sábado, 17 de maio de 2014

D.H. Lawrence - A serpente emplumada, 1926

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Só acordou à tarde. Depois de almoçar, meteu-se num barco de remos e dirigiu-se a casa de Kate. Esta ficou espantada ao vê-lo chegar de fato branco e sarape encarnada.
- Vou proclamar-me o Huitzilopochtli vivo - declarou ele.
- Sim? E quando? - Kate quase tinha medo dos olhos inumanos daquele homem.
- Na próxima quinta-feira. A quinta-feira será o dia de Huitzilopochtli. Não queres sentar-te ao meu lado e ser a minha esposa quando eu for deus?
- Mas tens a impressão de ser um deus? - perguntou Kate incrédula.
Cipriano lançou-lhe um olhar estranho.
- Fui lá e voltei, mas pertenço ao reino onde estive.
- Onde estiveste?
- No lugar em que não há além, em que as trevas se afundam na água, em que estar a dormir ou acordado equivale à mesma coisa.
- Nunca compreendi questões místicas. Causam-me certa aflição.
- É uma questão mística quando me aproximo de ti e te possuo?
- Claro que não. É física.
- Pois o mesmo se dá com o outo caso, embora ultrapasse esses limites. Não queres ser a esposa de Huitzilopochtli? - inquiriu ele novamente.
- Não tão cedo.
- Não tão cedo! - repetiu Cipriano.
Houve uma pausa.
- Queres voltar comigo para Jamiltepec? - perguntou ele.
- Agora não.
- Porquê?
- Não sei... Tratas-me sempre como se eu não possuísse vida própria, mas possuo! - replicou Kate.
- Possuis? Quem ta deu? Onde a arranjaste?
- Não sei, mas tenho-a e quero vivê-la. Não posso deixar-me tragar.
- Porquê, Malintzi? - volveu Cipriano, tratando-a pela primeira vez por este nome singular. - Porque não podes?
- Porque não.
- Eu sou o Huitzilopochtli vivo e deixo-me tragar. Julgava que o mesmo acontecia contigo, Malintzi.
- Não, não inteiramente.
- Não, inteiramente, agorra não, não tão cedo... Quantas vezes já disseste «não»! Vou ter com Ramon.
- Pois vai. Só te importas com ele, com o vosso Quetzalcoatl vivo e Huitzilopochtli vivo! Eu sou apenas uma mulher.
- Não, Malintzi, és mais do que isso. És Malintzi.
- Não sou Malintzi nenhuma. Sou simplesmente Kate, uma mulher como as outras, e não acredito nessas histórias.
- Pois eu sou mais do que homem, Malintzi. Não vês?
- Não! Não vejo - respondeu Kate. - Porque havias de ser mais do que homem?
- Porque sou o Huitzilopochtli vivo. Então já não to disse...? Hoje a tua boca está cheia de pó, Malintzi.
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página 347
tradução de Maria Franco e Cabral do Nascimento
edição Unibolso, Portugália Editora, Lda

2 comentários:

  1. Este livro e outro dele, A Virgem e o Cigano, foram os que melhores impressões me deixaram. Uso a palavra impressões propositadamente, pois que tenho memórias esfumadas, mas gratificantes, bons momentos.

    Creio que foi no blogue que actualmente exploro como hospedaria que mencionei o quanto gostei do D.H. Lawrence enquanto ensaísta. Arguto, cirúrgico trocando o bisturi por um tacto mais próximo das coisas que não implicava corte. Nessa altura prolongava ainda a minha crítica ao "poeta de merda" que ele foi. Uns tempos depois, li noutro blogue um poema dele que me deixou as pernas a tremer e calei-me.

    Muito aprendemos nós, não tanto preenchendo vazios, mas desemplumando a espaços.

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  2. Procura também um chamado 'Mulheres apaixonadas'
    do qual também existe um filme de um realizador controverso
    chamado Ken Russell.
    Conta a história de duas irmãs:
    http://www.imdb.com/title/tt0066579/
    Existe um ensaio dele publicado na editora frenesi que gostava de ler:
    http://frenesieditora.blogspot.pt/2011/09/pornografia-e-obscenidade.html

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