sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Um conterrâneo soldador a ler Walser

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 O meu pai perguntou ao almoço se eu poderia levar a minha mãe, em vez dele, à cabeleireira às cinco da tarde e eu respondi:

-- Não posso, tenho de ir entregar a carta da mãe nos Correios e depois apanhar lá o autocarro para ir à Lapa comprar mortalhas.

Não disse que não chegava a tempo, completei a negação dizendo: -- Em Forno Town as mortalhas custam um euro e onde vou custam vinte cêntimos. Não vou ao Forno comprar mortalhas para fumar no fim-de-semana, eu quando vou à Lapa compro mortalhas para três semanas.

Quando tomei o café com os meus pais, entreguei o jornal para eles lerem, peguei na carta da minha mãe e desci as escadas até ao meu anexo. Estive a ouvir um cdr de Margarida Guia que havia comprado recentemente e a pensar que era do café em excesso os problemas no estômago nos últimos dias. Não sei nada sobre Margarida Guia, sei apenas que é portuguesa e vive em França, este trabalho tem field recordings, voz e alguns instrumentos, uma ou duas boas melodias, é um disco curto, pouco mais de meia hora, mas as boas obras não precisam de ser longas.

Pensei «É tempo de ir.» Meti no walkman uma cassete de Lieven Martens e fui pelo caminho dos Coriscos aos Correios. Cheguei, esperei a vez, e entreguei a carta de porte pré-pago ao balcão. Saí da estação e cheguei à paragem, o autocarro chegou em três ou quatro minutos. Entrei e sentei-me na cozinha do autocarro e carreguei no stop do walkman. Lieven Martens usa igualmente field recordings que exigem a máxima atenção e o barulho do autocarro, do motor e do ar condicionado impedem que se ouçam todos os sons.

Três paragens mais à frente, entra o Zezinho e ignoramo-nos mutuamente e olimpicamente ele sentou-se no outro lado da cozinha e os lugares entre nós dois foram ocupados por um outro passageiro que se sentou na paragem seguinte. Os seus fones são mais potentes que os meus mas o som que deles saía fez-me pensar «Ainda vive no tempo das raves e das pastilhas daquele sócio que mais ninguém viu.» Era só Tum tum a saír dos fones do Zezinho e a meterem-se no meio do som do trânsito, das portas a abrir, das validações do andante, do motor, das notificações do telemóvel da passageira à minha frente. Mas, olha, é o que temos, os conterrâneos de Carreiros City só ouvem techno e djs de rave.

Conformado mas pouco importado saí na minha paragem-destino e pus os meus fones retro nas orelhas e carreguei play no Lieven Martens e começei a ouvir sons de floresta com pinceladas de sintetizador, pareceu-me um clarinete sintetizado, misturado no barulho da passadeira e da rua abaixo.

Passei numa livraria e vi na montra um livro de Maria Velho da Costa, fiquei curioso, não dizia o preço, teria que ir levantar dinheiro e retornar aqui, «e depois quando iria eu ler este livro?», «não estou em alturas de acumular», sigo rua abaixo, vejo noutra livraria no caminho para a tabacaria outro livro, José Régio: Jogo da Cabra Cega, «que terá este livro de disruptor para estar aqui neste montra?», fico curioso mas sigo o meu plano: comprar mortalhas. Sigo em frente.

«Qual era o jogo da cabra cega?, não me lembro, havia o cavalinho, o pião, as caçadinhas, as escondidinhas, a macaca...», penso eu ao chegar à tabacaria.

Compro mortalhas e retorno o caminho a pensar no livro, «a livraria tem multibanco...», entro e peço para folhear, Vergílio Fereira diz na contracapa ser um dos três melhores livros portuguses a par com Húmus de Raul Brandão e a Confissão de Lúcio. Sorrio ao lembrar o Mário de Sá Carneiro ser aqui citado, já não o leio há quase trinta anos e nem sei se ainda tenho saudades. Compro o livro e venho para a paragem de autocarro.

Chego a casa às 17h30m. Os meus pais ainda não chegaram da cabeleireira e também tinham que ir a uma modista ali ao virar da esquina.

Dou mais uma audição à Margarida Guia. «She's growing on me». Decido ir tomar um café.

Saio do anexo com o livro que ando a ler e com intenção de subir a rua, mas vejo que os meus pais já chegaram e me olham pela janela. Digo: 

-- Vou tomar um café. O meu pai responde:

-- A tua mãe quer que tu vás com ela ali abaixo buscar uns diospiros...

-- Ó, mas não precisa de ser agora, quando voltares. Diz a minha mãe.

-- Uns diospiros? Aonde?

-- Ali abaixo. E aponta. -- A senhora disse...

-- Na casa do João Filipe?

-- Sim.

-- Está bem, vamos lá. 

Volto ao anexo para deixar o livro e depois desço a rua duas casas. A antiga casa da mãe do João Filipe foi vendida e o novo dono está a fazer obras e o diospireiro está carregado. E a nova dona anda a distribuí-los pelos vizinhos. Batemos ao portão. Eu digo:

-- A senhora da casa disse à minha mãe que podia vir buscar diospiros.

Chega o dono. Jovem com menos de trinta anos. Brasileiro. Desculpa-se de ter as mão sujas de andar a fazer as obras de remodelação e não nos apertar a mão e chama um dos rapazes que o está a ajudar e diz-lhe para ir buscar o cabaz com os diospiros que a sua mulher tinha posto de lado.

A minha mãe começa a encher a fruteira que havíamos trazido para recolher os frutos e começa a encher, a encher a fruteira. O dono diz qualquer coisa banal, a minha mãe diz que conhecia a antiga dona, eu digo que os diospiros fazem bem à saúde, o dono diz que ele não mas a mulher dele come, está sempre a comer mas olhe!, temos a árvore cheia, eu pergunto «mãe?, não é aos olhos que os diospiros fazem bem?», a minha mãe reflecte, vira-se para o dono e diz que os diospiros fazem mal aos diabetes e entretanto, acaba a comentar «vou acabar por os levar todos...»

-- Mãe, não achas que são demais? O senhor pode querer oferecer também a outras pessoas... digo eu a pensar se a minha mãe se lembra que tem diabetes. Também a minha mãe tem a sua droga que não sendo um vício, sempre que chega perto de uma fruta doce...

Ele diz: -- Temos tantos, pegue eles todos, minha senhora.

Obrigado e despedimo-nos, eu aperto-lhe a mão. Vimo-nos embora, subimos para a nossa porta, eu coloco a taça na mesa da cozinha e venho embora, passo no anexo e recolho o livro e vou ao café ao cimo da rua.

Entro, cumprimento e peço o meu café. Um rapaz olha para mim, eu olho para ele, ele sorri e eu sorrio, estendemos a mão e cumprimentamo-nos.

-- Não sei se te estás a recordar...

-- Não me lembro agora do teu nome mas já não te via há anos. E então, tátudo?

-- Tátudo!

Volto ao café e pego no telemóvel para ver a notificação. Olho à frente da mesa e vejo uma mão estendida para mim. Olho para cima e vejo um outro sócio que também já não via há anos. Ele mostra atenção pelo livro que tenho na mesa, pega nele, folheia as primeiras páginas, eu digo:

-- É um livro com a fala de um índio, o autor escreveu-o com a ajuda de um tradutor, o chefe índio conta a história da sua tribo, e o autor toma notas escritas do que ele diz pelo tradutor.

-- Sim, sim, um dos melhores livros que li foi o livro do Duchaussois...

-- Sim, conheço, li-o com vinte, vinte e um anos.

-- Eu tenho a edição dos anos setenta.

-- Sim, deve ser valiosa, trata bem desse livro...

-- Já o li para aí seis vezes.

-- Mas também podias ler outros...

Ele confirma e diz solene: -- Sim, tenho as Memórias de Adriano de Yourcenar...

-- Conheço o livro mas nunca li.

E depois pensa e pensando diz: -- Ualser...

E eu «Ualser... estará ele a pensar em, conhecerá ele?» e pergunto: -- Robert?

-- Sim, Robert Ualser, tenho um livro dele...

Eu completamente maravilhado pergunto: -- Tens um livro dele?

-- Sim, como se chama o livro? 

E põe-se a pensar e tudo isto é ao milésimo de segundo e também eu me ponho a pensar em qual livro, e digo: -- O ajudante?

-- Ele diz: -- Sim! e dirige-se à casa de banho e no caminho eu digo um pouco para confirmar que ambos falamos do mesmo:

-- A mulher do patrão era a frau tobler. E sorrio. Ele sorri e entra no WC. 

E eu maravilhado a pensar «um soldador a árgon... um operário a ler Walser, um conterrâneo meu a ler Walser!», a ler e a dizer Ualser, eu sempre pensei que se dizia Valser, mas ele tem arranjado trabalho como soldador por essa europa fora, até pode estar certo, se Walser for como Walter ou Wayne... o W lê-se como um U...

Quando chego a casa são horas de jantar.

Mas depois penso «nunca fiando, eu sei que há quem leia as minhas publicações, mas não tenho falado do Walser... ele também não se lembrou do nome do livro, fui eu que me antecipei, eu não dava para polícia de investigação, devia ter-lhe dado tempo para se lembrar do nome do livro, assim apenas criei uma hipótese de ficção... mas só o facto de ele ter, à partida, dito Ualser já é maravilhoso, não sendo um absurdo é algo que ressoa.»

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