quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Sendo da experiência comum, tudo isto é ainda em mim complicado por qualquer tique particular.

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Passara várias noites com mulheres. Ainda não passara um dia inteiro com uma. O dia correu-nos sem que o tempo se nos fizesse sentir. Demais, eu notara há muito tempo não possuir exacta noção do tempo. Direi melhor, dizendo que a minha medida do tempo é inconciliável com a vulgar. Momentos há em que saio de mim e ouço o tempo fluir como um sussurro de água. Este murmúrio do tempo confunde-se-me às vezes com o zumbido de um insecto, o uivo do vento ao longe, o tiquetaque dum relógio, o ranger de uma pena no papel, o apito abafado dum ouvido doente... E dizer que tais ruídos me fazem ouvir o silêncio ou sentir correr o tempo -- são-me expressões equivalentes. Ao fim de certas tardes, penso na manhã do próprio dia como se houvera sido há dias. E ao da semana, outras vezes, conservo só a impressão dum dia baço, incolor, chato... Nem falo já das cenas que decorreram há anos, e me são sempre de hoje; dos intervalos em que um sobressalto do coração sustém as horas; ds conversas que se arrastam eternidades; dos instantes imensos, petrificados; ou daqueles dias que súbito nos arrastam numa velocidade vertiginosa... Sendo da experiência comum, tudo isto é ainda em mim complicado por qualquer tique particular.

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José Régio em Jogo da Cabra Cega, página 224 - 225

edição Opera Omnia

domingo, 19 de outubro de 2025

Maldade de um sem noção

A pequena Matilde teve um pequeno vislumbre do que é e será a vida nesta família e, por extensão, neste país. 
A pequena Matilde tem sete anos e recebe-nos hoje em sua casa para festejar os anos do seu pai.
A pequena Matilde leva a avó ao seu quarto para mostrar os pequenos objectos que fez com plasticina, a mãe mostra-se orgulhosa: pequenos objectos, uma cenoura, um balde com pincéis, os pincéis, um caracol, um arco íris, uma palete para misturar a tinta, uma máquina fotográfica, tudo em miniatura e com as cores certas e com detalhe, cabem todos alinhados em cima da tampa da caixa de plasticina. Bonito. 
Depois do almoço e depois do bolo, Matilde senta-se no sofá trazendo do quarto a sua caixa de plasticina com os bonecos e mostra-os ao primo. Matilde tem dois primos: um de quinze e a prima de dezanove. Matilde gosta de passar os dedos, fascinada, pelos colares douro da prima quando se senta à mesa. Matilde mostra as miniaturas que fez ao primo e ele pega em duas ou três e mistura-as nas mãos começando a moldar uma bola de várias cores. Contente com o resultado mostra a bola à primita Matilde, ela olha e começa a choramingar.
O primo destruiu-lhe os brinquedos que ela com tanta aplicação tanto gosto tanta arte, digamos assim, fez com as mãos. 
Matilde chorou e mãe disse Ó Matilde não chores não foi nada...
O primo ri-se da prima estar a chorar e diz Que mal fiz eu, e continua feliz. 
A tia, mãe do primo, diz a rir-se para o filho Então tu foste fazer isso, e continua feliz. 
A Matilde parou de choramingar, pega na bola de plasticina que o primo fez e nos outros brinquedos, e traz a caixa para a mesa do almoço e mostra à tia, a tia diz Vês Também podes fazer bolas queres fazer uma bola como o primo.
Matilde com cara triste diz que não e vai arrumar a caixa. Quando volta, vai junto da prima e pede-lhe para brincar com ela. A prima diz Vai brincar com o primo. 
A pequena Matilde vê com aquela idade que ninguém fez caso da maldade que lhe fizeram e ainda se riram e, depois, vê que ninguém a conforta e a mandam ir brincar com quem lhe fez mal. Quando devia ser o primo a pedir desculpa à Matilde.
E o pior é o primo não ter noção. 
Queres brincar com o primo, vai ao primo dar-lhe um abraçinho. 
E a Matilde vai.
Não pude olhar para o abracinho. A minha revolta interior impediu-me mas ouvi as vozes dizerem Olha não guarda mal nenhum, como que a dizer não há motivo para a Matilde estar triste. Está tudo bem.

E eu que sou o elefante na casa, não posso fazer nada além de observar e escrever.

Miséria! Nesta família a criatividade é morta à nascensa de forma brutal, quer a criança voar e cortam-lhe as asas, riem-se e é ela, a vítima, que tem de fazer as pazes com o agressor and let it go.
Como se fossem os palestinianos que deviam pedir desculpa aos israelitas por simplesmente existirem.
Como se fossem os negros e os ciganos que deviam pedir desculpa aos europeus e portugueses por serem discriminados em qualquer serviço público.
Como se fossem os pescadores venezuelanos e colombianos que tivessem de pedir desculpa ao Trump por levarem com um míssel hellfire em cima e morrerem enquanto estão a pescar.

Não é por causa dos imigrantes, como disse o Passos Coelho, que os portugueses podem sentir-se estrangeiros neste país. 
Eu sinto-me estrangeiro nesta casa de portugueses. 
Sou como o alien que aterra e em vez de abraçar a família vou abraçar a árvore.


bliss for those who understand

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

É por causa de coisas como política externa

Na televisão, ouço Paulo Raimundo dizer a propósito do Nobel da Paz: -- Já se esperava uma golpada se o vencedor fosse o Trump. Não ganhou o Trump, ganhou uma trumpista.

O pcp prefere apoiar o Maduro e ignorar a posição do partido comunista venezuelano que está na oposição. Mas também leio que Corina Machado flerta com a extrema direita.

O pcp prefere compreender o Putin que não é comunista e ignorar a posição do partido comunista russo que está na oposição.

Eu poderia votar pcp mas não voto e, apesar de concordar com muito do que o partido diz, não voto por causa da puta da política externa! Se o ditador for de esquerda é bom para o pcp. Pois nenhum ditador devia ser bom.

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Adenda ao tuíte anterior

E depois, pagar ao crítico para dizer bem de mim, pelo menos teria a vantagem de ser patrão de alguma coisa, seria um patrão cumpridor das minhas obrigações salariais e quando o empregado pisasse a linha ou pedisse aumento, eu responderia:
-- E que fez você para merecer aumento? Passa o dia alapado nessa cadeira vintage a ouvir Lady Gaga e a beber vinho com flor... olhe que eu trabalho com muito custo, toda a vida trabalhei, sabe?
-- Paga, porco!
Então eu espetar-lhe-ia uma murraça com a mão cheia de dólares (mas o dólar vale tão pouco ihih) e com o pouco sangue e muito ranho das suas ventas a tingir as notas, diria:
-- Agora, miserável!, escreve o panegírico, escreve O Maior sessenta e quatro vezes no texto, uma vez por cada permutação do iching, adere à resistência, diz Ohm.

Como é obvio, a pancada não resolve nada e ele escreveu tudo ao contrário, mas nem ele próprio percebeu, de qualquer modo, foi um sucesso nas redes sociais e até o chatgpt escreveu É o maior.

domingo, 5 de outubro de 2025

Tuíte A fama é um berlinde

Eu pensava que tudo era mais que apenas vender mercadoria e transbordar glamour nas redes sociais. Pensava que era sobre trocar ideias e fazer ligações recíprocas.

 Diz-me lá, por isso: deverei eu dar dinheiro a um crítico para ficar na história, mesmo que ninguém mostre interesse na pessoa? 

Não. Prefiro que ele continue a escrever os seus poemas honestos onde dita ordens e imagina a vida do outro.

quinta-feira, 2 de outubro de 2025