sexta-feira, 29 de maio de 2020

Ensor na Ribeira


'Ensor na Ribeira'
óleo sobre tela
73cm por 60cm
2020 
ZMB incorporando Ensor

As imagens associadas a este meu trabalho são uma pintura de Ensor e um desenho meu do período em que morei na Ribeira, no Porto



quarta-feira, 27 de maio de 2020

Transacção bibliómana

Estava eu a tomar o café caseiro e a digerir o fígado de cebolada com batata cozida do almoço que mandei vir, porque vualá encontrei uma verdinha no chão picante e abrasador deste mês de Maio quando à rua me desloquei e o Giu chama-me pela janela:
-- Ei Rui?
-- Atão tátudo?
-- Posso entrar ou a tua amiga está aí?
-- Não está. Podes entrar, entra.
-- Então, estavas a pintar?
-- Não, estava a ler.
-- Que livro?
-- Um livro de Tom Wolfe...
-- Tom Wolfe.... eu acho que tenho lá qualquer coisa dele...
-- Tens? De Tom Wolfe ou de Thomas Wolfe? Não sei se são o mesmo, eu acho que o Thomas Wolfe é já antigo...
-- Olha, a coisa boa que a Junta me fez ontem, veio cá um senhor, subiu os degraus do corredor da ilha, eu estava à porta do Luis, e o senhor: «senhor Giu, venha cá,» Deu-me uma saca de livros!
-- Pois acho bem, quando eles andaram a deixar os livros da bibloteca nos bancos do jardim e nas paragens do autcarro... eras tu que os apanhavas na maior parte.
-- Olha, depois passa lá em casa, pode haver qualquer coisa que te interesse.
-- Tá Giu, eu depois vou lá, Até logo.
Volto para o quarto, ponho um cedê de Mola Dudle a tocar e acabo a rir-me e a falar comigo próprio: «Andávamos todos a ironizar sobre e eu até fiz uma posta em que falava da entrega dos originais ao presidente que no retorno estacionaria um camião à porta da ilha com livros para o Giu,,, vê-me só o absurdo da ilusão, e agora entregam-lhe à porta um saco cheio de livros, olha, é o livro escrito a cumprir-se. Tenho de ir cheirar o seu Wolfe, se fosse o Roger,,, o Tom da Fogueira das Vaidades que estou a ler é potente, volto já!

Acabo por trazer três livros: Tom Wolfe, Hasek e Stendhal, por um euro mais a troca de um Bernanos, um Mauriac e um Radiguet, todos da colecção miniatura.
O Giu foi tomar o seu café, e eu vim à minha vida.




sábado, 23 de maio de 2020

terça-feira, 19 de maio de 2020

Comprimidos e todo o tipo de rodas, bloody music


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T Capítulo XIII
Death In June: The last farewell
ZMB: Intermission III

Neste momento, é uma coincidência agradável, bastante feliz aliás, ter conhecimento de alguém perto a quem possa ir comprar um pouco de paz, se eu quiser claro, e claro que quero, eu estou necessitado. Hoje, a aflição dos testes e do referendo passou, ando mais calmo, larguei as pastilhas da prescrição, afinal, a visita de rico ao psiquiatra privado resultou em exorcismos auto macerados, em vodka misturada com comprimidos Normison. Tenho de encontrar o tom para voltar a descrever o inferno da viagem ao subterrâneo, ainda não disse tudo, ainda me falta falar dos desvios de identidade em que me torno quase gaja, ainda me falta aludir às frases assassinas como então mata-te: frases ditas a quem procura conforto e ajuda, companhia, namoro, frases sádicas ditas por se ter perdido o amor por quem se sente e se confessa moribundo, e, no momento da aflição e da desconfiança, não sabe como sair do buraco, nem ela nem nenhuma outra mulher quer namorar um moribundo, um caído em desgraça e só um padre pode querer ajudá-lo com a hóstia. Um padre ou um predador sexual a tentar seduzi-lo como troféu de caça.
Caminho já noite e não encontro ninguém. Vou perdido no meu real eu distorcido e sem muita vontade de voltar a ver G, porque não estou ainda em condições de ser visto por ela, mas tenho curiosidade de saber o que os nossos olhos dirão hoje, dois meses depois. Decidimos ver-nos para trocar os pertences defuntos. Hoje, vejo-a inquieta, nervosa e isso preocupa-me. Não falamos muito porque não temos muito para falar ou porque não devemos querer falar. Ela treme, nem um café ela pede à empregada, não quer falar. Tudo é rápido, muito rápido. Não dá tempo para pensar, trocamos as palavras necessárias, dá-me um livro de Sade e diz que quando o comprou pensou em mim, engole homem!, eu devolvo-lhe a máquina fotográfica que me emprestara. Depois, levanta-se e sai. Separamo-nos para sempre. Nem mais uma palavra sequer. Parece definitivo. Afinal, ela anda a comprimidos a tratar uma depressão por causa de mim e eu sinto-me o culpado, e esqueço que também ela não teve sempre razão, e, se calhar, ela está deprimida não por eu a ter deixado mas porque tem remorsos de, quando eu desabafei estar a ponto de me desfazer por me sentir incapaz, ela ter dito para eu me matar, então ela está deprimida porque eu tive a coragem de lhe fazer a vontade e falhei covardemente.
Tudo isto, é absurdo, fizeste-me bem e fizeste-me mal, eu fiz-te bem e fiz-te mal. Depois, logo a seguir, entro noutro café e desenho num guardanapo um homem ajoelhado em frente da sua cruz, sou eu, claro, a fazer-me de vítima, e lembro a aparente frieza do encontro com ela, a muita rapidez, o minimalismo, a ganza ainda não está, ainda não comecei a pensar e, por isso, a realidade parece-me ter sido encenada, o nervosismo seria dissimulado, a minha aparência indiferente seria dissimulada e essa rapidez... afinal de contas gostei do momento! Teria sido uma bela representação teatral mas como não é teatro nem cinema mas sim a vida, o dia-a-dia...
Sim, gostei do momento. O problema é que ele dá-me vontade de continuar a beber, de entrar na merda outra vez, há muito tempo que não tenho um daqueles delírios. Talvez hoje?
Por todas estas razões, claro está, é uma feliz coincidência saber que poderei ir bater à porta de um tipo e pedir uma milena de paz, outra de alegria, e uma terceira para umas horas de esquecimento, e tu estás tão dentro desse quadro que só tu vês o que lá está... disse-me ela uma vez e eu agora respondo, dando-lhe razão e pensando no diálogo de uma música de Tuxedomoon: ah claro, as microondas, a viagem espacial com certeza... o bom destes momentos é eu poder fechar-me sobre mim próprio, esquecer tudo e, ainda assim, sentir-me feliz e dizer amanhã é outro dia, amanhã suportarei tudo de novo.
Saio de casa do vendedor com uns ramos de arbusto enrolados em papel de jornal, vou rápido para casa para não ser denunciado pelo cheiro da planta. Ao chegar a casa, preparo um café de saco cinco estrelas e passo à vontade uma meia hora a desfazer os cabeços de marijuana para dentro de um saco de tabaco Águia, ainda bem que o Ernesto é um gajo fixe e, por três mil escudos, tenho agora um maço de Águia cheio para fumar, ele disse que era erva da melhor qualidade, vou fazer um éle e fumar já uma valente broca... entretanto, vou pôr a tocar a cassete com a melodia The last farewell enquanto verbalizo para o minidisc a história da luta intestina entre Ernesto Wilde e Ernestine Genet. É um amor visceral.
(Lado A, início.)
Quando Ernesto chega a casa senta-se na poltrona. À sua frente, o espelho ocupa toda a parede. Na mesa-de-cabeceira, a seu lado, tem o cinzeiro e a caixa de fósforos.
(Um longo silêncio.)
Dá-me lumes.
Obrigado! Não o apagues. Deixa-o consumir-se.
Lembro-me agora que ontem tinha algo para te dizer, não te disse, não sei o que era, tentava lembrar-me agora mas esqueci-me completamente.
É natural. Isso acontece... mas não te lembras sequer das formas gerais?
Bem, creio que te queria dizer qualquer coisa como quanto és belo e adorável mas a frase, que deveria em meu entender deslumbrar, esqueci-a por completo.
Não penses mais nisso. Não vale a pena nem são necessárias grandes frases poéticas e românticas para comigo. Não é necessário!
(Após um longo silêncio, o necessário para colocar a beata no cinzeiro, o dialogo é retomado.)
Contigo é tudo tão fácil, fazes-me sentir tão liberta, tão abstraída da realidade que...
Hum calma! Não exageres. Incomodas-me porque soa falso. A vida é algo mais que a sensação de estarmos mergulhados num mar perfumado de rosas.
Adoro o modo como jogas com as palavras, com as frases feitas, expilica-te plise.
Olha, eu detesto dar explicações. Não estás à espera que me vá contradizer, pois não?
Bem, gostava que, por breves momentos, esquecesses esse teu orgulho de caranguejo e explicasses o porquê de não gostares de dar explicações.
Porque peru falando sai apanhando. Porque o silêncio é de ouro. Porque as gavetas estão fechadas. Porque peru calado ganha um cruzado.
(Rio-me suavemente, acendo novo cigarro e ouço divertido.)
Porque mais valem, às vezes, cinco minutos de silêncio que trinta minutos de conversa.
Concordo mas nem sempre és assim.
Obviamente que não. Isso depende das circunstâncias. Existem alturas em que, por qualquer motivo, me emociono e interrompo frases alheias e debito longos discursos sobre... sobre, olha às vezes, sobre velhas banalidades gastas. E delas faço histórias com princípio, meio e fim. E nunca mais me calo. E, geralmente, ninguém me interrompe nem nunca ninguém parece acompanhar ou concordar. Apenas se riem divertidos e não sei se do que digo, se da minha expressão, sei lá de quê?! Nessas ocasiões, bem que gostaria de ter um espelho apontado a mim, como agora, para obter a certeza, ou melhor, para talvez eliminar uma das possíveis... uma das possíveis hipóteses acerca da risota. Mas nessas ocasiões nunca tenho um. O que realmente acontece é fartar-me deles se rirem de mim, e fartar-me deles, e fartar-me de mim próprio. Então, como, por formação, tenho quase sempre a estúpida delicadeza de me não levantar e sair, calo-me abruptamente e desligo por tempo indefinido.
(Longo silêncio. O frio começa a fazer-se sentir. A Elsa está deprimida, chovem cântaros com sapos.)
Está um belo dia, não achas?
Não sei porque insistes em me aborrecer.
Oh... estava apenas a brincar contigo.
E um longo vazio acende-se...
E a provocação degenera...
E o nonsense é cultivado...
E eu adoro-te...
Sim, no fundo, compreendemo-nos bem ou, melhor, aceitamo-nos.
(Silêncio breve.)
A questão é seguir a regra dos jogos. Aqueles que, como diz o outro, não levam a nada. E depois está nas nossas mãos não os deixar rir e sermos nós a rirmo-nos deles, a colocá-los por baixo.
Sendo assim, concordas comigo que...
Sim mas por motivos diferentes. Tu calas-te ou manténs-te calado dado teres medo do riso alheio. Eu não, eu limito-me a observar.
Bem, nem sempre procedo como te disse, depende das circunstâncias, das pessoas...
Eu limito-me a observar. A condensar as pequenas particularidades de cada um numa enorme forma geral. De modo a poder dizer algo de concreto e quase sempre com um objectivo bem definido.
Hum, quase que o posso adivinhar, o objectivo é... o objectivo é... vá lá di-lo, o objectivo é... o objectivo é... é o sarcasmo?
Exacto! Não há nada melhor que gozar com aqueles que estão sempre à espera da melhor oportunidade para se rirem de nós.
(Silêncio breve.)
És um ditador!
(Rio-me.)
Não obrigatoriamente. De qualquer modo, penso que se não deve ter pena dos fracos e que os fortes não devem ser, como dizê-lo?, minimizados.
Heil! Fascista do caralho!
Não obrigatoriamente mas porém, a populaça gosta de caras bonitas e severas. Que lhes dêem dinheiro. E as sentem à mesa delas. E lhes dêem um cargo na empresa. Somos todos fascistas e egoístas a querer que nos sustentem quando corre mal. Quando corre bem fugimos aos impostos.
O egoísmo é uma das virtudes do nosso signo.
E é igualmente aquele que é mais sensível e mais dado a partilhar e a oferecer.
O problema é que existem tão poucas pessoas a quem possamos dar algo de nós...
E quanto mais se observa mais se repara nesta triste verdade que...
Até que... aparece alguém que nos surpreende...
Sim... porque nunca estamos à espera de nada... sim... nunca esperamos nada... até que alguém aparece e diz uma frase... alguém cujos olhos brilham de um modo preciso e num preciso instante...
E nos cativa e nos aprisiona os sentidos e o corpo e nos faz querer o seu corpo, nos faz desejar sentir o seu aroma...
E nos faz afundar na solidão de nunca essa pessoa ser na realidade aquilo que é nos nossos sonhos...
E de a querermos sempre moldar...
Ou de nos querermos moldar a nós próprios contra o nosso gosto e orgulho para a podermos cativar, para a podermos ter...
(Silêncio breve.)
E no fim, ter a sensação de mais uma vez ter perdido...
E o que sempre fica é aquilo que sempre ficou...
As frases ditas, as grandes palavras que gostaríamos de pronunciar em voz alta e que sempre se aniquilam...
E nos levam a experimentar a estranha sensação de existir alguém dentro de nós que se reflecte num repelente espelho, que nos aceita tal como somos, que nos compreende e não nos exige nada, nem nos promete algo de impossível, nada... nada de irreal...
Alguém, uma alma gémea talvez, alguém que nos faz pensar que não precisamos de mais ninguém...
Somos belos e adoráveis... e felizes...
Sim, que não precisamos de mais ninguém porque somos felizes e não temos medo de ficar sós e isolados...
E que podemos, então, babarmo-nos com o sarcasmo atirado às suas faces atónitas!
(Um longo silêncio.)
Dá-me lumes.
(Pego na carteira de fósforos, acendo um cigarro e uma breve claridade se reflecte no espelho colocado nas paredes frias.)
Talvez o que falte a este quarto seja uma bela lareira.
Oh!, se pudesse ser sempre assim.
(Fim. Lado B, início.)
Ernestine abre a porta do quarto, entra e vê no reflexo do espelho uma cor de cigarro, fica um bocado assustada e pensa: parece-me um óme, deixa ver, penso que é o reflexo no espelho da sua cor de cigarro na minha boca, para mim tu pareces um palhaço marchando como os espermatozóides em direcção ao útero, ouves Vangelis e Colombo é?, porque também tu não deixaste os índios americanos em paz? Sinceramente, foste mesmo uma mulher para mim, gostei de te meter o dedo, meu querido, e tu gostaste, tu ainda gostas de mim, eu sei. Sei que dizes que, pelo menos, deste-me a tua vozinha e eu alguns dos meus sonhos, alguns... algumas ensonadas nozes... o teu corpo deste mas não a tua alma, engano-me?, a tua voz, a tua doce voz, cabelo preto, cabelo louro, amor de verdade?, mas bueno que si, vallis jordi, és a minha sombra, sou o teu sangue.
(Fim.)

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Claudio Mur







domingo, 17 de maio de 2020

O dia madrugou

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Hoje Sexta-feira, o dia madrugou às seis horas e vinte minutos. Hoje C sai, eu saio do CReEA com a nota final de dez valores. Adivinho um imenso calor humano cheio de esperança no devir. Mas isso é para depois, eu nem sempre ando ao mesmo ritmo do mecanismo funcional dos objectos. Por isso, para hoje os meus planos desejam tornar o dia memorável, quer se ganhe quer se perca será virada uma página no livro cinzento ou, para quem acredita, mais um ciclo cármico se renovará. Lá fora e à minha espera estará ela, eu sei que estará lá. Será que ela virá? Será que ela corresponderá ao meu sigilo pessoal ou a um de AOS ou será até que responderá ao ponto de interrogação de Cyril Grey? Não sei... mas um novo dia surge hoje sem sombra de dúvida. Se ela não vier, será porque não sou uma prioridade... ou o meu encantamento falhou. Nesse caso, deverei ser forte e nunca me deprimir, deverei chupar o tutano da questão e envolvê-la de detalhes, pintá-la numa tela artesanal de pano-cru, e depois quem sabe... se talvez me esquecer do desejo e da ânsia de a ver aparecer daqui a algumas horas do lado de lá do portão e, para que por fim possa acreditar que a transmissão do meu fluido funciona, um dia ela acabará por aparecer as if ou telefonará a dizer que me deseja de modo orgânico.
Após o pequeno-almoço, volto ao quarto para arrumar o que falta. Tenho vinte e quatro anos e estou a sair de um longo bloqueio de três anos. Vivi mais uma existência. Agora, retiro as fotografias da parede, os pequenos desenhos, as reflexões poéticas, as ilustrações para livros futuros sobre memórias passadas. Três anos na sociedade CReEA fizeram de mim um novo homem. Acima de tudo, tive tempo para ler livros sem pensar em mais nada e tive comida, cama e lençóis lavados de borla. Mas nesta prisão escola hospital, se de sociologia cibernética pouco aprendi, pelo menos ganhei algum brio, tive acesso a situações limite, errei em progressão, a minha nota é de dez apenas mas estou livre e, depois da injecção de saída, terei acesso a consultas médicas regulares, tenho o futuro à minha frente e já não sou inocente mas sim um reinserido social. É como com as cobras, é renascer com nova pele.
Agora, tenho de pensar bem neste renascimento, e no que fazer aos livros se tenho de regressar aos outros livros, aqueles que supostamente serão o nosso ganha-pão oficial, aquele que as regras dizem ser o sustento da família... mas isso agora é passado, já passou, o gato já morreu várias vezes como devem desconfiar.
Actualmente, não tenho nada daquilo que as outras pessoas têm. Por exemplo, não tenho mulher a quem beijar, pois ela não virá eu sei, nem tenho um automóvel para passear embora tenha a carta de condução há já alguns anos. Não gosto é do sitio para onde tenho de voltar. No entanto, tenho aquilo com que cresci: os livros e as gravações de campo. Quem sabe se o assistente de reinserção social não me propõe para o rendimento mínimo?, ou se o micro-crédito me empresta massa para abrir um sítio com os meus artefactos... procura a sorte. Não a encontrarás procurando mas só ganhas o euromilhões se jogares.
Não sei. Tenho que pensar bem no futuro. Nem sei se tenho público nem sei se ela virá... seria o mais importante... mas introjectando ao espelho enquanto faço a barba, adivinharia ter tudo de bom, tudo aquilo que é desejável, tudo o que as Marias gostam: entrei nos eixos. Mas eu não sei se ainda gosto do estilo Maria. Afinal de contas, espero ter a consciência de que a realidade experienciada aconteceu mesmo. Espero acreditar que tudo se passou, não dentro de um filme mas no real. Duramente. É preciso ter uma certa força de vontade, um poder de tentar ir para Roma porque Maomé já não vai à montanha, e depois só aquele que acredita vira maluquinho da cabeça.
Vou procurar o meu espaço mas não sei em qual mundo e se habitado de todo. Qual é o meu impasse? Sinto-me pesado, é difícil sentir calor humano. Vou ter que lidar finalmente com o meu eu deslocado. Aqui dentro isto foi uma ponte, tive amigos e uma namorada que me obcecou e de todos me separei. Estive eufórico, deprimido, obsessivo, histérico e masoquista e quis-me matar porque, em certo momento, me senti um falhado no campo do amor, no campo dos resultados às avaliações de eu como aluno na sociedade CReEA e, também, no campo social e familiar. Compreendi e é por isso que me dão um dez na avaliação final global... compreendi e aprendi a paciência e a importância de saber ler e escrever um requerimento, por exemplo, a burocracia e a hipocrisia regem o mundo mas no subsolo há quem viva entre linhas. Curaram-me aqui dentro? Curaram coisa nenhuma... ela continua em memória. Mas, agora que me preparo para passar a portagem de saída da ponte, já sei ler as minhas palavras, o meu passado, sei quem não quero ser mais e sei o que quero vir a ser, aprendi o erro em mim e, ao não varrer o erro para baxo do tapete, estou a aprender a caminhar de novo.
Nestes três anos de exclusão social, nesta viagem que agora termina, houve muito tempo para pensar. Analisando este período, de todas as pessoas que conheci, aquela por quem vou ter mais respeito é certamente o professor O. Desde o traficante que vende contos ao fim de semana aos estudantes ate àquele que transacciona sabões, desde o assaltante munido de seringas infectadas até ao rapinador de joalharias, desde o crime passional inocente até ao homicídio mais sangrento mais religioso, o professor O a todos se impôs. Claro, houve igualmente os anjos caídos em desgraça, as pessoas inocentes identificadas pela sociedade como desadaptadas que não pertencem aqui, não há legislação nem ninguém que os acolha lá fora, e outra solução não existe a não ser a sociedade nunca mais os libertar e exibi-los, assim, aos visitantes da sociedade. A que classe pertencem? Não sei mas segundo a justiça à classe mais baixa, à classe dos ressacados da sociedade. Isto nem com porto felizes lá vai. Hoje, a legislação de venda e consumo ainda não foi alterada para melhor. O Bob ainda não foi libertado. Os catalogadores incluem-me na classe dos doentes-drogado-reciclados. Estou, aliás, rodeado de catalogadores, tresando a análise. Como, por exemplo, quando vou a uma loja de discos e corro as prateleiras à procura de um certo disco, duma letra ou quando leio nos jornais as críticas de um certo acontecimento, está tudo catalogado e, mesmo que de um modo inconsciente, cada um cataloga, há poucas excepções. Estamos, aliás, rodeados de fundamentalistas. Se te vêem com determinado tipo de letra, um certo elemento da tabela social, és logo catalogado como uma pessoa desse tipo, se te vêem com outra letra adicionam-te imediatamente uma nova letra ao currículo, se te vêem ao mesmo tempo com dois tipos de letras és um fonema socio-cultural. No limite, és uma palavra, uma expressão metafórica, uma grande confusão.
Após observar o quadro das notas para me assegurar em definitivo, dirijo-me a cantina para o último almoço, nem de propósito: bifinhos de peru com cogumelos. Capricharam hoje. Sento-me ao lado do professor O pela última vez.
Digo-lhe: é hoje o dia.
Parabéns, e agora?
Não sei ainda. Eu gosto de pintar e pergunto-me se não teria sido melhor ter entrado antes num curso de belas artes... mas lá está, se calhar, iria atrofiar com os ensaios teóricos, com ter de escrever sobre a história da arte e a simiologia do mundo da arte, e de tanto aprender o que os outros fizeram, esses grandes que ficaram na história, iria acabar por não saber mais o que pintar. Pelo menos, aqui dentro, neste curso cibernético aprendi a usar um computador e a ler e a pesquisar informação. Bem... e agora?, não sei, o normal será começar de novo, agora já estruturado e a saber orientar-me no caos, começar por arranjar trabalho para alimentar o meu vício.
Bons planos, temos sempre de os começar, o caminho descobre-se, a glória vem postumamente se alguém em ti reparar. Após alguns momentos, O continua: tenho uma coisa para te dizer já há algum tempo.
Força. Diga lá, é este o momento.
Terminei há pouco um livro que andava a escrever já há alguns anos. Como ele é um marco decisivo para mim gostaria de to colocar nas mãos. Mais concretamente, queria que o mostrasses a alguém. No limite, gostaria que fosse publicado. Imagino o meu nome em grandes caracteres, em grandes posters nas paredes, em grandes livrarias. Imagino-os lido por pessoas.
Pessoas?! Como assim?
Seres com ouvidos atentos à melodia da ave e da retroescavadora, ao cinzel e ao pincel, ao fraco que atira pedras ao forte.
Porquê? É você mesmo o autor?
Porquê o quê!?
O que pretende? Porque mo confia a mim?
Não sei bem. Penso que gostaria de me explicar às pessoas após me ter compreendido e explicado a mim próprio. Às vezes, os livros são como os selos, uma colecção, outros são objecto de arte, outros objectos de estudo, outros objectos de trabalho e obras para tempos futuros. Funcionam muitas vezes como exorcismos e devem mesmo muitas vezes funcionar ao contrário. Partindo de uma certa teoria nihilisto-romântica entre aspas, ao identificares-te com certas personagens de um certo livro bem escrito, poderás, às vezes, pensar que és uma qualquer espécie de insecto subterrâneo e, nesses momentos, estás no fundo por ter a pureza de observar a decadência e observares que existe sempre um motivo para essa decadência, a degradação é algo de sublime às vezes, ao observares o fundo do poço, poderás ter a certeza de que só poderás subir à custa da tua força interior, daquilo que és ou daquilo que descobriste que querias ser ou fazer. Então, por observação endógena, és muito mais que um insecto, és algo de superior a isso. Ao escreveres estás a registar as tuas dúvidas e a procurares as tuas respostas, estás a conhecer-te a ti próprio, estás assim a tornares-te mais lúcido. Compreendes?
Mais ou menos. É uma autobiografia portanto?
Sim, mas a modos que disfarçada, é uma distopia anacrónica. Tem coisas reais, outras bem menos reais. Quando se trata de pintura, há segredos que não se podem revelar...
O sol bate-me nos olhos e, por um gesto de dedos, os olhos fecham-se, tenho calor, pergunto: Porque me quer dar a sua autobiografia disfarçada?
Decide-se por uma meia mentira: Porque és a única pessoa que conheço aqui dentro com a qual me consegui relacionar por mais tempo, por me pareceres a mais equilibrada, e também porque não queres só droga, bem sei que o teu vício principal é a tinta das palavras musicais.
Então é isso, digo eu, eu deverei ficar com a sua biografia e passá-la às pessoas como literatura marginal, um novo Rimbaud, um objecto de conhecimento e ou um objecto de tortura. Ah ah... supremas ambições… é isso então? Pergunto interessado mas cheio de dúvidas.
Sim. E falo-te já dos planos para a capa...
A hora do almoço passa. Três da tarde. Dou um último abraço a O e despedimo-nos. Não devo deixar de prestar uma última visita aos vizinhos, depois é só passar pelo meu alojamento e pegar na mala.
Bato à porta. Como a porta está aberta dizem apenas: entra. L está a experimentar a transmissão vídeo do concerto de um dijei, seu amigo a um quilómetro de distância, através da internet. Podemos ver o dijei cheio de monitores, teclados, emuladores de som e caixas de efeitos e filtros, dentro do seu cubículo. Ele faz som techno e de vez em quando manda uma sms perguntando: então que tal? Ajusta os graves, diz L enquanto pede o isqueiro o J. O dijei levanta o polegar. L pega num cachimbo, coloca um pouco de tabaco como cama e vai a um pequeno tubo de um rolo de fotografia analógica e retira uma pequena pedra. Coloca-a por cima do tabaco e pega no isqueiro com a outra mão. Desvio o olhar. J diz: C, dá só uma passa para veres como é. Não, não quero canecos na minha vida, digo eu. Saio deprimido, já não tenho afinidades com ninguém, nem através da droga. Mas, vou passar em casa do A e ele dispensa-me uma milena de despedida. Fumo-a, limpo o cinzeiro e o lixo, pego nas malas e ala que se faz tarde.
É hora de partir. São seis da tarde. Dirijo-me à entrada acompanhado dos oficiais. Dizem que gostariam de não me voltar a ver.
Vou tentar, obrigado.
Do outro lado da rua, a minha consciência Id, a peste que não queria ver, espera-me dizendo: bons olhos te vejam, por onde andaste?
Afinal lembrou-se. Apareceu... pergunto-me porquê, aconteceu ou foi tudo sonho... cá estamos.
O céu está azul, o sol brilha sobre o céu azul, as sombras são cinzentas, as paredes caiadas de branco, o jardim verde, as árvores terminam a estação. Vamos beber um copo?
Ao fundo da rua, um café tem um néon dizendo MarchPush. Se não for não interessa, no entanto, MarchPush que saudades... peço uma Super Bock. Como um hambúrguer especial com bacon e ovo.
Id começa a contar uma história: Uma vez, estava sentado numa pedra à beira de uma muralha de um castelo no alto de uma colina, que em tempos antigos protegia uma aldeia, com os pinheiros desenvolvendo-se ao longo da encosta, o rio lá em baixo, as casas desordenadas no meio dos campos de cultivo... estava no meio de uma crise existencial e pedia com força solidão, um espaço que fosse só meu e pedia que mo colocassem à frente, tázaver? Ora... observando este desejo estranho designava-me, é preciso que se note, como um preguiçoso e um misantropo e, talvez por influência do filme sobre os Doors ou não, pois não sei dizer quem nasceu primeiro... ouve... imaginei que estava em casa sozinho e recebera um telefonema por volta da hora de jantar informando-me da morte de toda a minha família, numa curva da estrada... os pneus derrapando e o carro indo pela encosta abaixo. Tudo imaginação, vê lá os abismos de uma cabeça, mas... ao descobrir isto, de uma forma poética gritei aos quatro ventos que era livre e poderia ter um espaço, poderia descobrir a minha própria vontade, poderia fazer tudo o que pensasse ou desejasse. Ouve o que fiz... grafitei as paredes com tinta vermelha, disse que o castelo era meu.
Tudo o que quisesses mas só. Só e sem ninguém para te cozer as meias... diz o meu ser com sarcasmo.
Isso não interessa!, respondo: crescerei, conhecerei, tornar-me-ei grande.
Porquê todo este interesse em ser grande?, pergunta o meu ser. Porquê?, pergunto perplexo, porquê?
Porque passo o tempo a preocupar-me. O futuro, repito, às vezes, é o símbolo, a missão que tenho de cumprir, depois há os meios: os livros, a música. A missão é uma ilusão talvez, não fui ao astrólogo ouvir a sina, não está escrita, é um sonho que persigo, um desejo de ser livre, desejo de ser uma personagem, ter uma personalidade própria, correcta, original, (a)moral. Os meus modos traem-me, na verdade.
Eu C ouço-me com atenção, ouço Id com atenção: estou longe mas não tanto. É natural preocupar-me, enclausurado em sonhos, procurar o definitivo. No entanto, o definitivo que sonho pressinto-o violento, demasiado trágico, os fins não justificando os meios usam sempre todos os meios.
Que queres dizer? Mas Id, não te chega já de tragédia?
Não sei bem. Estou confuso.
Bom... Id, tenho de ir apanhar o comboio. Depois telefono. Obrigado por teres vindo.
Confortavelmente sentado na divisória para fumadores do comboio suburbano entre Derza e Triza, onde os papás moram, C pergunta-se para onde terão migrado as sereias. Afinal, o retiro de três anos deu em nada, pois nada mudou. Já pensava assim antes da admissão no CReEA, diz C. Agora tenho mais um brinquedo-repetição, um livro do professor O para expandir nas redes da sociedade da informação. 
C acende o cigarro e começa a ler o último capítulo do livro cinzento:
Conheço Ana por intermédio de um dos meus eus num baile do enterro com os Mão Morta a tocar. A minha consciência apresenta-ma e, quando a banda começa a tocar Aum, nós beijamo-nos por magia.
Dou duas passas no enrolado e começo a rir-me, digo: isto é mais uma mistificação, o O pegou no livro cinzento que eu também comprei na Livraria Cassiber e acrescentou o que bem lhe apeteceu e chamou-lhe redux. No fundo, o D, que lá trabalha, bem me disse, este livro não tem fim, não tem autor, é uma colecção crescente de títulos de amor triste, olha o que diz aqui?, Id estás a ouvir-me aí desse lado?, o O escreve que vive hoje pensando nela como em todas as outras mas já sem ódio, ciúme ou desejo... ah veneno ácido...mas aqui ele agora está a contar a história das anas... espera, vou continuar a ler:
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Claudio Mur

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Ninguém dormia

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-- Andámos nós na tropa a formar estes homens, a dar-lhes educação, princípios, horizontes, para isto? Onde é que nós falhámos?
E de novo os dois coronéis estouraram de riso e de novo o riso convocou quem andava perto para surpreender os dois homens, tamanhamente divertidos que se perdiam em lágrimas. Mesmo o espanto tímido de Maria José, o mau feitio de Maria das Dores e o pasmo desconfiado de Felismina foram vencidos por aquelas risadas tão contagiosas e a galhofa generalizou-se, e prolongou-se por frouxos incontroláveis, debaixo do alpendre, junto à piscina, a rasar os telhados, e fez alegrar ares, ervas e ramagens.
O mocho, coitado, é que estava eriçado de indignação. Outra vez? À noitinha, havia de se queixar ao melro. Mudasse-se, veio a dizer o outro. Nem pensar. E o melro acudiu com uma história: já que o mocho não se queria mudar por estar muito afeiçoado àquela oliveira, então que seguisse o exemplo heróico da coruja do Monte dos Matamouros. No Monte dos Matamouros, ao pé de Viana do Alentejo, havia um lavrador e a mulher, que eram doidos por modas alentejanas. Não tinham filhos e todo o dinheiro da cortiça, do azeite e do vinho era pouco para manter três ranchos cantadores que passavam os dias nas modas, e os lavradores com eles, a fazerem os «altos», porque possuíam belas vozes. Uma coruja que morava no alto duma chaminé e tinha ali a sua desvelada criação todas as manhãs era acordada e posta em sobressalto pelo irromper fortíssimo do cantochão sempre em crescendo. Aconselhou-se com a raposa que lhe aconselhou deitar sapos na água das grandes quartas, para que todos ficassem roucos quando a bebessem com seus cocharros. Era engenhoso, mas arriscado. Além disso, sabia-se que existia um contencioso entre a raposa, sempre aproveitadora, e o rei dos sapos.
A coruja que era muito respeitada por essas nuvens afora falou a sete das suas comadres que a ajudaram numa insubordinação colectiva. Assim, todas as noites, em pontos estrategicamente distribuídos, no vão duma janela, na abertura de uma fresta, no cavo das chaminés, estridulavam gritos de arrepiar, e sopravam bafos medonhos. Ninguém dormia. Porque às investidas das corujas vinham somar-se as exclamações, os uis, os protestos e as pragas de lavradores, maiorais e demais pessoal. Uma coruja, mesmo duas, lá se admitia. Agora tantas, era maldição. A casa foi dada como assombrada. Vieram bruxas com rezas. E um padre, em último recurso foi borrifar as paredes com água benta. Sem resultado. Todas as noites as colegas faziam o seu número e já estavam a tomar-lhe o gosto, a introduzir engenhosas variantes, particularmente odiosas, a partir da moda Lá Vai Serpa, lá Vai Moura e as Pias Ficam no Meio. Os lavradores desandaram para a sua casa na vila, nunca mais tornaram a dormir no monte que ficou entregue a um rendeiro mouco. Aí está, rematou o melro, um bom exemplo para teu governo. Se te sentes agravado, age e mobiliza. Eu, por mim, posso fazer uma vozes, dar uns assobios, mas canso-me logo do peito.
O mocho não se deixou entusiasmar pelas facilidades do melro. Por um lado, porque a sua experiência de vida lhe dizia que aqueles humanos não eram do género de ir em lérias de medos e cocas; por outro lado porque sabia como a verdadeira história do Monte de Matamouros tinha acabado. Os filhos do rendeiro vieram com lanternas, caçadeiras e cães, fuzilaram as corujas uma a uma, mandaram-nas empalhar e venderam-nas clandestinamente a um advogado de Lisboa que as exibe como troféus de caça, ainda por cima ilegal, que dá mais sainete.
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páginas 190 - 192

''Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina''
Mário de Carvalho
edição Caminho

terça-feira, 12 de maio de 2020

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Casamento na aldeia


'Casamento na aldeia'
óleo sobre tela
70cm por 100cm
2020
ZMB 
a partir de Sarah Affonso


domingo, 3 de maio de 2020