quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Caminhavam formados dois a dois para a capela, à oração da manhã. Depois cada um ia para a sua oficina ou para a aula de estudo.

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Disseram-lhe depois que a mãe morrera, e a sua vida mudou. Nunca mais foi visto no sítio nem tornou a levar ao velho o Notícias, todas as manhãs. Dormia nas escadas, de manhã vendia os jornais, o resto do dia passava-o nas ruas, sentado pelos bancos das praças, dormitando canalhamente ao sol. E a suavidade de génio, a doçura implume dos seus olhos derivaram numa rispidez, numa malícia de garoto.
Entre os da sua idade começou a ter predomínio; era o das partidas subtis, o que comandava as troças que o bando fazia aos velhos, o que ia gritar nas escadas, o que armava intrigas, desenvolvia contendas, e nos magotes repartia socos e pontapés, no meio da grita e das risadas dos taberneiros. Durante dois anos viveu esta boémia das ruas, tripudiando no meio ínfimo a sua turbulência e a sua alegria. Às vezes, tinha fome: ia pedir nas ruas escuras, com o barrete na mão, a quem passava. E o seu coração sofria todos os maus modos e todas as humilhações sem rebeldia. Nesta senda privou com os incorrigíveis, conheceu os mendigos, os gatunos e as velhas de capote verde, sem meias, que esmolam nos adros das igrejas, em lamentações dolorosas. Uma vez a polícia entrou numa casa da malta, na véspera de uma parada, e varreu quanto lá achou para a prisão. Os pequenos foram metidos na Casa de Correcção e os gatunos no Limoeiro, por contas antigas. Sentiu duramente o cárcere, e sinceramente chorou a vadiagem dos antigos dias, em que o seu pé vivo, forte e ágil, pisara livremente as ruas em corridas ruidosas, em pândegas de boa marca. Na reclusão, os seus dias medidos por ocupações sujeitas a uma tabela e a um horário foram enlutados no tédio e no sentimento da própria inutilidade: levantava-se antes do nascer o Sol com os demais companheiros estremunhados, tiritando do frio que ao longo dos corredores se esfuziava cantando: um sino batia horas acima das abóbadas, e o eco ondulava de cela em cela, como um soluço de uma alma penitente, a quem não perdoam; pelas profundas janela do antigo convento, pedaços de céu faziam manchas lúcidas de espiritualidade inefável, em que o olhar dos pupilos se dilatava com grandes tristezas de oprimdos. Caminhavam formados dois a dois para a capela, à oração da manhã. Depois cada um ia para a sua oficina ou para a aula de estudo. Os rudes prefeitos passavam lúgubres, lívidos e cheios de consumpção, e os seus olhos ferozes corriam sobre as cabeças humildes dos rapazes, curvados sobre os livros ou sobre os trabalhos de oficina. Aos domingos ouviam missa: uma charanga tocava no pátio e os jornais convidavam o público a ir ver o colégio, louvando os desvelos do director e proclamando os resultados da instituição beneficiente. Ali tomou ele próprio, aprendendo a ter asseio, correcção e aprumo; aos dezoito o Ferreira tomou-o para aprendiz; era já uma pessoa cheia de si própria, estatura vantajada, completamente formada, que passara incorruptível no meio viciado do hospício, resistindo aos vícios mórbidos e fatais da caserna, e salvo, numa palavra, da ociosidade e do desprezo de si mesmo.
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´página 59-61

"A Ruiva"

Fialho de Almeida
no volume Contos

Edição Livros de bolso Europa-América

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