domingo, 28 de abril de 2024

José Régio por José Régio




" Dados auto-biográficos Nasci em Vila do Conde, a 17 de Setembro de 1901, e recebi o nome de José Maria dos Reis Pereira. Posso dizer que nasci entre dois séculos, o que me parece confirmado pelas minhas coisas literárias. Meu pai -- José Maria -- era ourives, como seu pai. Minha mãe -- Maria da Conceição -- tratava dos filhos e da casa. Dantes, era trabalho mais que suficiente para encher a vida duma mulher. Os meus antepassados do lado da minha mãe eram gente do mar. Os do lado do meu pai, assim como duas ou três velhas criadas com quem me criei, gente muito religiosa. Talvez por isso, em criança, eu ora dizia que queria ser marinheiro, ora padre. Fiz os estudos liceais em Vila do Conde e no Porto. Ainda sonhei, por essa altura, matricular-me numa Escola de Belas Artes, porque tinha algum jeito para o desenho e um vivo gosto pela pintura. Desisti, por se me haver revelado mais firme a vocação literária. Meu irmão Júlio é que se desenvolveu na pintura e no desenho, além de vir, depois, a publicar livros de versos com o pseudónimo de Saul Dias. tirei em Coimbra a licenciatura em Letras e o estágio para professor efectivo. Também em Coimbra, que considero a minha segunda terra, me meti nas empresas da «presença». Lá ganhei amigos, vivi uns anos a meu gosto, e principiei a publicar livros. Depois, fui professor no Porto durante uns meses. Do Porto passei para Portalegre, onde me efectivei. Em Portalegre, que considero a minha terceira terra, vivo há uns trinta anos, entregue à minha profissão de professor, à minha produção literária e à minha mania das antiguidades. Eis porque me queixo de contínua falta de tempo. Vivo só em casa mas não me sinto desacompanhado. Tenho publicado livros de poesia, de romance, de novela, de teatro, de ensaio e de antologia. Também tenho feito um certo jornalismo, que gosto de fazer porque me põe em contacto imediato com leitores de várias classes. As minhas aventuras têm sido sobretudo interiores, -- ou são tão particulares ou banais que não podem vir a público. Não pertenço a nenhuma ortodoxia religiosa; mas creio que me seria impossível viver sem o sentimento e a ideia de Deus, que sempre me tem sustentado. Amo os espectáculos da Natureza e os da Arte. Não posso aceitar qualquer doutrina que simultaneamente não distingue a pessoa humana e não procura remediar as injustiças sociais que ainda afligem o mundo. Nunca, até hoje, falei em público, Ainda há pouco, sentia-me inibido ao tentar dizer versos meus. Agora ainda, os digo bastante mal, mas cá os vou dizendo: A proximidade da velhice faz-nos perder muitas inibições e até preconceitos. Deus continua a sustentar-me, e me deixe morrer em paz quando chegar a minha hora. A falar verdade, ainda não tenho pressa. Vila do Conde, Setembro de 58 José Régio "

quinta-feira, 25 de abril de 2024

-- Ouve lá, pá, onde é que nasceste?

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-- Mas nada que conseguiste ainda?

-- Nada, Maneco! -- Zeca esquivou contar o chicote de sô Souto, o melhor era mesmo calar essa história. -- Já mais de uma semana que estou procurar trabalho, e nada!...

Acendeu outro cigarro, cuspiu na água antes de perguntar:

-- E esse do jornal, já foste?

-- ainda.

-- O melhor é aproveitar mesmo hoje, cadavez, quem sabe?...

-- Oh! não vão me aceitar. Estou magrinho assim, eles falam aí no jornal «escritório e armazém». Você já sabe: sai serviço pesado!

Maneco abriu o recorte e leu o anúncio. em voz alta, devagar, a descobrir ainda cada letra, só segunda classe é que ele tinha, e ler depressa custava. Quando acabou, levantou de um salto parecia era gato, falou gozão pondo uma chapada nas costas de Zeca:

-- Vamos, miúdo!

Chamava-lhe sempre de miúdo quando ia-lhe ajudar nalguma coisa, Zeca já sabia, sorriu. Ao lado do amigo, sentindo a cabeça começar andar às voltas e o mar, muito brilhante, a tremer, falou:

-- Eu vou sozinho, Maneco. sim? Você falaste que ias ainda ajudar o teu amigo, fazer umas horas dele, lá na oficina...

Maneco lhe agarrou no braço só, ajudando a atravessar a estrada, e, antes de sair embora, recomendou:

-- Ouve ainda, Zeca. Se aí não consegues, passa na oficina. Então, como você mesmo quer, te levo no Sebastião para amanhã ir no cimento... Mas você é quem quer!

O tempo fugia para a noite; o sol, raivoso, queimava; tinha um céu muito azul, nem uma nuvem que se via, e na Baixa, sem árvores, os raios de sol atacavam mal. A barriga de Zeca Santos já não refilava mas o calor estava em todo o corpo, punha-lhe comichão nos pés, obrigava-lhe andar depressa no meio da gente toda, a sua camisa amarela ia rápida, esquivava os choques, avançando com coragem no anúncio de emprego, arranjando já na cabeça as palavras, as razões dele, ia falar a avó velha, qualquer serviço mesmo que quisessem lhe dar, não fazia mal, aceitava...

Mas na entrada parou e o receio antigo encheu-lhe o coração. A grande porta de vidro olhava-lhe, deixava ver tudo lá dentro a brilhar, ameaçador. Na mesa perto da porta, um rapaz, seu mais-velho talvez, farda de caqui bem engomada espiava-lhe. Num instante Zeca Santos mirou-se no vidro da porta e viu a camisa amarela florida, seu orgulho e vaidade das pequenas, amarrotada da chuva; as calças azuis, velhas, muito lavadas, todas brancas nos joelhos; e sentiu bem o frio da pedra preta da entrada nos buracos dos sapatos rotos. Toda coragem tinha fugido nessa hora, as palavras que adiantara pensar para dizer a vontade do trabalho e só o bicho na barriga começou o serviço dele outra vez, a roer, a roer. Com medo de sujar, empurrou a porta de vidro e entrou, dirigindo-se ao grande balcão. Mas não teve tempo de andar muito. U homem grande e magro estava na frente dele olhando-lhe o papel na mão. Zeca ia falar, ele só empurrou-lhe na mesa do contínuo:

-- Já sei, já sei. Não digas mais. Vens pelo anúncio, não é? anda para aqui. Xico, ó Xico!

O rapaz da farda veio nas corridas trazendo bloco de papel e lápis e parou na frente dele, à espera. O homem magro observou bem Zeca Santos nos olhos; depois, depressa, desatou a fazer perguntas, parecia queria-lhe mesmo atrapalhar: onde trabalhou; o que é que fazia; quanto ganhava; se estava casado; qual era a família; se era assimilado; se tinha carta de bom comportamento dos outros patrões; muitas coisas mais, Zeca Santos nem conseguia tempo de responder completo, nem nada. E no fim já, quando Zeca tremia de frio com aquele ar de escritório e o vazio da barriga a morder-lhe, a voz de todos a fugir, longe, cada vez mais longe, o homem parou na frente dele para perguntar, olhando a camisa, as calças estreitas, com seus olhos maus, desconfiados:

-- Ouve lá, pá, onde é que nasceste?

-- Nasceu onde? -- repetiu o contínuo.

-- Catete, patrão!

O homem então assobiou, parecia satisfeito, bateu na mesa enquanto tirava os óculos, mostrando os olhos pequenos, cansados.

-- De catete, hem?! Icolibengo?... Calcinhas e ladrões e mangonheiros!... E agora, por cima, terroristas!... Põe-te lá fora, filho dum cão! Rua, filho da mãe, não quero cá catetes!...

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página 35 - 39

de «Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos» no volume «Luuanda»

de José Luandino Vieira

edição Edições 70


quinta-feira, 18 de abril de 2024

Boicotar as multinacionais, comprar no vizinho, não dar dinheiro ao capital

Tenho a voz repleta de mortos.
Amontoam-se em mim, sou um cemitério.
Tenho a voz repleta de medo.
Entre mortos e medo nada mais resta da vida.
Os jornais fuzilam-me ao pequeno-almoço 
e o pão sabe a escárnio.
O mundo é um álbum necrófilo 
que folheio página a página.
Entre rostos de órfãos 
e fachadas de hospitais 
os dias deixam detritos como impressões digitais.

O que devo fazer?

Héctor Yánover 
em "Por alguma razão, antologia de poesia argentina", página 64

Tradução de Hugo Miguel Santos 
Edição Contracapa


quarta-feira, 17 de abril de 2024

Cegos sem alma

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A festa continuava desconjuntada. Até naquele pátio das traseiras a cair aos bocados havia zonas de gueto e zonas de Malibu e Beverly Hills. Por exemplo, os mais bem-vestidos, os que tinham roupa de marca, agrupavam-se. Cada qual reconhecia os seus congéneres, e não se mostrava minimamente inclinado a misturar-se. Admirei-me de alguns deles se terem disposto a vir a um gueto de Venice. Talvez achassem que era chique. Está claro que o que metia mais nojo era o facto de a parte correspondente aos ricos e famosos ser correspondente, por natureza, a cabras e filhos-da-mãe imbecis. Ou então enriqueciam à custa da estupidez do público em geral. Tinham simplesmente tido a sorte de lhes cair uma fortuna do céu. A maioria era completamente desprovida de talento, uns cegos sem alma, não passavam de montes de esterco ambulantes, mas, aos olhos do público, eram uns deuses, belos e venerados. O mau gosto cria muito mais milionários que o bom gosto. No final, tudo se resume a quem conquista mais votos. Em terra de toupeiras, a toupeira é rei. Então, alguém merecia alguma coisa? Ninguém merecia nada...

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Charles Bukowski em «Hollywood» página 131

edição Alfaguara

domingo, 7 de abril de 2024

A reconhecer pelos notários

 A RECONHECER PELOS NOTÁRIOS


legalizo esta ilegítima presença

assinando o perigo; enfrentando

a ilogicidade do sol. Inteiro

num vago espaço -- sem lugar.


Sou o que risco aberto no vento

a manhã, preclaro do meu sonho,

e de lua em lua, de astro em astro, tento

que a voz seja o teu corpo e a tua

face na água revérbera da luz.


Uma estampa, uma mulher vestida de toureiro,

têm seu retrato na minha locomoção anfíbia.


... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 


Manuel de Castro

em «Bonsoir, Madame», página 159

edição Alexandria / Língua Morta





quinta-feira, 4 de abril de 2024

O jogo do desconfinamento

 O JOGO DO DESCONFINAMENTO

 um jogo de escolhas a jogar a solo e à suivre

em que o jogador joga com e contra si mesmo

Precisas mais duma carta de amor

ou dum extracto mensal de conta?

Precisas de mais um noite de verão

ou de mais um candeeiro design?

Precisas mais de sopa de legumes

ou de suplementos alimentares?

Precisas de mais um parque arborizado

ou de mais um parque de estacionamento?

Precisas mais da conversa no café

ou dos tweets dos poderosos analfabetos?

Precisas de mais uma mercearia gourmet

ou de mais um mercado de frescos?

Precisas mais de um consultor de imagem

ou duma consulta no médico de família?

Precisas de mais escolas livres e gratuitas

ou de mais coaching e de gestores de talentos?

Precisas mais de hospitais públicos

ou de bancos de investimento?

Precisas de mais dramaturgos sem travão

ou de mais opinion makers?

Precisas mais de prados e florestas

ou de cenários virtuais sofisticados?

Precisas de mais filósofos na rua

ou de mais influencers na net?

Precisas mais de serras e oceanos

ou de paisagismo planificado?

Precisas de mais companheiros

ou da companhia de mais hipsters?

Precisas mais de diversidade biológica

ou de transumanismo galopante?

Precisas de mais geografias rebeldes

ou de mais geolocalização dos párias?

Precisas mais do conto a cada encontro

ou do storytelling da netflix?

Precisas de mais do teu precioso tempo

ou de mais tempo para money-making?

Precisas mais de ler e andar nas nuvens

ou de alimentar o éter da tua cloud?

Precisas de mais companheiros de estrada

ou de mais likes no facebook?

Precisas mais do saber-fazer do lavrador

ou das performances do analista de big data?

Precisas de mais instantes inimagináveis

ou de mais fotografias no instagram?

Precisas mais de ideias para mudar mundo

ou dos softskills dum Scrum master?

Precisas de mais professores talentosos

ou de mais horas de e-learning?

Precisas mais da fantasia duma horta louca

ou de roupa trendy e acessórios tendance?

Precisas mais de ver melhor o que te olha

ou de mais selfies em toda a parte e hora?

Precisas mais do café do teu bairro

ou duma casa de chá rétro na baixa?

Precisas de mais gente a bater à tua porta

ou de mais aplicações no teu smartphone?

Precisas mais da sombra das árvores

ou dum bunker com todas as comodidades?

Precisas de mais bancos de jardim

ou de mais garantias de sigilo bancário?

Precisas mais de paraísos fiscais

ou de mais paraísos artificiais?

Precisas de mais saltimbancos

ou de câmaras de vigilância?

Precisas mais de cantinas comunitárias

ou de templos da nouvelle cuisine?

Precisas de mais contraditores ferozes

ou de mais animais de estimação?

Precisas de mais funambulismo na mioleira

ou de mais arame farpado na fronteira?

Precisas mais de ver crianças a brincar na rua

ou de visitar dreamlands e parques temáticos?

Precisas de mais razões para uma longa vida

ou de mais lazer e escapismo organizado?

Precisas mais de quem te ouça e console

ou dos videojogos da consola?

Precisas mais de brincar aos cozinhados

ou de oscilar entre low-food e fast-food?

Precisas de mais memória para pensar

ou mais ram para te esqueceres disso?



Regina Guimarães

em «caderno das duas irmãs e do que elas sabiam», página 64

editora Exclamação


quarta-feira, 3 de abril de 2024

Lay off

 

LAY OFF


depois da primeira aula de jaula

pousei a cábula do meu corpo

no cimo morno dum muro

e

de livro aberto no colo

passei a fazer gazeta



já reparaste, camarada,

na vida prolífera dos muros

os muros moldura e os muros ninho

os muros de saltar e os de ruir

os muros lavrados de musgos e líquenes

os muros peçonhentos reptilíneos

e os muros abraçados por espinhos



depois da primeira cantiga

gritada debaixo do chuveiro

marquei com os pés ainda molhados

as voltas que o pensamento pode dar

quando está preso a si mesmo

e nem a quem pode libertá-lo se confia



já reparaste, camarada

nos pequenos dilúvios de que sou capaz

para diluir num só bloco

o pico da montanha e o fundo do vale

com aguarela de limar escarpas

e vassouradas de verde bandeira

até eu mesma ser sem cume e sem sopé



Regina Guimarães

em «caderno das duas irmãs e do que elas sabiam»

página 77

edição Exclamação

terça-feira, 2 de abril de 2024

Tuíte Convite na mesma

Como sabem ontem foi dia das mentiras e portanto voltei a ser apenas um remediado que não ganhou o Euromilhões porque não joga nele. Assim, já não poderei aceitar pedidos de namoro a troco de noções religiosas e culinárias de senhoras da federação russa, nem poderei aceitar pedidos de resgate de donzelas da Nigéria.
Mas o convite para aparecerem por aqui mantém-se: tragam os fígados porque terei para os mais eloquentes desafiadores uma oficina de corticoze e para os artistas e demais criançada um concurso de pintura de carapaça de caracóis, sejam bem-vindos!

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Tuíte Convite

Vocês não vão acreditar mas a notícia tem já vários dias: ganhei o Euromilhões e estou a convidar todo o mundo para vir beber um copo à Rua Paga o Que Deves em Conho City, apareçam!