois de aos dezoito anos ter deixado Gloria Filho de Cisne pendurada na paragem do autocarro às três da manhã numa noite de greve dos motoristas em que os serviços mínimos dificilmente seriam cumpridos e seguido num uber chamado com a aplicação do telemóvel emprestado pelo pai, depois de aos vinte e cinco anos se ter formado em advocacia e haver conseguido tirar o estágio profissional com o alto patrocínio do homem do cadeirão seu primo na alta finança, depois de aos trinta anos ter conseguido apropriar-se com a ajuda dos ácaros das criptomoedas aconselhados pelo grande especialista em informática da marquise lisboeta de Boliquei-me das accões e títulos em caixa de várias nano e micro e mini e pequenas empresas e ter construído o seu império na área dos serviços, sentiu uma necessidade enorme de oferecer bolas de futebol e frigoríficos ao seus vizinhos, porque passou numa feira do livro e comprou um livro do Orwell onde ele passa fome vivendo num hotel com seis francos por dia há um século. Seis francos vezes trinta e três escudos do câmbio dá aproximadamente um euro hoje um século depois. Rógério foi eleito com aclamação popular.
Rogério hoje, tendo caído do cavalo e sendo um presidente destituído e reformado por invalidez, lembra o seu tempo há setenta anos quando o pai lhe pediu o telemóvel de volta e o pôs fora de casa porque a mãe da Glória não perdoou a afronta feita à filha e a enorme conta de prozacs e rapé de nariz usados na convalescença dela. O pai pensava à antiga e Rogério teve de se fazer à vida. Eis um primeiro relato do seu diário:
09-10-21,12h43 PM
Estou em casa. Já almocei. Aqueci no microondas um prato com arroz, massa em meia lua com sardinhas em molho de tomate refogado juntamente com finas fatias de alho, cebola, cenoura, azeite e pimentão vermelho. Já tomei café. antes de almoçar, lembrei-me de transcrever do caderno finado as duas anteriores e primeiríssimas entradas neste novo caderno.
Reparo que o facto narrado de não haver troco, uma moeda de cinquenta cêntimos, para a cerveja ser falso. Há de facto um estojo cor-de-laranja que contém o dinheiro em caixa das bebidas que estão no frigorífico do hall de entrada à disposição dos hóspedes. Havia, de facto, dinheiro em caixa mas era a minha primeira noite de trabalho, não me lembrei da existência do estojo e disse ao hospede que não tínhamos troco, acabando ele por mo oferecer e eu registar como entrada. Na noite seguinte, o patrão deu-me a gorjeta que eu tinha registado.
Recebi uma segunda gorjeta na segunda noite de trabalho, ontem, quando admiti completamente fora de programa um casal português às sete da manhã num quarto sobredimensionado, pelo qual cobrei erradamente o preço económico. A minha gorjeta consistiu em o cliente arredondar o preço e oferecê-lo a casa. Eu registei a oferta e o patrão chefe quando chegou, ou melhor, quando a segunda chefe filha-do-patrão chegou às nove da manhã ofereceu-me o euro da gorjeta.
Em relação a bebidas, esta noite vendi uma garrafa de água a um cliente num quarto económico na cave.
Neste momento, é uma da tarde do segundo sábado de Outubro. Terminei a minha terceira noite de trabalho às nove da manhã. Ao sair, levei o lixo ao contentor e acendi um charro a caminho da estação de metro. Resolvi reactivar a assinatura mensal do transporte público porque o vou utilizar todos os dias e compensa tirar o Andante. Foi logo na primeira manhã de descanso; antes de chegar a casa passei na Loja Andante da Trindade, tirei a senha e esperei a minha vez, havia setenta pessoas à minha frente e eu estava com pressa; resolvi ir sem bilhete a outra loja andante onde eu sei que o serviço é mais rápido porque é uma loja menos central que tem menos procura; concluí o processo em quarenta minutos. Voltei para casa com o propósito de dormir.
Dez e meia da manhã e eu sem sono. Foi há dois dias. E ontem também não descansei, não dormi de dia e hoje também não. O que eu pensei hoje às nove e meia da manhã quando esperava o metro de regresso a casa era que hoje também não iria dormir. Pensei também que me esqueci de despejar o cinzeiro utilizado por mim durante a noite. Levei o lixo ao contentor mas antes esqueci-me de despejar o cinzeiro. Não foi por mal, foi apenas esquecimento, tenho de melhorar os pormenores, afinar o meu trabalho.
Por exemplo, hoje servi pela segunda vez o pequeno-almoço a um casal de polacos. Hoje correu bem, ontem foi mau demais. Servi-lhes o café antes do leite, eles levantaram-se para ir procurar uma malga para pôr os cereais, o que é uma tarefa minha e que hoje corrigi. Ontem, tive a desculpa por ter sido a primeira vez, hoje correu melhor: até lhes falei dos quarteirões locais com exposição e venda de arte para eles explorarem enquanto estão na cidade.
O chefe patrão vem sempre às seis e meia da manhã fechar as contas da noite e abastecer a Residencial de alimentos e outros artigos, pão e croissants frescos para o pequeno-almoço. Ontem, ensinou-me a montar a mesa com os pratos, pires e chávenas, a colocar celofane no pão e no croissant, a preparar as fatias de queijo e fiambre; mas ontem esqueci-me de colocar o açúcar e as colheres para os cereais. Hoje corrigi. Montei a mesa às seis da manhã e quando o chefe chegou, meia hora mais tarde, mostrei e ele aprovou.
Bom, hoje correu melhor mas a polaca pediu um chá e eu reparei que não havia água engarrafada para aquecer no bule ao fogão, perguntei se podia ser de torneira, ela disse que sim. Pus o bule no fogão eléctrico e demorou quinze minutos a ferver. Foi quando reparei que ao lado do fogão havia uma chaleira pronta para aquecer água. Foi mais um erro por inexperiência e distracção, e também serem oito e meia da manhã e estar há quase doze horas a trabalhar, ajuda a desculpar. Mas no próximo pequeno-almoço não vou errar neste pormenor.
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