quarta-feira, 31 de dezembro de 2014




Bem mulher,
you call
e enquanto eu digo que vou
e tu ouves o meu comboio a chegar
eu volto depois de me ter ido embora
de ter sido um rapaz mágico
e de ter comprado a cidade
só para lhe dar um pontapé
enquanto isso tu esperas bebendo o teu copo
e talvez me queiras dizer
que sou o único que te faz gozar
o único por quem esperas.
Ouve o comboio a chegar à tua porta.
Eu vou.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014



Yaël Naim, Bonnie Prince Billy, Yann Tiersen, Matt Elliott, DAAU, Chapelier Fou, Sylvain Chauveau, Christine Ott, Oktopus, Nightwood, David Donatien, Nicolas Jorio

a cover from a Coil song

Now you see why I'm not scared to die
I saw a vision of an angel of the
world lay down and die
The earth is full of ghosts now
Ghosts that sweat and ghosts that cry
Instead of peace just stop and cease
A final end, a sweet release

Language of love is language of liars
The flames of all love become funeral pyres
Smoke gets in your eyes and grown men cry
I see young men led to an early
grave and old men pray to die
The earth is full of ghosts now

Ghosts that sweat and ghosts that cry
Instead of peace just stop and cease
A final end, a sweet release

The shipwreck to the shore
From the client to the whore
From the shadow
to the sun
From the bullet to the gun
The earth is full of ghosts now
Ghosts that sweat and ghosts that cry
Instead of peace just stop and cease
A final end, a sweet release

The moment you discover that your killer is your lover
I kill all that I love, I just destroy what I become
The earth is full of ghosts now
Ghosts that sweat and ghosts that cry
Instead of peace just stop and cease
A final end, a sweet release

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014



Como amar uma mulher
que não deseja ser amada por um homem?
(Uma mulher que se cansou dos homens.)
Já sei, quando ela ligar
com vontade de me usar
vou-lhe dizer que já fiz a encomenda do cão
e vou omitir que a cama não mente.
(Mas isto sou eu a falar porque sou um bruto
e estou mal disposto.)

domingo, 28 de dezembro de 2014




I wanted to get you roses but there were all out
so i got you daisies instead 
and dyed them with my blood so that they would be red 

A black pearl for the stoner rave shit xperience
enjoy and crave

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014



Frankie teardrop
Twenty year old Frankie
He's married he's got a kid
And he's working in a factory

He's working from seven to five
He's just trying to survive
Well lets hear it for Frankie
Frankie Frankie

Well Frankie can't make it
'Cause things are just too hard
Frankie can't make enough money
Frankie can't buy enough food

And Frankie's getting evicted
Oh let's hear it for Frankie
Oh Frankie Frankie
Oh Frankie Frankie

Frankie is so desperate
He's gonna kill his wife and kids
Frankie's gonna kill his kid
Frankie picked up a gun

Pointed at the six month old in the crib
Oh Frankie
Frankie looked at his wife

Shot her
"Oh what have I done?"
Let's hear it for Frankie

Frankie teardrop
Frankie put the gun to his head
Frankie's dead

Frankie's lying in hell

We're all Frankies
We're all lying in hell

http://www.discogs.com/Suicide-Suicide/master/22168

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Maldita Literatura

Sentado estava num café esperando que as horas passassem rapidamente, objectivo que quanto mais nele pensava mais frustrantemente verificava ser impossível alcançar; conversava com alguns conhecidos acerca da meteorologia de hoje e de quais seriam as previsões para os próximos dias... enfim, banalidades!

De repente algo se alterou, uma luz no meu cérebro aportou, alguém no café entrou, trajando um simples cartaz onde se anunciava a evocação da vida e obra de um escritor-poeta já desaparecido. "E porque não?" Pensei. Era tão grande a melancolia da indiferença para com os que me rodeavam que quase personifiquei as folhas secas da dormideira vermelha. "É isso, vou conhecer algo desse artista."

A sua vida foi exposta, lidos foram alguns excertos da sua obra.

Como pessoa tinha dentro de si dois egos. Um, real que o levava a pensamentos melancólicos e destrutivos, vivendo sempre torturado pela alma, mendigando pelas ruas da amargura, pensando e lendo muito, procurando algo de supremo (a Beleza, a Perfeição, a Contemplação), algo que o fizesse alcançar o seu ego ideal. Mas... era incoerente e a todo o momento se contradizia (talvez?). Andava da ré para a proa como um marinheiro perdido numa noite de temporal. Às vezes, possuindo o Absoluto sentia não ser aquele o seu lugar. Então, voltava a cair na desgraça, na sucessão de sentimentos e sensações confusas, de onde só retirava algum prazer se entretido a passá-los ao papel.
Encerrada a cerimónia, saí e vagueei. Escusado será dizer, todas estas revelações me impressionaram (sim, é verdade), marcaram-me muito. O que mais me espantou foi a semelhança, ainda que ligeira, entre aquela vida e a minha.

Deixei-me então cair numa intensa modorra. Sem dar por ela, tinha-me instalado na tasca mais reles que por aqueles sítios havia. Instintivamente, puxei de um cigarro e um bagaço ia já a caminho do meu fígado. O quanto bebi não sei, apenas recordo a imensidão de copos dispersos sobre o balcão, o empregado implorando: "Ó chefe!! Não beba mais! Por favor! Era suposto eu estar de folga! Ande lá, ande lá! Quanto mais entorna, mais eu trabalho!!" Obviamente, um empregado sem espírito comercial.

Se bebi para esquecer tudo, todas aquelas similaridades, não o posso afirmar. Na realidade, comecei a imaginar ser o hospedeiro de duas personalidades - eu... e o tal poeta.

Com o passar dos tempos a sua forma tornou-se mais nítida, assumiu-se como sendo meu opositor psíquico. Devido à embriaguez descuidou-se, abriu-se uma janela no meu cérebro, permitindo-me imiscuir nos seus pensamentos, no seu modo de estar e de sentir. Verifiquei abstracção, mesmo introspecção. Reparei na abundância de olhares virtuais quantificando o espaço em multivariadas formas ou símbolos - creio ser possível exprimir o seu pensamento em pauta. Ouvi pressentimentos indefinidos, meditava: "As pessoas mudam mas o contexto onde estão inseridas é imutável." Sentia-se farto, inadaptado e desinteressado, bem como desintegrado. Criara-se uma sensaboria que urgia combater não sabendo como, não conhecia a mais correcta opção. Pensava eu: "Sendo ele um egocentrista haverá apenas duas soluções, ou continuar fiel a si próprio desligando-se do mundo em redor e viveria sem competição procurando o gozo pessoal absoluto, ou então desapareceria simplesmente desta encarnação." No fundo creio ser ele um sórdido romântico, um idealista aspirando a algo e desejando por isso não se concretizar.

Sentia-me exausto, os olhos ardiam-me. Adorava esta sensação. Fazia-me sentir abandonado a um local de onde não conseguiria sair, não por impedimento mental mas sim por uma espécie de mazela física. No entanto estava a gostar de ali estar.

À minha volta vegetavam bêbados como eu. Comunicava com eles de um modo muito pessoal aveludando invariavelmente processos, encobria a voz. (Seria medo? Talvez.) Alguém se tinha incomodado, porquê não sei, sentia-me impelido a pedir desculpas..., mas eis que o escritor se impões: "Não!! Tu tens razão, que não te fiquem remorsos! Vamos, vamos embora deste antro!!"

Espantado assim fui, cambaleando e adormecendo mal chegado a casa.

Na ressaca do dia seguinte acordei recordando tudo isto. Talvez tivesse sido um sonho. Lembrei-me dos versos do poeta: "Eu não sou eu nem sou o outro,/sou qualquer coisa de intermédio:/pilar da ponte de tédio/ que vai de mim para o outro.*" Lembrei-me das podres mentes abjectas que me rodeavam e furioso exclamei: "Maldita literatura!"



*, versos do poeta Mário de Sá-Carneiro


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"Maldita Literatura"
escrito por Zombie

a este texto foi recusada a publicação no suplemento literário DNJovem do Diário de Notícias
viria a ser publicado no folhetim em papel "Airf Auga",
editado pelas Produções Ganza, Aveiro em 1994/1995

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Madonna and child 2


'Madonna and child 2'
óleo sobre tela
50cm por 60cm
2007-2014
ZMB

Uma revisitação deste trabalho de 2002


Eu também tenho umas linhas sobre a observação do fogo numa lareira
mas prefiro transcrever palavras de um prémio Nobel da literatura:

'
Ao pequeno número de experiências que fizera até então, no caminho para encontrar o meu próprio desígnio, veio juntar-se mais esta: a contemplação de tais formações, a entrega a tais configurações da natureza, irracionais, contorcidas e estranhas, liberta um sentimento de consonância do nosso íntimo com a vontade cujo poder deu origem àqueles efeitos. Sentimos, em breve, tendência para considerá-los disposições do nosso humor e supô-los criações nossas. Vemos abalar-se e desvanecer-se a demarcação existente entre nós e a natureza, e aprendemos a conhecer o estado de espírito pelo qual não sabemos já se as imagens, na nossa retina, são originadas por impressões oriundas do exterior, se do interior. Não há lugar algum onde, tão fácil e simplesmente, possamos fazer a descoberta do quão somos criadores, de quanto a nossa alma toma parte na perene criação do mundo, como através deste exercício. Mais ainda, em nós e na natureza, está operante uma e a mesma indivisível divindade e, se o mundo visível desaparecesse, qualquer pessoa teria aptidão para tornar a edificá-lo; porque, quer a montanha quer a torrente, a árvore e a folha, raíz ou flor, tudo o que na natureza foi moldado, está pré-formado dentro de nós e provém da alma, cuja essência é eternidade, cuja natureza não apreendemos, mas que se manifesta, principalmente, por impulsos amorosos e criadores.
Só anos mais tarde encontrei a confirmação destas reflexões, precisamente num livro de Leonardo da Vinci que refere quão agradável e profundamente estimulante se torna observar uma parede sobre a qual diversíssimas pessoas tenham escarrado. Perante aquelas manchas, sobre a superfície húmida, ele sentia o mesmo que o Pistorius e eu perante o fogo.
'

, página 97
"Demian"
Hermann Hesse
Edição Dom Quixote



(foto de época)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

... e a tua vontade poderá ser tão bem domada como um bom cavalo.

'
- És capaz de levar alguém a pensar isto ou aquilo, conforme quiseres?
Imediatamente me respondeu, no seu modo adulto, pausado e firme.
- Não - respondeu -, isso não se pode fazer. A nossa vontade não é livre, apesar de o pároco o afirmar. Nem o outro pode pensar o que quiser, nem eu posso conduzir o seu espírito segundo a minha vontade. O que nos é possível é observar bem uma pessoa e dizer então, com precisão, o que ela pensa ou sente e prever o que fará de seguida. É muito simples, mas as pessoas não o sabem e exige muita prática, naturalmente. Por exemplo, entre as borboletas nocturnas, existe uma certa qualidade de Falera, da qual as fêmeas são muito mais raras que os machos. Reproduzem-se do mesmo modo que as outras: o macho fecunda a fêmea e esta põe os ovos. Se alguém tiver uma fêmea destas (coisa que já foi experimentada, com frequência, por cientistas) os machos Falera chegam a fazer voos de horas para se juntarem a ela! De horas, repara bem! Num raio de vários quilómetros, todos estes machos sentem a única fêmea que há na zona! Tem-se procurado dar uma explicação para este fenómeno, mas é dificil consegui-lo. Deve haver uma espécie de sentido do olfacto ou qualquer outra coisa, à semelhança dos bons cães de caça que são capazes de distinguir e seguir um pista imperceptível. Estás a compreender? A natureza está repleta de coisas deste género, que ninguém sabe explicar. Agora, pela minha parte, acho que, se estas fêmeas fossem tão comuns como os machos, eles não teriam um olfacto de tal modo apurado. Só o possuem porque estão adestrados para isso. Se um animal ou uma pessoa dirigirem toda a sua atenção e força de vontade para determinado objectivo, acabarão por alcançá-lo. E nada há para além disto. É deste modo, também que se passam as coisas a que te referias. Observa bem uma pessoa e passarás a conhecer a sua personalidade melhor do que ela própria.
(...)
- Mas, afinal, como deveremos nós compreender essa questão da vontade? - perguntei, - Dizes que não temos uma vontade livre e, depois, que somente é necessário concentrar decididamente a vontade sobre alguma coisa para podermos alcançá-la. Isso, assim não faz sentido! Se não for senhor da minha própria vontade, não poderei dirigi-la neste ou naquele sentido.
- (...) A questão explica-se simplesmente. Se uma destas Faleras pretendesse dirigir a vontade para uma estrela ou qualquer outra coisa, não o conseguiria. Porém, ela nem sequer o tenta fazer. Procura exclusivamente o que, para ela, tem sentido e valor, aquilo de que necessita e lhe é indispensável. E, efectivamente, consegue o inacreditável: desenvolve um sexto sentido fabuloso, que nenhum animal possui além dela! Nós temos, certamente maior espaço de manobra e mais vastos interesses que um animal, mas também estamos confinados a uma esfera relativamente limitada, que não podemos transpor. Posso, com efeito, criar a ilusão de que desejo, impreterivelmente, ir ao Polo Norte, ou qualquer coisa do género, mas realizar algo com suficiente intensidade, só me é possível se a força que me impele radicar em mim e o meu ser estiver totalmente imbuído dela. Nesse caso, pretendendo alguma coisa que te seja exigido pelo teu íntimo, conseguirás fazê-la, e a tua vontade poderá ser tão bem domada como um bom cavalo.
'

, página 53

"Demian"
Hermann Hesse
Edição Dom Quixote

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Incorporação canibalista


'Incorporação canibalista'
óleo sobre tela
60cm por 50cm
2007-2014
ZMB

Quando saí do meu terceiro reality show demorei quase quatro anos
a arranjar motivação para novamente fazer um esforço para voltar à superfície
como ser humano e não bicho.
Na altura o meu psiquiatra deu-me uma prenda
e deu-ma porque eu sabendo que ele se ia reformar lhe abri o jogo:


A prenda que ele me deu foi dizer que eu talvez não fosse um doente crónico
e portanto não fosse talvez um maluco
mas apenas um desadaptado.

Assim, investi dinheiro a comprar livros relacionados com psicologia e afins.
Para me cultivar, 
para saber até que ponto os sintomas que eu reconhecia em mim próprio
eram descritos na literatura e para saber como outros como eu
(ah como foi libertador saber que há outros como eu),
para saber como outros como eu se integram no mundo.
Penso que comecei a ter um pouco de respeito por mim próprio 
ao fazer uma tentativa para compreender que 
os médicos são mais que aquela imagem do livro 
'arranca-corações' do Boris Vian,
tão vazios no seu interior que arrastam ainda hoje a asa 
para cima do maluco do bairro
com o intuito de o comer, 
com o intuito de incorporar em si uma vida alheia
e tornarem-se eles próprios essa outra pessoa, esse maluco que admiram.
No livro, o psicanalista torna-se o executante da profissão do seu único cliente: remador.
Os livros são isso mesmo, são portas que se abrem 
e algumas dessas portas são ilusões, absurdos formalmente belos 
que a realidade um dia reconfigura e lhe dá a forma definitiva
a que se chama destino.
O tempo não volta para trás.

--


(uma foto de época)

domingo, 14 de dezembro de 2014

Subindo para a Vitória

Numa madrugada desta semana,
quase que acordei quando descobri que um cão dormia a meu lado.
Bem, talvez não fosse um cão,
no sonho tinha a aparência de um cão.
Quase que acordei mas resolvi o problema virando-me para o outro lado da cama.
Quando de manhã acordei só consegui pensar: acordei com um cão a meu lado.
Na madrugada seguinte,
o sonho dir-se-ia que continuava
e fixou-se numa imagem imprecisa:
ou a mulher que me disse para comprar um cão ou a imagem da minha primeira namorada.
Foi a pensar nisso que, ao subir para a Vitória hoje,
vi o Bertaço a descer pelo passeio contrário passeando um pitbull branco...
e cumprimentando uma jovem gostosa e lábios grossos que, dir-se-ia, o esperava na esquina...
dei por mim com vontade de brincar com ele:
- Ferra?
- Não, é mansinho.
E eu já a rir-me: - E o cão?
O Bertaço percebendo a brincadeira: - Também não, eu só de cinto!
Eheheh...
- Vais logo ao bar do F. ver o jogo?
- Devo ir.
- Há dois anos tivemos o Liedsão e o kelbim crista alta... logo vamos ganhar!
- Até logo!
Ah ganda bertaço,
quando punhas o novo marante, o jota, ou o paulinho dos bailes a tocar a meio da noite no quarto ao lado...
e acordavas o prédio todo rai'stepartam!
safámo-nos bem na vida, deixámos a droga,
hoje só fumamos coisas que fazem rir.
A vida é a melhor arte.


quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Africa/Brass | The John Coltrane Quartet | 1961



Africa/Brass | The John Coltrane Quartet | 1961 

1. Africa 0:00
2. Greensleves 16:28
3. Blues Minor 26:28

John Coltrane — soprano and tenor saxophone
Pat Patrick — baritone saxophone
Freddie Hubbard (#2 only), Booker Little — trumpet
Britt Woodman — trombone (#1, 3)
Julian Priester (#2), Charles Greenlee (#2), Carl Bowman (#1, 3) — euphonium
Bill Barber — tuba
Garvin Bushell — piccolo, woodwinds (#2)
Julius Watkins, Jim Buffington (#2), Bob Northern, Donald Corrado, Robert Swisshelm — French horn
Eric Dolphy — alto saxophone, bass clarinet, flute
McCoy Tyner — piano
Reggie Workman (#2, 3), Art Davis (#1, 3) — bass
Elvin Jones — drums

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

'Se eu perder a cabeça põe-me no escuro outra vez.'

'
«Não posso acreditar!» As palavras saltaram-lhe espontaneamente. Ele não fazia a menor ideia de como foi assustador ouvi-las. Tive uma sensação esquisita de tontura, e tapei os olhos com a mão. Aquilo tudo invadiu-me, o medo da loucura, de não me acreditarem. Não sabia o que dizer, como lho dizer. Mas ele com certeza adivinhou, pois acrescentou, passado um instante: «É claro que eu acredito em si, Menina Spencer, se mo está a dizer.»
Mas os seus olhos estavam perturbados quando os encarei.
«Ninguém acredita na maldade até a encontrar cara a cara. Eu nunca tinha acreditado.» Tremia e mal pude acender o meu cigarro. Ele tirou-mo o isqueiro da mão e acendeu-o por mim.
«Por favor, Menina Spencer, não fique aborrecida. Eu não fazia ideia, é claro, de que o meu esforço para ajudar resultasse mal.»
«Não resultou... só que... é que levaram o Standish e ele teve uma morte tão solitária na ambulância. Senti-me responsável. Os inspectores já não permitem que pessoas tão doentes fiquem aqui. E está certo. Só que elas agora odeiam-me.»
Foi um momento terrível. Eu senti que lhe arruinava a visita, a ele e a mim também. As lágrimas caíam-me pelo rosto como chuva. Não pude evitá-las. «Nada pode mudar aqui,» consegui dizer quando me controlei. «É um mundo trancado.»
«Não tem de ser,» disse ele com firmeza. «Da próxima vez que a Lisa cá vier, há-de entrar nem que seja à força. Isso posso garantir.»
Para mim tinha sido uma recaída violenta na dor que eu tinha mantido afastada desde a morte do Standish. Mas com ela veio um rasgo de visão. Era que aqui as coisas podem mudar, mas só através de um acto violento. Se eu perder a cabeça põem-me no escuro outra vez. Mas se eu um dia deitar fogo a isto, posso abrir este mundo trancado - ao menos a morte pelo fogo, que é melhor do que a morte por maus cheiros e bacias de cama e mentes perdidas em corpos que definham sordidamente. Tive vertigem por causa deste rasgo. As lágrimas estancaram de súbito e endoideci de alegria, falei que me fartei, contei-lhe do John, fiz-lhe uma crítica bem humorada ao enorme romance que me tinha trazido, como uma caricatura forte mas aberrante da vida - aquilo em que as pessoas querem acreditar, não o que é verdade.
E isto levou-nos de volta à velhice e à morte. E por fim ao meu cavalo de batalha, a maldade, e o que fazer quando estamos perante ela, como lidar com ela.
'

, página 83

'Prepara-te para a morte e segue-me'
May Sarton

Edição Livros Cotovia

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Carl Orff - Carmina Burana

A primeira vez que ouvi 'O Fortuna' seria uma criança,
talvez ainda nem andasse na escola.
Foi a televisão, um anúncio de aftershave.
Via-se um surfista prateado cavalgando uma onda
e quando o refrão da canção soava sobrepunha-se ao homem
a imagem carregada de preto de um rosto feminino.
Essa imagem de mistério medo e aventura ficou para sempre gravada na minha mente.
E só quando comecei a ouvir música clássica via rádio Antena 2
é que descobri a obra completa, os Carmina Burana.
Hoje, um dos pequenos prazeres a que de vez em quando me dedico
é ouvir este mesmo disco em vinil em casa fumando relaxadamente
e sentir que as minhas palavras nunca são definitivas,
não se trata só de voltar a elas e corrigir erros
(ortográficos ou de pontuação),
falta-me às vezes a capacidade de pre-visão das consequências de quem lê,
eu próprio sou o primeiro leitor do que escrevo no dia anterior
e ao partilhar anónimamente um parágrafo
e ao talvez erroneamente interpretar comentários em que eu não sou destino,
volto ao texto e tento adicionar o ponto de vista de um outro leitor que não eu
ou de imaginar uma voz interior discordar da minha frase inicial.
Preso por ter cão preso por não ter:
a falta de palavras infinitas e belas revela uma falta de confiança 
ou de um ponto de vista forte sem falhas mas
release the id conscience é uma tentativa de definir sentimentos interiores,
de dar forma em palavras, de tentar nomear aquilo que é barrado na mente
no momento em que intuímos que nos vão cortar as pernas
ou dar um tabefe a uma criança que belisca o cú à tia Sáli 
ou sentirem-se zangadas connosco.
Convém dizer que a expressão das minhas palavras escritas é um processo terapêutico
e não de confissão. Eu aprendo quando me contrariam.
E convém dizer que a tia Sáli não é uma jovem adulta,
tem mais idade do que eu
e que o andar na universidade significa que ainda não perdeu totalmente a esperança
de ter fortuna na vida.



This was the dramatic rendition of Carl Orff's most famous piece of music, how he wanted it to look but seldom performed as such nowadays. It was finally filmed by West German TV in 1975 with the close co-operation of Orff in honour of his 80th birthday. The various stories of young lust and gluttony are playfully and skillfully brought to life. This version of Orff's masterpiece of the sacred and profane was hard to find in Germany. Not so strange, it was banned there for decades, most likely because of its almost literal interpretation of the texts Orff put music to. I first saw this when I was 12-13 years old at the Goethe Institute in Bergen, Norway, with my father, sister and mother. Someone had managed to get hold of an 8mm film roll with it and had a secret screening. This was in the 1980s and, believe it or not, there were strong forces opposed to what they considered blasphemous content in films. The mixture of Christian and pagan imagery is completely consistent with the lyrics, which were found in a monastery, and are a mixture of sacred and profane songs, but were obviously too tough to swallow. Copies of the film were destroyed, but luckily, art prevailed. 

Cantata: Carmina Burana
"Canciones de Beuern" (Codex Buranus)
Música: Carl Orff
Texto: Manuscrito anónimo encontrado en el
monasterio bávaro de Benediktbeuern
Estreno: el 8 de junio de 1937 en la Alte Oper de
Fráncfort del Meno
In trutina
(Entre los dos)
Parte 3ª III "Cour d'amours" Número 21
Soprano...Lucia Popp
Director de Orquesta..........Kurt Eichhorn


Pelicula dirigida por...........Jean Pierre Ponnelle

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

'Palavras são sinais, não mais.'

'
Agora, a luzes todas apagadas. Indo e vindo entre o fundo sem fundo e a entrada dele - repetição circulada em que a águia sobe, espiraladamente passa e repassa na vertical do mesmo ponto. Penso: fora daqui, mais nada conheci que exista. Penso ainda: há o mundo e o melhor sítio do mundo, e eu estou em ambos por estar no melhor. Revelação.
Numa pessoa - qualquer pessoa, desde que vasculhada - a tristeza é medonha enquanto se não descobre o que tristeza é: cavalos-vapor, aos mil, de alegria comprimida injustamente. Palavras são sinais, não mais. Mãos agarram mas não têm. Ninguém é macambúzio ou obstinado ou agressor gatuno por opção. É que há paredes duras como pinho braseado, e a cinza do ter que agir, estopadas entretanto. E então são bebedeiras de afazeres ou jogatana, turras enfim. Que isso de andar no mundo feito gente não é coisa para bicho (e o contrário também vale, como expressão do mesmo). Insiste-se em continuar vivendo sempre à espera de. Para alguns vem. A descoberta é como um lince que resvala pelo cedro abaixo ao romper da noite.
No agitado silêncio, vejo que se abre claridade: é o tempo dominado. Dei um salto para outra esfera em que tudo quanto conheço persiste; porém, modificado. Sombras de medo angústia sofrimento caem, eu solto delas, que rebolam cambalhotas pelo infinito abaixo. E continuo o vôo circular, ascensão de águia a contravento, repetição da verticalidade sobre o mesmo ponto-chave. E subo. Nas entranhas mobilizadas por inteiro prepara-se um cair a pique colossal. Em cima do quê? Não importa.
Banho na primeira experiência violenta do que eu sou, ao fim de contas certas. Cada movimento me aproxima implacavelmente do meu centro - subir crescente da tensão a dois em que me alteio. Novo vislumbre: eu-mesmo não é, nem pode ser, eu só. Pois foi de aberto a quem se abria a mim que inaugurei esta isenção da gravidade. No mesmo passo leve-simples em que as palavras foram dispensadas, descubro o fulcro do maior segredo: o oceano oculto onde o que eu sou é outrem, porque é. E embora cada vez mais ancoradamente imóvel no estrebucho, sinto que vou na onda com à-vontades de robalo.
Quando pensava «um segundo mais e não aguento e estoiro», aconteceu: uma explosão a dois.
Foi assim.
'

, página 202

'A noite e o riso'
Nuno Bragança
Moraes editores 1978

A tia sáli



A última mulher a quem eu com sincera modéstia
disse que o que faltava no bolo que me cabe nesta vida
era a cereja da companhia feminina.
respondeu-me dizendo para arranjar um cão de estimação.
Por outro lado, a tia sáli que anda na universidade
e que se derrete quando eu lhe dou trela e conversa obscena de macho
até que se deixava largar nos meus braços
fosse eu ter carro e motorista e uma caderneta bancária para emprestar.
- Caga nisso filho,
o milho continuará a oferecer-te pombas, 
alguma há-de querer-te sem condições.