sábado, 30 de abril de 2016

Um site com fotografias eróticas

Rindo-se sozinho, o capitão levanta-se e vai até à janela, é uma janela das antigas, em modo guilhotina. Levanta-a. Sente a brisa de Verão. Mete a cabeça do lado de fora. Dá a ultima baforada e deita o cigarro fora. A casa de hóspedes é junto ao rio mas da sua janela, que dá para as traseiras, não se tem a visão da água. Antes, a sombra nas paredes da casa em frente, um bafo seco subindo pelas escadas de pedra centenária, lá em baixo, até Cha, na sua janela do terceiro andar.
«A mulher-elefante… não podia de modo algum durar…» pensa ele quando de repente uma nuvem passa e escurece a tonalidade da parede em frente, a sombra torna-se mais sombra e assombra-o porque se apercebe que a mulher com quem sonhou este início de tarde era, sem sombra agora de dúvida, a viscondessa.
«Pois é, mesmo que me faça forte e afirme o contrário, eu ainda gosto dela, o sonho não mente, ainda me faz sentir desejo, talvez um desejo não-consciente pois não quero mais ocupar-me com ela como faço com algumas mulheres que conheci no passado… sim, inconscientemente ela ainda me dá tesão, afinal ela nem sempre foi gorda… quando a conheci era tão magra que parecia uma borboleta com óculos… então, o que correu mal para que ela, a meus olhos, começasse a engordar… porque é inegável, ela estava tão magra porque não se podia alimentar, começasse a engordar, começou a transformar-se numa libelinha, numa libelinha com olhos grandes e furibundos, uma tira-olhos, uma cavalinho-das-bruxas, caralhos-me-fodam lá o diccionário priberam que me permite que uma borboleta se transforme em elefante!»
Cha volta para dentro do quarto e olha para o telemóvel, são quatro horas e quarenta da tarde, recorda que só tem mais dois cigarros e, portanto, vai ter de sair de casa e enfrentar o mundo. Apetecia-lhe comprar ganza, ainda tem algum dinheiro, mas ele agora pode ser só aplicado no essencial: o jantar que não pode cozinhar, o café onde vai ler a página dos anúncios de emprego, o tabaco de enrolar que vai aumentar brutalmente de preço. Reflecte que não pode hoje comprar ganza, e no entanto tem de sair de casa. Começa a sentir-se desconfortável em sintonia com os seus pensamentos.
«Porque correu mal? Quando foi que correu mal? Afinal, se na ilusão do teu sonho a mulher-elefante foi sujeito que não podia de modo algum durar, a verdade é que a tua relação com a viscondessa durou, com avanços e recuos, quase cinco anos?!» 
Aqui, Cha dá um suspiro de desabafo e diz que tem que admitir que, afinal, a viscondessa-elefante terá sido a mulher da sua vida, afinal as outras duraram pouco no tempo. «Duraram pouco no tempo, mas são eternas na memória, são longas as memória boas que delas tenho, ao passo que a mulher agora transformada em mulher-da-minha-vida se acabou por revelar uma sucessão infinita de miséria e problemas. O prazo de validade terminou, cansei-me de tudo, tive ciúme por fim e não foi bonito.»
Cha tem uma tendência para se culpar de todo o mal. É talvez uma questão narcísica esta, a de ele ignorar que numa relação há sempre o outro lado, às vezes, não compreende que o outro lado também tem motivos e razões próprios, e que ele próprio desconhece, pois não lhe é possível ler os pensamentos do outro lado, apenas intuir, às vezes erradamente, os pensamentos do outro lado nos olhos e no brilho particular que esses olhos apresentam em função de algo que Cha transmite, seja num diálogo seja num pensamento inaudível. Cha pensa que a viscondessa lhe lia os pensamentos e esquece-se que ela própria teve a sua culpa no desmoronar da relação. «Sim, eu tive as minhas culpas, mas ela no final tornou-se impossível, houve uma altura em que reparei que podia dar para o torto como, aliás, todas as minhas relações deram, mas com ela quis fazer diferente, quis ver se conseguia fazer durar a relação, saudável… relação saudável, pura e sem sombra de miséria, foram poucos meses é certo, o restante foi tentativa de compromisso, comigo a ceder cada vez mais. Sempre foi assim. O que foi diferente é que houve mais rupturas e reuniões do que nos casos anteriores. E houve pranto e houve gritos e ameaças de suicídio e comprimidos em excesso para dormir porque o desejo dela era às vezes desaparecer porque ela tinha uma vida passada como nem tu, nos teus maiores sonhos maus pudeste imaginar. E porque, quando voltavas para ela, sentias desejo físico e vias nos olhos dela amor e esquecias que nesses olhos havia muito de necessidade, de necessidades básicas como ter dinheiro para se alimentar. Tu quiseste ser o homem que a tirasse da miséria mas que lhe desse não só comida mas também cultura, um concerto num sábado ao fim da tarde, um livro, um poema sussurrado quando tudo o que ela queria era uma tarde na esplanada a comer tremoços e amendoins e beber finos. Para isso, é preciso ganhar dinheiro. Eu tentei fazê-lo mas até do trabalho ela teve ciúmes, ao que parece o meu trabalhar desviava a minha atenção da sua pessoa. Enfim, era mais uma situação impossível. Eu tenho de trabalhar, posso ter pai e mãe, família que tu não tinhas, mas tenho de trabalhar, não sou rico e não tenho culpa se qualquer merdinha te fazia ciúmes estúpidos!» diz Cha, agora nesta tarde, ocupado que está a recordar-se de coisas tristes que com ele se passaram.
«O que correu mal e foi certamente o princípio deste definitivo fim de relação foi eu ter aceitado aquele biscate, o de fazer para um patrão o site electrónico de uma prostituta brasileira, isso é que foi, e nem ganhei muitos euros, ter de passar uma semana a construir um site com fotografias eróticas e formulário de email para chat… foi de mais para ela, foi a partir daí que ela se resolveu a vingar, ou então não, os olhinhos que começou a fazer aos colegas de casa eram sinceros, sei lá!, uma tentativa de se vingar de eu olhar para fotografias de mulheres nuas mesmo em trabalho… oitenta euros… foi quanto ganhei, o suficiente para dinamitar a relação, daí até ela me dizer que queria que eu me fodesse todo, foram umas semanas. Que sa foda!, uma mulher é só uma mulher e eu ainda estou vivo, agora vou sair, são cinco da tarde, ver o sol, vou à jukebox pôr um disco de Jimi Hendrix, comprar tabaco e beber um copo de cerveja, já chega de recordação.»
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Claudio Mur

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