terça-feira, 25 de abril de 2023

Pensamentos de Ru em dia de 25 de Abril

Hoje estou de folga, hoje a dona A dá entrada no hospital para mais uma operação oftalmológica, a dona A é uma pobre diaba, além disso é cega, já se tornou uma lenda dizer que cegou por incúria médica, anda em tribunal, às vezes pede-me para eu a ajudar a identificar o envelope de uma carta do tribunal, ou do advogado, ou da segurança social ou do hospital privado. Por ter cegado por erro e por ser do campo, é uma pessoa desconfiada e desbocada, insulta, já não a mim porque consegui dar-lhe a volta embora nunca fiando o futuro porque já sei qual é a dose, mas insultando a minha colega do turno da manhã a quem no passado também já chamou de santa e agora manda-a para a terra dela, chama bruxo ao patrão e roga pragas até aos descendentes que ainda não nasceram, pragas que fariam qualquer cristão se benzer de medo e ficar refém do «e se o que ela diz acontece?», pergunta-me sempre se eu a deixo lavar-se com sal para expulsar os bruxedos e quando eu lhe pergunto porque pede ela a minha autorização, ela diz que é para eu lhe dar toalhas lavadas, se põe as cuecas aqui e depois as procura ali e não as encontra acolá diz que lhas roubaram e logo explode com dizeres insultuosos: «aquela puta roubou-me, e eu dei-lhe uma camisola, a puta que vá para a terra dela!», explode ela e como não vê porque é cega, não vê a figura que faz, não vê quem nela repara, os outros hóspedes reparam e só algum sentido de caridade do gênero <coitada da ceguinha> os faz tolerá-la, perdemos hóspedes por causa dela, ela pensa que está num lar e que é rainha mas sempre a queixar-se mas se ela estivesse mesmo num lar bastar-lhe-ia espingardar uma unha do que ela nos faz e a cuidadora dava-lhe uma injecção e punha-a a dormir todo o dia e noite para ela não causar problemas, é isso que ela não quer ver, lol ou melhor: é isso que ela não quer perceber, ela é uma fonte de problemas mas enfim, é cega e embora seja impossível de aturar merece cuidado, ninguém quererá estar na pele dela e ser totalmente dependente, o patrão faz-lhe uma caridade em lhe cobrar tão pouco mas esse valor está a terminar, ela tem de ir embora, disse no início do mês que o médico lhe arranjara um quarto para Maio mas como já andou a fazer queixa de nós e a ameaçar-nos, quem a ouviu poderá ter pensado: e se acontece comigo e ela entra-me em casa e depois para a pôr fora como faço?, vamos a ver, o certo é que ela tem algumas ajudas do mundo civil, é na medicina privada que está a ser operada, já entrou desde há cinco meses em quatro operações, os amigos ou têm pago a despesa ou o médico tem trabalhado de graça, hoje dia 25 está a operá-la, mas é tudo pelo mínimo, as despesas são pagas pelo mínimo, o pós operatório é já no hotel, na última vez veio ainda com o cateter no braço tendo o hospital dito para ela ir no dia seguinte á farmácia porque lá tirar-lo-iam, enfim, eu quando lhe vi o cateter no braço e no dia seguinte quando às seis da manhã lhe fui levar o leite aquecido do pequeno-almoço vi sangue espalhado por todo o lado, é assim natural que as suas operações não estejam a correr bem, o organismo está a rejeitar os transplantes da córnea, ela deveria ficar internada após as operações, mas no privado paga-se tudo, mandam-na por isso para casa pôr ela própria pomada e gotas nos olhos, ela anda sempre a perguntar-me: sr Ru, esta caixa é o terricil? E esta o que é?, ao que eu respondo: ah dona A, deixe-me pôr os óculos, olhe, esta é fluoxedol.
A medicina está avançada mas pôr um cego a ver exige cuidados a que um pobre dificilmente tem acesso, tem de chorar muito ou tem de ser um filho de uma puta com quem a única maneira de lidar, de o aturar é fazer-lhe a vontade se não se puder mandá-lo morrer longe.

quinta-feira, 20 de abril de 2023

Bandas Insanas


 Bandas insanas», óleo sobre papel A2, ZMB 2023

Este trabalho foi feito 

a partir da composição gráfica das capas de 3 singles 7" de bandas 

da editora belga que começou em k7 nos anos 80: a Insane Music:




Refractários ao trabalho, uni-vos!

 Diz o povo com virtude:

-- Se trabalhar dá saúde

que trabalhem os camelos

e os ursos

e aqueles que não sabem fazer mais nada.


quarta-feira, 19 de abril de 2023

Swans - She Lives



She Lives Lyrics: [Verse 1] Now I just want to thank you For going insane Every second that you suffer Is a loss that I gain Every breath is a drain down Down into a hole And your mind is a shrinking thing: It was crushed by your skull Now you feel time unfolding Deep in your chest And your body's expanding Now there's none of you left So I just want to thank you For losing your mind Yeah you burned just like Joan of Arc Purified by the flames [Refrain] You're alive! You're alive! You're alive! You're alive! You're alive! You're alive! You're alive! [Verse 2] Now I just want to thank you For the light that you spread And magnesium and sulphur And the fear in your head And I just want to tell you You're nothing so new Every time that you touch it It'll turn against you Now your future's a cold thing Down in the damp ground And your memory's a lead room Containing this sound So I just want to thank you For killing your mind All the life that you bleed out Well I steal it for mine [Refrain] You're alive! You're alive! You're alive! You're alive! You're alive! You're alive! You're alive! [Instrumental]

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Metáfora sobre o chatGpt

No livro O Suave Milagre e outras páginas de Eça de Queiroz há um conto acerca da interacção da tecnologia com o ser humano. O narrador descreve um amigo citadino e da classe superior, ou seja, educada, instruída, a par das novidades da tecnologia e acima de tudo, um amigo com dinheiro, moderno, um liberal do século XIX.
Ora, este liberal tem a sua casa cheia dos últimos inventos e o amigo narrador descreve quase com humor zen o modo como a tecnologia malfunciona, ou empena e deixa de funcionar, mas o liberal não desiste, e o narrador também não, vai descrevendo como o amigo vai ficando doente e solitário e sem vontade de ler qualquer coisa da sua formidável e actual e moderna biblioteca, dir-se-ia que a tecnologia e a vida moderna faz mal á saúde.
Até que planeiam uma temporada no campo para mudar de ares, as malas perdem-se no caminho, os caseiros não estavam á espera do senhor, o senhor acaba a dormir na palha varrida á pressa de um quarto.
O conto termina com o liberal a ganhar cor nas faces e até a casar. A mudança de vida fez-lhe bem, a tecnologia ficou na capital.

domingo, 9 de abril de 2023

A única fuga que resulta é viver sendo invisível

 '

Um poeta inclina-se sobre os seus poemas: vinte foi quantos escreveu. Vira as páginas, uma após outra, e dá-se conta de que cada poema lhe desperta um sentimento muito particular. Debate-se com grande dificuldade, procurando descobrir que coisa é essa que paira sobre ou à volta dos seus poemas. Pressiona, mas não surge nada; empurra, mas não sai nada; puxa, mas tudo fica igual, ou seja, obscuro. Afunda-se no livro aberto com os braços cruzados e começa a chorar. Já eu, em contrapartida, o malandro do autor, debruço-me sobre a sua obra e reconheço com incomensurável facilidade o enigma da sua tarefa. São simplesmente vinte poemas, um dos quais é simples, outro é pomposo, outro mágico, outro entediante, outro comovente, outro piedoso, outro pueril, um bastante mau, outro animalesco, outro tímido, outro ilícito, outro incompreensível, outro repugnante, outro encantador, outro comedido, outro fabuloso, outro genuíno, outro inútil, outro pobre, outro inexprimível e um outro que já não pode ser mais nada, pois só há vinte poemas distintos que, através dos meus lábios, encontraram, se não um juízo justo, pelo menos célere, o que, pelo menos para mim, supõe sempre algum tipo de esforço. Uma coisa é certa: o poeta que os escreveu continua a chorar, inclinado sobre o livro; o sol brilha sobre ele e a minha gargalhada é o vento que sopra tempestuosa e friamente sobre os seus cabelos.

'

Robert Walser, página 51 - 52 em

«Cinza, Agulha, Lápis e Fosforozitos»

selecção, tradução e prefácio de Ricardo Gil Soeiro

edição Assírio & Alvim, colecção Gato Maltês


sexta-feira, 7 de abril de 2023

quarta-feira, 5 de abril de 2023

«Decisões» de Claudio Mur, escrito em 93 ou 94 quando começou a minha resistência às aulas de engenharia e ao futuro que elas me poderiam dar

 

Decisões

 

I. Oesmuccmia

 

O que me pedem

que me denuncie

que renuncie à minha liberdade

que renuncie à minha vontade

Formas, autómatos, máquinas

Máquinas controladas por máquinas, autómatos que

Um dia virão a ser controladores de homens

Um dia virá que serão implantadas máquinas no

Cérebro — a unidade central de processamento —

Será uma raça sem filosofia nem alegria

Univocamente direccionada para…

Interactividade para quê? Segas para quê?

Ah! A laranja mecânica volta a atacar.

 

II. 543

 

Mas para que serve isto?

isto é uma merda

não percebo nada disto

Não vou, não quero

Não estou a entrar no jogo deles

Tudo nasce no líder…

… da empresa…

Estou farto

fora

sem interesse destruído extenuado ludibriado

Estou farto

Nada se aprende

A competição aperta a qualidade faz a diferença

é a selva da sobre vivência

A formação é indispensável

Convoluções transformadas em série em séries

oh mas que raio

Já não sei o que hei-de escolher

Talvez

ponha uma pedra definitivamente

digite aquela sequência

… concordas?

Vou pôr qualquer coisa… mudar o estilo

haverá melhor incentivo?

Calibra-te certifica-te obtém marcas

Navega num crescendo de emoção

o futuro

energia talvez maquiavelicamente perigosa

A rondar o abismo o limite

O fim como meio os fins justificam os meios

ou escolha!

O meio para o fim os meios justificam os fins

Visionarismo voyeurismo ou talvez não

Violinos alegria kaô ou máquinas de calcular tristeza

Qual a escolha?

Quem sairá prejudicado?

 

III. Aquaismja

 

Anseio por te ver

tenho saudades quero tocar-te

Quero sentir o teu prazer

As responsabilidades os compromissos os afazeres

não o permitem

Aspirar o perfume com que me inebrias o cérebro e inflamas o coração

Isso é melhor que...

Sinto-me totalmente absorto em ti e já nada faz sentido

Minimalmente minimal

já não digo coisa com coisa

aliás se calhar nunca disse

porque

tudo o que parece deixou de o ser.

 

 Claudio Mur