quarta-feira, 27 de abril de 2016

A mulher-elefante

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Uma procissão lenta, a preto e branco, a caminho do cemitério desloca-se da esquerda para a direita. A seguir, um televisor. É com esta imagem que Cha acorda, a imagem de estar a ver televisão na sala de casa dos seus pais, em adolescente. Leva a mão ao bolso das calças, retira o telemóvel. «Quatro da tarde. Engraçado, estou a cantar mentalmente Joy Division. Hold in silence, don't walk away. Por outro lado, estou a sentir-me molhado… tss… é o que eu estou sempre a dizer, sou uma criança. Dormi três horas, dormi a sesta e tive uma polução diurna, conas-me-lambam!, mas não me lembro do sonho, estava cansado é certo, foram vinte e quatro horas de avalanche, a realidade supera a ficção, arranjei emprego, perdi o emprego, bebi cerveja… o Neca pagou-me copos a mais, vomitei em cima do Sancho, é certo que a conversa estava uma merda, o Neca a contar que vai para as obras em França já no Domingo que vem, queria que eu fosse no Sábado participar do churrasco de despedida mas eu disse-lhe que não.» Cha boceja, espreguiça-se, olha pela janela, «está um calor tórrido, imagina subir o monte durante uma hora para chegar a casa do Neca e dar de caras com ela… é óbvio que disse que não, nunca mais volto a subir aquela escada do primeiro andar!, afinal de contas, a consequência de tudo é eu estar aqui temporário nesta casa de hóspedes, não podia continuar a fazer de visconde naquela torre de controlo rádio, a dar música aos vizinhos, e depois ela disse que se ia mudar, que me ia deixar e mudar-se para um quarto no rés-do-chão, claro que não podia ficar lá e depois zanguei-me com todos, quando lhes apresentei a viscondessa todos gostaram do modo desembaraçado como aviou a louça do primeiro almoço partilhado de Domingo, além disso, sabia contar histórias… caralhos a fodam agora!, chateei-me com todos, anos a lutar contra o seu ciúme (que não tinha razão de ser) e no meio de um jogo de Queime-se quando eles faziam sinais eu dei um murro na mesa, enfim nunca digais desta água não bebo mas não, Neca, não vou lá no Sábado.»
Cha está ansioso, sente-se acossado, não sabe em quem pensou enquanto estava a dormir, não se lembra de sonhar, volta atrás no tempo da memória e recorda que adormeceu a pensar. «Mas em quem? Em qual delas? Ah cabrão há várias que uso de vez em quando, não foram assim tantas seu otário, mas desta vez não foi premeditado, o sonho nunca é consciente, seria a Maria? Nunca fui tão bem comido como com ela… nã. Seria a Joana? Ai as saudades que eu tenho da Joana e de ouvirmos Os cantares do Andarilho… ai tirana saudade és um cortinado roxo que me morde o coração… teria sido a Maria Joana, essa mulher totem, essa juíza de paz?, a pintora não foi de certeza, essa elinha de cabelos amarelos de má-raça!, ou teria sido a Icata platónica, essa de quem perdeste o tempo de conquista e, quando finalmente chegaste, atrasado, ao essencial na vida, ela tinha-se transformado em beleza literária num vestido alaranjado muito faux-pas-attendre… não… não foi com ela que sonhei, lembro-me agora, lembro de adormecer a pensar num banco, de poder ter vindo a ser o banco dela, lembro-me da senhoria, teria eu sonhado com a filha de uma senhoria qualquer e futura, serei eu, no futuro, banqueiro?»
Cha leva a mão à máquina de enrolar. Ainda tem tabaco para três cigarros, decide enrolar um. «Eu devia era tomar novo banho, fazer a barba, às vezes a resposta correcta é a mais simples, vou fazer café.»
Cha levanta-se da cama, abre a porta do quarto e dirige-se à cozinha. É pena o fogão ser eléctrico. A sua cafeteira não serve. O que vale é que a dona Zelda lhe emprestou um fervedor e um coador. Assim, Cha faz café à faroeste, ferve água e côa os grãos. «É o que temos. De qualquer modo, com o fracasso do trabalho, tenho mesmo que esperar pela convocatória para o rendimento mínimo, não posso agora mudar o registo do cartão de cidadão, não posso mudar agora de morada, pelo menos até receber a primeira prestação… o banco da minha o banco da minha… disse a senhoria no meu sonho, oh não pode ser!, não me digas?!, de facto houve uma mulher na minha vida que disse que eu era o banco dela, será que eu sonhei com a mulher-elefante?»
Enquanto a água ferve, Cha vai ao espelho da casa de banho, mija, decide não tomar banho nem fazer a barba, a lâmina de Occam deu-lhe a resposta que precisava, além disso, o inchaço não é muito pronunciado, passará bem por olheiras profundas, pelo menos quando observado à luz fraca do cubículo. «Sonhei com a mulher-elefante, eheh um dia teria de voltar a ela, talvez um dia conte com mais pormenor, a nossa paixão foi obsessiva, não poderia de modo algum durar.»
Cha volta à cozinha. A água está no ponto. Lança para dentro do fervedor os grãos de café de moagem grossa. Com o pano pega no fervedor e leva-o para o quarto, côa agora o café para dentro da caneca, e assim se faz alegria, não tem fome, o café tira-lhe os restos de ansiedade e deixa-o divertido a pensar na mulher-elefante. «Que postalete, quando ela me disse uma vez que tinha sido nove a dois!, era uma portentosa contista, sabia fazer» 
Cha refere-se a um jogo sexual entre os dois, como num jogo de futebol em que o golo é o orgasmo do parceiro. A mulher-elefante dissera-lhe uma tarde: «9-2» O capitão põe-se a recordar: «pois eu tinha ido de autocarro ao estádio para uma entrevista de emprego que correra bem, nesse dia havia greve dos transportes pelo que a volta, depois da rotunda da bouça para abastecer e comemorar em casa, se fizera a pé, uma hora e meia de caminho, o calor era tórrido como hoje mas eu estava bem nessa tarde, ela ficara a dormir na torre de controlo rádio, eu cheguei, fiz a broca e chamei por ela minha elefanta minha amora consegui o emprego, ela teve vontade de fazer, de me fazer a festa, afinal a minha mulher-elefante sempre gostou de homens que lhe trouxessem dinheiro para casa, decidiu recompensar-me, meu banquinho minha pedrinha, disse, eu aproveitei para pôr a tocar no leitor de mp3 o álbum Viagens do Pedro Abrunhosa, era o ídolo dela, o seu músico de slows, sabia as letras de cor, começámos a fazer, a cantar em dueto por cima das músicas tocando em repetição, agradável realmente saboroso, vim-me uma vez, parámos para fumar mais um, ela disse que já se tinha vindo três vezes, a sério?!, a princípio não acreditei, mas ela disse três golos pequeninos, pelo que continuámos a jogar o amor, o disco tocou à vontade três vezes completas e nós naquilo, às vezes parávamos porque nos cansávamos, fumámos mais, pusemos Buraka, vim-me finalmente a segunda vez, fiquei saciado, acho que houve momentos em que te fiz feliz minha mulher-elefante, pelo menos, a avaliar pela expressão dos teus olhos mas nove a dois, não sei, parece-me exagerado rai's-nos-partam!»
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Claudio Mur
em
'O estranho caso do Capitão Mancha e do Cê Sancho'

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