sexta-feira, 8 de abril de 2016

A solidão é impossível pois está povoada de fantasmas

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Naquele dia, quando chegou a hora de recolher às nossas sinistras dependências (não sei como chamar àqueles miseráveis quartinhos para desequilibradas), fiquei a pensar na escrita daquele pianista desconhecido provavelmente criado pela imaginação perturbada de Rita, e lembrei-me que há quem escreva cartas para vingar-se de alguém, ou de alguma coisa, ou então para fugir da obsessão constante da morte ou para fugir do grande bocejo universal, ou simplesmente para passar o tempo, o que já é muito, e assim fugir da loucura que, mais tarde ou mais cedo, nos ameaça a todos, e pensei que se a loucura era todo um mistério a escrita não o era menos, e que, em qualquer caso, nas mensagens do pianista da Hungria o que predominava não era o mistério da loucura mas antes, pura e simplesmente, o mistério da escrita: o mistério de cartas como esta que te escrevo para celebrar uma invenção que me mantém afastada do desespero maníaco, porque eu sinto-me fora de todo o perigo desde que escrevo cartas, mas sobretudo desde que descobri que dessa invenção tão prática podia surgir na prática uma invenção ainda melhor e mais verdadeira.
Comecei a intuí-lo no dia a seguir ao meu encontro com Rita, quando esta me deu a novidade que ia mudar a minha vida. Disse-me que acabava de roubar ao médico a carta oculta do pianista, a carta que até então não tinham querido entregar-lhe. «Talvez tenham tentado esconder-te um texto com um conteúdo desagradávl para ti», sugeri-lhe. «Nada disso», comentou Rita, e mostrou-me com um gesto triunfal a carta roubada, depois sorriu enigmaticamente e disse: «O que acontece é que não gostaram nada de ver quem a assina.» A novidade surpreendente consistia em que nessa ocasião a carta estava -- com uma caligrafia mais que borrada -- assinada. O texto, por seu turno não era tão confuso, e era tão breve que se tornava impossível que houvesse espaço para que o conteúdo fosse quer agradável quer o seu oposto; ia mais além da brevidade possível nas mensagens escritas: «Fi», dizia em Baltonszárszo. (...)
Após o texto mínimo, embora contundente, podia ver-se a microscópica e mais do que esborratada assinatura, ilegível a qualquer luz e para toda a gente, salvo para Rita.
«É Barrymore», disse-me com o seu melhor sorriso e olhando-me com uma estanha inquietação e ânsia. Senti como se naquele instante, na duração e no brilho daquele olhar único de Rita, se tivesse encarrilado o meu destino, e não estanhei que isso tivesse acontecido, pois de facto eu tinha andado em busca dele, o mais conscientemente possível e cheia de vontade, ali mesmo naquele hospital. Ninguém deixa de obter aquilo que anda à procura, e eu tinha ido a esse manicómio precisamente em busca da confirmação de uma grande suspeita: a de que a solidão é impossível pois está povoada de fantasmas. E eu fora a esse manicómio precisamente em busca desse momento único que, após ter sido guiada por uma obscura mas certeira intuição, acabara por encontrar na intensidade e agitação do olhar da minha amiga mais terna, mais louca e inseparável. E deixei de dar voltas ao assunto. Fui ao gabinete do doutor Freud e despedi-me dele: «Vim para ver a minha amiga Rita Rovira, e já a vi, de modo que me vou embora.» O médico ficou a olhar-me por cima das lentes a cavalo na ponta do nariz e quase me enterneceu. Pobre homem, sozinho com a sua maldita ciência e sem imaginação. Era evidente que não entendia nada. Desesperado, começou a remexer em papéis, a consultar fichas, a lançar olhares assassinos aos embaciados vidros dos seus óculos e da janela, e finalmente acabou por levantar-se e dizer-me num tom crispado, tão ridículo como patético: «Aqui não há nenhuma Rita Rovira. De modo que essa amiga é uma invenção sua.»
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,páginas 125-127
'Suicídios exemplares'
Enrique Vila-Matas
edição Assírio & Alvin

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