quinta-feira, 29 de junho de 2023

-- Salafrário, bandido, gatuno!

Esta imagem é uma proposta para um convite que me foi endereçado.

Não tem portanto ligação a qualquer momento actual do pintor.

No entanto, toda a gente poderá fazer um exercício de recordação e verificar que eventualmente no passado já terá passado por situação semelhante, pelo menos a nível metafórico.

E olha os corninhos a dizer que é culpado eheheh


 


sábado, 24 de junho de 2023

Texto para uma revista futura

 A chave

Cinco horas da tarde. Clemente está de folga. Esteve a ouvir Repas Froid do Ghédalia Tazartès e agora decidiu ir ao café. Pega no «Este país não é para velhos» do Cormac McCarthy. Estava à venda dentro de uma cesta de livros na janela duma lojinha da zona onde uma senhora ganha a vida passando a ferro. Pega nos auriculares do telemóvel, num caderno e na caneta. Está sol. As duas mesas da esplanada tem as cadeiras levantadas. «Não está em uso», pensa Clemente, «vou lá para dentro.» Entra e olha para a sua mesa habitual. Está vaga. Olha para o balcão e pede ao patrão um café e um copo com água. Senta-se. Olha em frente e vê uma mulher de pé junto a uma mesa. Come um bolo de arroz de costas para toda a gente e virada para a janela com o estore baixado. Clemente tem a sensação de que a conhece de algum lado ou momento no passado. Mas ela não olha para ele, ou melhor, parece que o viu e se virou de costas para ele não a ver. O patrão traz o café à mesa de Clemente e recebe a moeda de pagamento. Clemente continua intrigado, quem é ela? Ela vem ao balcão, paga com o telemóvel, sai porta fora com o bolo num guardanapo, Clemente não chegou a cruzar o olhar com ela, não a reconheceu, apenas tentou ver se ela entraria nalgum carro mas ela sai pela lateral e desaparece. Clemente faz uma ideia do quem ela poderia ser mas não tem a certeza. Ela, pelo seu lado, é como se dele tivesse fugido. Clemente acaba de ver um fantasma.

Clemente chama fantasmas a estas pessoas que lhe aparecem aleatoriamente no seu quotidiano mais banal e que ele pensa que conhece mas não sabe donde, pessoas que dele parecem fugir.

«Olha, deve ser alguém a quem eu fiz mal, eu ou as minhas palavras...»

Clemente pensa nisto e decide ligar ao empresário para ele lhe vender cinco euros de «paz de espírito». Mas o empresário diz-lhe antes de desligar a chamada: «Para ti, estarei sempre longe, até sempre!»

Clemente fica fodido e fica a pensar: «olha, outro que me cancela, mas que fiz eu? Terei tocado nalguma nota que vibrou de mais e partiu algum vidro? Mas, se assim for, ninguém me responde, não tenho valor no mercado das opiniões, cancelam-me silenciosamente, fecham-me as portas, ignoram-me, condenam-me à inexistência, vou fazer um filme explicativo com pássaros bumerangue. Com banda sonora e sobreposição de imagens à Eisenstein, e comboios, avenidas de paralelo e passeios calcetados, árvores enfezadas e pássaros raquíticos, mar, traineiras rachadas a meio enferrujando desde o tempo do Cavaco, fantasmas, sereias e gaivotas. Para conseguir os direitos de uso de imagem e som de outros artistas, jogarei a cartada de mestre, eheheh: os bons valores cristãos do filho pródigo que tem de mudar de autocarro da próxima vez, é... e aplico na pós-produção o filtro Ghosting que transforma as pessoas em movimento em fantasmas em movimento eheheh».

Clemente pega no caderno e começa a escrever a voz-off de uma possível cena a filmar:

Quando desembarquei no cais da estação de comboio e comecei a descer a avenida foi como se eu fosse Moisés seguido de cinquenta e um camelos carregando os meus pertences, fugindo dos egípcios, ou seja, fugindo do mundo, foi como se atravessasse o mar Vermelho e as águas se abrissem: todas as pessoas me davam a passagem ou desviavam-se de mim. Ao fundo do passeio, antigas namoradas entravam por portas esconsas escondendo-se. Um cego, cheirando-me a cinquenta metros de distância, sentindo o cheiro da peste, atirou-se para o meio da rua e caiu dentro duma tampa de saneamento aberta. (De nada valera o presidente andar por ali, de vez em quando, a calcetar a rua. A tampa estava aberta porque os funcionários estão em greve ao bagaço e sem bagaço não há trabalho.) O imperador desfilava nu pelo passeio e, claro, nada era com ele, nada se passava, eram tudo mentiras dos jornalistas, ele vinha na minha direcção com aquele ar empinado, boca aberta a comer mosquitos em vez de santinis, com as mãos a tapar o pirilau, e pareceu mesmo ser o único que me queria dizer coisas, mas logo veio um ciclista que quase nos atropelou e fugiu agoniado quando me viu, deixou a bicicleta no passeio e disse: «Podes ficar com a bicicleta, e se não ficares contente ainda te ofereço uma trotinete!»

Clemente ri-se, pára de escrever, lê o que escreveu e pensa que a chave do texto se extraviou, «acho que mudaram a fechadura, cancelaram-me.» Clemente sente-se culpado, é culpado. Mas de quê? O imperador nu pareceu que ia opinar mas falou falou e acabou a dizer nada.

 

Claudio Mur

 

quinta-feira, 22 de junho de 2023

domingo, 18 de junho de 2023

Rir-se do pagode

A minha mãe ouve mal, quase que furou um tímpano a limpar a cera de um ouvido, tem igualmente um aparelho auditivo que apenas engana. 
Por causa disto quando almoçamos e a tv está ligada nas notícias, ela olha e pouco ouve, foca-se na linguagem facial, é um pouco como os velhinhos.
Tudo isto para dizer que quando o Montenegro fala na TV, ela que sempre votou no psd, acaba a dizer: 
-- Ele está sempre a rir-se!
-- É, mãe, está sempre a rir-se do pagode!

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Em segundo lugar, vou fazer-te assinante da Quotidienne e da colecção de obras dos santos Padres

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Féder jurou que se submeteria a todos os seus conselhos.

-- Mas aos seus olhos vou transformar-me numa maçadora pretenciosa, ter-me-á horror!

Féder fez grandes protestos de civilidade, que seria igual ao seu amor, isto é, infinita. Pensava que a penosa estrada que lhe iam desenhar era a única que pudesse conduzir a essas mulheres da alta sociedade, que a sua imaginação lhe pintava como divinamente belas e amáveis.

-- Pois bem, então, disse Rosalinde suspirando, comecemos este papel de pedante, mais perigoso para mim do que todos os que representei na minha vida; mas jura-me que me prevines quando eu te aborrecer.

Féder jurou de maneira a ser acreditado.

-- Pois bem, em primeiro lugar, continuou Rosalinde, a tua maneira de vestir é demasiado vistosa; segues muito as modas alegres; será que esqueces as tuas desgraças? Deves ser sempre o esposo inconsolável da bela Amélie, é a fim de dar o pão à imagem dela que te deixou. Arranjar-te-ei um aspecto etremamente distinto e que levará ao desespero os nossos jockeys, se algum porventura tiver a pretensão de o imitar. Toodos os dias antes de saíres, farei como um general com os seus soldados, passarei revista ao teu exterior. Em segundo lugar, vou fazer-te assinante da Quotidienne e da colecção de obras dos santos Padres. Quando o teu pai abandonou Nuremberga era nobre: o senhor von Féder. Por conseguinte és nobre: sê então crente. Vivendo embora na desordem, tens todos os sentimentos de uma piedade elevada, e é o que mais tarde causará e santificará o nosso casamento. Se quiseres que os teus quadros sejam pagos a quinhentos luíses, e nunca, seja sob que preteto for, faltar aos teus deveres de cristão, tens um futuro brilhante. Enquanto não vem o êxito seguro da conduta um pouco incómoda que me proponho fazer-te seguir, quero arranjar com as minhas próprias mãos o apartamento onde receberás as jovens senhoras que, em breve, disputarão entre si o prazer de serem pintadas por um mancebo tão belo e singular. Prepara-te para veres respirar nesse apartamento a mais austera tristeza; pois, se não queres estar triste na rua, é absolutamente necessário renunciar a tudo e condenar-te a essa desgraça de me desposares já hoje. Vou abandonar a minha casa de campo, escolhemos uma a vinte e cinco léguas de Paris, em qualquer recanto escondido. Vai custar-nos despesas de transporte, mas a tua reputação ficará salva. ali, no meio ds bons provincianos das redondezas, poderás ser tão louco como te pede a tua natureza do Sul; mas em Paris e nos seus arredores, deves ser, antes de mais nada e para sempre, o esposo inconsolável, o homem bem nascido e o cristão atento aos seus deveres; mesmo vivendo com uma bailarina. Embora eu seja muito feia e a tua Amélie fosse muito bonita, espalharás que, se eu tive encanto aos teus olhos é porque me pareço com ela, e no dia em que te sentiste mal na Ópera (Rosalinde lançou-se nos seus braços). o que aconteceu é que, no ballet em que eu entrava, acabava de fazer um gesto absolutamente semelhante a um dos que tinha Amélie no papel de pequeno marujo.

Fora justamente para chegar a uma conversa deste género que Féder se aborrecera durante uma hora no dia do desmaio nos bastidores da Ópera; mas estava longe de esperar um regime tão severo. Pois quê! ele, naturalmente tão vivo, representar o papel de melancólico!

-- Antes de te responder, ó minha adorada! disse ele a Rosalinde, permite-me que reflita durante alguns dias. Faz-me infeliz, então, dizia, se queres ver-me percorrer as avenidas com ar triste.

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páginas 15 -- 16

em «Féder ou o marido com dinheiro»

Stendhal

Editorial Inova

quinta-feira, 8 de junho de 2023

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Dois desenhos marados tamanho A4

Hey Joe!,
Where are u going with that Cerberus in your hand?

A minha vergonha precisa do meu poema (Heiner Müller através dos Mão Morta)




domingo, 4 de junho de 2023

Diálogos soltos

 




1.

-- Pai, olha a última do Marlon... na Segunda cheguei quinze minutos antes da hora, o autocarro não demorou, cheguei lá, fiz as contas e o Marlon diz-me: «venha comigo ao quarto 10, falta arranjar a sanefa, o quarto não pode esta noite ser alugado.» Eu disse: «Posso fazer alguma coisa?» Ele respondeu: «A patroa diz que não quer que o senhor suba sozinho a escada» Não disse nada, subimos ao quarto 10 e eu vi e não percebi bem o problema, ele disse: «Agora não tenho tempo.» E foi-se embora à hora certa, nem mais um minuto!

O meu pai sorri, eu continuo: -- Ele é como o nosso vizinho André, faz tudo como se fosse pelo livro oficial, não trabalha nem mais um minuto, o patrão disse: «Ele já não deve fazer mais as suas folgas, é muito extraviado.» Eu perguntei ao patrão: «E quem me vai substituir?» Não sei», disse ele. Tásaver pai, Quando eu estava a ensinar o serviço ao Marlon, ele perguntou quanto ia ganhar, eu disse que não sabia nem sabia quantas horas ele ia trabalhar, ele perguntou «mil euros?», eu sorri e disse não, que os nossos salários são baixos, «mas se trabalhares bem... tem emprego aqui para toda a vida», foi o que eu lhe disse. Ora ele não trabalha bem, pai. Na função pública eles picam o ponto, mas no privado quem é que às vezes não faz mais cinco minutos mesmo que não os receba, e o patrão disse que o problema da sanefa foi ele que o arranjou, então não ficava e com a minha ajuda resolvia o problema do quarto que ficaria pronto a ser, se fosse preciso, alugado...

-- Pois é, filho.


2.

-- Filho, agora que a tua amiga vai embora... vais ficar mais sozinho.

-- É, vou, vou sentir a sua falta, ela foi o meu ansiolítico estes anos todos.

-- Tens de arranjar outra.

-- Aqui na zona é difícil, o Porto é longe, já não tenho paciência, eu depois resolvo.


3.

-- Estou a pensar trabalhar até ao fim do ano, pai, se o fizer, bato o recorde de permanência numa empresa, na artevinis estive dois anos.

O meu pai não diz nada mas não concorda com a minha decisão.

-- Pai, eu não vou ter descendentes, o dinheiro do banco vai todo para o Estado, não quero trabalhar até morrer, quero ainda viver.

-- Podes sempre pôr alguém como segundo titular da conta.

-- É, eu vou saber o dia em que me vou e uma semana antes altero os titulares da conta, vai no batalha!

-- Mas porque queres vir-te embora?

-- Não sirvo para chefe, não gosto de mandar em ninguém, gosto de mandar em mim e em mais ninguém, não tenho de me virar para os meus colegas e mandá-los trabalhar!

-- Se o patrão te considera chefe, é sinal de que confia no teu trabalho.

-- Pai, eu não gosto de ser escravo, mas por um objectivo aceito temporariamente ser escravo, mas esse tempo está a acabar, já não tenho nem vou para o trabalho com a mesma vontade, quero fazer outras coisas.