quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Em nome da sacrossanta honra da raça,
sem pensarem no facto de que, na cama,
também é preciso amor, jogo e brincadeiras

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O banquete do casamento realizou-se no restaurante Na Cidade de Amesterdão, e de novo via que era verdade que todos bebiam, também, à minha saúde, mas tudo rodava à volta de Lisa e eu comecei a sentir-me cada vez mais relegado para o papel dum mais ou menos suportado, é verdade que ariano mas sempre pequenote checo, embora tivesse cabelo amarelo clarinho, ao peito uma faixa e, na anca, a condecoração em forma de estrela dourada. Todavia, não deixei transparecer nada e, como se não visse, sorria, até me fazia bem pensar que era o marido de uma mulher tão célebre, que todos os oficiais, certamente solteiros, pretenderiam ou poderiam pretender, mas nenhum a conquistara, e tinha sido eu quem a tinha encantado, provavelmente estes soldados não sabiam fazer mais nada senão saltar para cima da mulher, na cama, com botas e tudo, em nome da sacrossanta honra da raça, sem pensarem no facto de que, na cama, também é preciso amor, jogo e brincadeiras, e isso sabia-o eu, que o tinha descoberto, por instinto, há muito tempo, no Éden, quando ornamentei a barriguinha da putinha nua com margaridas e pétalas de azália... e depois, há dois anos, também a barriga desta alemã consciente, desta comandante das enfermeiras militares, desta alta funcionária do partido. Por isso, entre toda esta gente, ninguem conseguiria imaginar aquilo que eu estava a ver: nua e deitada de costas, vou pondo à volta do seu ventre os raminhos verdes de abeto, que ela recebe como uma homenagem, talvez mesmo como homenagem mais valiosa do que aquela em que o magistrado nos apertava, aos dois, as mãos através da bandeira vermelha e nos lamentava porque não podíamos morrer os dois na luta pela Nova Europa, pelo novo homem nacional-socialista. Lisa, vendo que eu sorria, que tinha aceitado o jogo a que tinha sido condenado por aquela cerimónia, pegou no copo e piscou-me o olho, cúmplice, perante os convidados um pouco atónitos com a solenidade desta cerimónia, eu peguei também no meu copo e levantei-me para ficar ainda maior: estávamos de pé, face a face, levantando os nossos copos, os oficiais olhavam e, para verem melhor, arregalavam os olhos, examinavam-nos como se estivéssemos num interrogatório; Lisa riu da mesma maneira como ria quando estávamos juntos, na cama, quando a tratava com cortesia francesa: olhámos um para o outro, como se ela estivesse nua e eu também, e vi a névoa branca que cobria novamente os seus olhos, um olhar turvo que as mulheres têm no momento do abandono, aquele momento em que as mulheres caem mas não é desmaio, em que deitam fora os últimos obstáculos e abrem o caminho para que aconteça tudo o que no momento for oportuno, em que se abre um mundo diferente, o mundo dos jogos amorosos e das carícias... e assim, beijou-me longamente, à frente de todos, eu fechei os olhos, segurávamos os copos com champanhe enquanto nos beijávamos longamente, o vinho escorria devagarinho, sobre a toalha, dos nossos copos inclinados, e todos os convidados se calaram; a partir daquele momento estavam todos como que perplexos, observavam-me com olhos diferentes, até me examinavam atentamente e neste exame verificaram que com o sangue eslavo o sangue germânico goza muito mais do que só com o sangue alemão, e em poucas horas eu tornei-me, é verdade que estrangeiro, mas um estrangeiro que todos, com uma ligeira inveja ou raiva, estimam, mesmo as mulheres me olhavam e como que percrutavam o que provavelmente eu poderia fazer na cama, e com elas. Imaginando, sem dúvida, que eu era capaz de uns jogos especiais ou diabólicos, suspiravam docemente, reviravam os olhos e começaram a conversar, embora me enganasse nos artigos der, die, das eu conversei com todas estas mulheres que, com aquele horrível alemão delas, tiveram que falar comigo devagar, como na primária, a pronunciar lentamente os seus discursos, deliciavam-se com as minhas respostas e chegaram à conclusão que os meus erros de gramática eram um encanto que as fazia rir, que lhes transmitia o sortilégio das planícies eslavas, de bétulas e prados... mas todos os militares, tanto da Wehrmacht como das SS, todos ficaram insensíveis comigo, quase zangados, todos entenderam muito bem como conquistei Lisa, a bela loura que à honra e sangue alemães tinha preferido o amor sensual e belo... contra o qual eles, embora cheios de cruzes de guerra conquistadas nas campanhas da Polónia e da França, eram impotentes...
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, página 138-140

"Eu que servi o Rei de Inglaterra"
Bohumil Hrabal
Tradução de Ludmila Dismanová
Edições Afrontamento

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