-- Os meus primeiros cigarros foram no 10º ano, tinha quinze anos, no intervalo das aulas.
Havia uma colega que se colava ao meu ombro e fazia de mim cabide cavalete?!
E eu achava aquilo engraçado!
-- E está outra menina à espera...
-- Por acaso, é um rapaz a fumar também.
-- Agora diz-nos o que sentes? Não te esqueças: respira com o estômago.
-- Rebeldia, penso que é esse o sentimento do desenho. Os cigarros são um acto de rebeldia. O meu pai tirava-me os cigarros, não me dizia nada, roubava-mos sem me dizer e era a minha mãe, que tinha pena de mim, que mos devolvia e dizia que fumar mais mal (...)
(... e agora no remanso do quarto e do blogger continuo a reflectir:
iá!, achava engraçado mas era um bocado ingénuo, podia ter aproveitado o encosto da rapariga
mas eu era um chavalo que tinha vindo dum colégio, mal saíamos das aulas entrávamos na carrinha
e esta levava-nos a casa, não conhecia mundo, os meus pais estavam mais preocupados com afastar os filhos das más-influência e fizeram de mim um chavalo que teve de aprender às suas custas,
e claro às vezes calado outras vezes expansivo e sem a noção da palavra e as suas consequências.
Um dia, um colega já com barba feita começou a importunar-me no autocarro, e eu vinha-o aturando há dias, saltou-me a tampa e disse-lhe «quando falas ou sai merda ou entra piça», o que eu quero dizer é que não media as palavras e claro, levei um arraial de porrada, a rapariga passou-se para o lado do vencedor e eu cheguei a casa e foi como se nada tivesse acontecido, se o meu pai reparou não disse nada, educar o filho, preocupar-se com a sua educação e aconselhá-lo como se comportar e defender em sociedade não era tarefa para ele, vivia para o trabalho e chegava a casa e deitava-se doente, nunca foi um herói para mim.)
Quando terminamos a parte prática da aula, colocamos os trabalhos em linha no chão
e a professora diz-nos para sermos assertivos ao criticarmos o trabalho de cada um.
-- O que sente?
E eu começo a descrever o que vejo. Aí a professora interrompe:
-- Não é o que vê, é o que sente. feche os olhos, inspire, abra os os olhos
e diga o que sente.
Foi aqui que disse que isso de sentir, comigo não funciona.
Ela tenta de outro modo:
-- Fisgar pássaro?
E o clique dá-se no meu pensamento:
-- Eu tenho um primo que na altura tinha uma caçadeira, caçava pássaros...
-- Por prazer?, o que fazia com eles?
-- Comia-os.
-- Mas tinha fome?
-- Não. Acho que era mesmo por desporto. Eu tinha doze anos, o meu avô fazia arcos e flechas...
-- Alguma vez matou algum pássaro?
-- Não, nunca, era só uma brincadeira para passar o tempo.
-- Obrigada pelo sentimento. Viu? Não é dificil exprimir sentimentos. Amor e ódio são sentimentos. O que é mau é a ausência de sentimento: a indiferença.
(Eu pergunto-me se não será a indiferença preferível ao contacto com alguém
que apenas nos faz mal ou provoca em nós sentimentos de ódio:
ser indiferente também pode ser uma forma pragmática de esconder um sofrimento.)
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Na página de guarda dum dicionário descubro esta declaração em bela caligrafia, emoldurada de floreados:
«Hoje, 2 de Fevereiro de 1886, troco o estudo do Direito pelo da Química. Último cigarro!»
Era de grande importância aquele último cigarro. Recordo-me de todas as esperanças que o acompanharam. O estudo do Direito Canónico, tão afastado da vida, havia-me maçado e eu preferi-lhe uma ciência que era a própria vida, embora fechada em retortas. Aquele derradeiro cigarro exprimia o meu desejo de actividade (tanto manual como cerebral) e de meditação serena, sombria, sólida.
Para escapar à série de combinações com base de carbono, em que não acreditava, regressei ao Direito. Meu Deus, foi um erro! E este marcado também por um último cigarro, cuja data encontro indicada num livro. Data igualmente importante. Resignava-me a voltar às disputas sobre a propriedade, renunciando de vez às séries de carbono. Percebera não ser talhado para a Química e para tanto concorri à minha falta de perícia manual. Como poderia, aliás, ser hábil continuando a fumar da maneira que fumava?
Nesta ocasião, que estou a analisar-me, assalta-me uma dúvida: talvez não gostasse tanto do tabaco senão pela vantagem de lhe assacar a culpa da minha incapacidade. Quem sabe se, deixando de fumar, eu chegaria realmente a ser o homem ideal e forte que supunha? Foi decerto esta dúvida que me prendeu ao vício: é uma forma cómoda de viver, esta de se julgar grande em potência. Arrisco a hipótese para explicar a fraqueza juvenil, mas sem convicção muito firme. Na actualidade, velho como sou e sem ninguém a exigir nada de mim, passo frequentemente dos cigarros às boas resoluções e destas aos cigarros. Que sentido têm hoje tais resoluções? Como o velho higienista que Goldoni descreve, quererei morrer de excelente saúde depois de haver passado toda a vida enfermo?
Certa vez, sendo estudante, fui obrigado, ao mudar de quarto, a renovar o papel da parede desse que eu deixava e que ficara todo coberto de datas. Talvez, ao transferir-me, pensasse que o aposento era já um cemitério de boas intenções e que eu ali não seria capaz de formular mais nenhumas.
Confesso que um cigarro me proporciona sabor mais intenso quando é o último. Os outros têm o seu sabor particular, porém menos forte; mas o do último provém da convicção de se ter alcançado uma vitória sobre o organismo e da esperança num futuro próximo cheio de força e de saúde. Os restantes gozam da sua importância, evidentemente, pois que acendendo-os também se afirma a nossa liberdade; mas o tal futuro distancia-se um pouco.
As datas nas paredes do quarto eram de cores diversas, algumas até pintadas a óleo. A minha deliberação, tomada de cada vez com a mais ingénua confiança, encontrava expressão adequada na vivacidade da cor -- o que devia empalidecer a inscrição consagrada à resolução precedente. Algumas delas desfrutavam da minha preferência, por causa da concordância dos números. Lembo-me duma data do século passado que me pareceu dever fechar para sempre o túmulo em que eu pretendia encerrar o meu vício: «Nono dia do nono mês de 1899.» Data significativa, não lhes parece? O novo século trouxe-me datas também musicais: «Primeiro dia do primeiro mês de 1901,» Ainda hoje se me afigura que, se ela se pudesse repetir, eu saberia recomeçar uma existência nova.
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páginas 12-13
"A consciência de Zeno"
Italo Svevo
Tradução de Maria Franco e Cabral do Nascimento
Edição Dom Quixote
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Na manhã seguinte, prosseguindo nesses penamentos, preparou pena e papel e recomeçou «O Carvalho», porque possuir tinta e papel em quantidade, quando se teve de recorrer a cerejas e margens, é uma delícia inimaginável. Assim estava ela, ora expulsando uma frase, nos abismos do desespero, ora inscrevendo outra, nos cimos do êxtase, quando uma sombra escureceu a página. Apressadamente escondeu o manuscrito.
Como a sua janela dava para a parte mais central dos pátios, como ordenara que não queria ver ninguém, e ela mesmo era legalmente desconhecida, ficou, a princípio, surpreendida com a sombra, depois indignada, depois (quando olhou para cima e viu de onde ela vinha) cheia de alegria. Pois era uma sombra familiar, uma grotesca sombra, a sombra de nada menos que a Arquiduquesa Harriet Griselda de Finster -- Aarhorn e Scand-op-Boom em território romeno. Atravessava o pátio como antes com o seu velho trajo negro de montaria e sua capa. Era então esta a mulher que a expulsara da Inglaterra! Este era o ninho daquele obsceno abutre -- e ela a própria ave fatal! Ao lembrar-se de que tinha ido parar à Turquia para evitar os seus encantos (agora muito reduzidos), desatou a rir. Havia algo de inexprimivelmente cómico no seu aspecto. Parecia-se, como Orlando pensara antes, com uma lebre monstruosa. Tinha os olhos salientes, as bochechas flácidas, o alto topete desse animal. Agora parara, como uma lebre erecta no trigo, pensando que ninguém a observaria, e fitava Orlando, que por sua vez também a fitava da janela. Depois de se terem fitado assim por algum tempo, não havia outra coisa a fazer senão convidá-la a entrar; e dentro em pouco estavam as duas senhoras trocando cumprimentos, enquanto a Arquiduquesa sacudia a neve da sua capa.
«Diabo leve as mulheres!» -- disse Orlando para si mesma, dirigindo-se ao armário para servir um copo de vinho -- «nunca deixam uma criatura em paz. Não existe gente mais bisbilhoteira, mais curiosa, mais intrometida que essa. Foi para escapar a este estafermo que deixei a Inglaterra, e agora» -- aqui, voltou-se para apresentar a salva à Arquiduquesa -- e encontrou em seu lugar um cavalheiro alto, de negro. Um montão de roupas jazia no guarda-fogo. Estava a sós com um homem.
Bruscamente chamada assim à noção do feminino, que completamente esquecera, e à do masculino, bastante remoto agora para ser igualmente inquietante, Orlando, sentiu-se desfalecer.
«Ai!», gritou, levando a mão ao flanco, «que susto!»
«Gentil criatura», exclamou a Arquiduquesa, dobrando o joelho, e aproximando, ao mesmo tempo, um cordial dos lábios de Orlando, «perdoe-me este engano!»
Orlando sorveu o vnho e o Arquiduque ajoelhou-se e beijou-lhe a mão.
Em suma, representaram os papéis de homem e mulher por dez minutos, com grande intensidade, e depois, recaíram nas suas maneiras habituais. A Arquiduquesa (que doravante deve ser conhecida como Arquiduque) contou a sua história -- que era homem, e sempre o havia sido; que vira um retrato de Orlando e dele se enamorara desesperadamente; que para atingir os seus fins se vestira de mulher e se alojara na casa do padeiro; que ficara desolado quando ele fugira para a Turquia; que soubera da sua mudança e apressava-se a oferecer os seus serviços (fazia o seu jogo e observava-a de um modo intolerável). Pois para ele, dizia o Arquiduque Harry, ela era e sempre tinha sido o Primor, a Pérola, a Perfeição do seu sexo. Os três «pp» teriam sido maiis convincentes se ele não os entremeasse de beijos e exclamações da mais estranha natureza. «Se isto é amor», disse Orlando para si mesma, olhando para o Arquiduque do outro lado da lareira, e agora do ponto de vista feminino. «há no amor alguma coisa profundamente ridícula».
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páginas 200-203 "Orlando"
Virginia Woolf
Tradução de Cecília Meireles
Edição Livros do Brasil
Pegando na ideia expressa no título da exposição da Helena Almeida,
que terminou recentemente em Serralves:
a ideia do corpo e sua evolução temporal como obra de uma vida;
e conjugando com a visualização de algum trabalho recente de João Fiadeiro:
a ideia de mudança de paradigma de uma relação entre posições de um padrão mecânico
para uma relação entre relações qualitativos, e também a relação presença / ausência
expressa na sua performance / exposição: I was here / I am (not) here:
Na Terça-feira passada no Espaço T continuámos a discutir estes temas
e a uma pergunta da professora eu respondi que
estou naquela fase em que já tenho a consciência de que estou a ficar velho
e ao me perguntar se eu achava assustador e como lidava com isso, respondi lapalicemente que
é o curso natural, se estou a ficar velho é porque não morri novo.
Assim, quando se passou à parte prática da aula, eu propus fazer um timeline
da evolução do homem durante a sua vida cronológica.
A professor gostou mas ressalvou que não era original, alguém já tinha feito.
Mas nem todos somos absolutamente originais ou génios, respondi.
Alinhavei alguns títulos do timeline, não sei ainda bem como vão ser trabalhados
mas estes títulos são:
Triciclo, fisgas, primeiros cigarros, amor, discurso e poder, desastre de automóvel, poltrona com pantufas e tv, bengala chapéu e barba branca até ao chão.
Do eternamente azul a serena ironia
Abate, de indolência bela como as flores,
O poeta que o génio impotente maldiz
Ao longo de um deserto árido de Dores.
As pálpebras cerrando, a olhar furtivo o sinto
Com o intenso terror de um remorso por dentro
A minha alma vã. Onde fugir? Delírio
De que noite lançar, farrapos, ao desprezo?
Nevoeiros, subi! Vertei as cinzas mornas
Com remendos de bruma esparsos pelos céus
Que o charco afogará lívido dos outonos
E construí um tecto vasto e silencioso!
E tu, sai dos letais pauis e arrepanha
Ao cercarem-te, a lama e os pálidos caniços,
Caro Tédio, a tapar com a mão jamais lassa
Os buracos azuis que as aves más abrirem.
Ainda! Sem cessar, que as tristes chaminés
Ardam e a fuligem de uma errante prisão
Apague no horror dos seus negros vaivéns
O sol a declinar rútilo no horizonte!
-- O Céu morreu -- A ti, ó matéria, eu vou! Deixa
O olvido do Ideal cruel e do Pecado
Ao mártir que só vem partilhar a miséria
Do leito em que jaz feliz o triste gado
Humano. E assim seja, enfim, que esta caveira,
Como um vaso de pó vazio ao pé de um muro,
Já não sabe adornar a soluçante ideia,
Lúgubre a bocejar para uma morte obscura...
Em vão! O Azul triunfa e eu ouço-o a vibrar
Nos sinos. Ó minha'alma, ei-lo já, feito voz
Para melhor, vencendo, o pavor provocar,
E do bronze renasce em trindades azuis!
Ele rola na bruma, antigo, e atravessa
Tua inata agonia qual um gládio seguro;
Fugir, mas para onde, em luta vã, perversa? Estou possesso. O Azul! O Azul! O Azul! O Azul!
Stéphane Mallarmé
in 'Poesias'
tradução de José Augusto Seabra
Assírio & Alvim
"...What makes the album genuinely remarkable, even among the Art Ensemble's complete output, is the Mitchell composition titled Song for Charles (a dedication to Charles Clark, the talented Young AACM bassist who died in Chicago just nine weeks before this recording). If anything can be said to be "typical" of the group at its best, then this lengthy and complex group improvisation deserves such a description. The multi-instrumentalism creates a constantly shifting surface, yet care is taken to provide thoughtful and logical contexts for the improvisations-notably the central solo by Bowie,which is among his starkest and loveliest recorded improvisations. In other hands the bird-calls and the shouts and the bass sax would sound absurd, but the quartet exploit them with discretion and unfailing aptness" From Richard Williams, January 1978 liner notes