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Já havia lido romances marítimos em que apareciam frequentemente mulheres isoladas em navios repletos de homens; mas só nessa altura compreendi que nunca me havia apercebido do significado mais profundo de tal situação -- na qual os escritores insistiam tanto e a qual exploravam tão completamente. Eis o que se verificava agora e eis que eu deparava com essa mesma situação. Para que ela fosse o mais vital possível, bastava apenas que a mulher em causa fosse Maud Brewster, que me encantava agora pessoalmente como me encantara com as suas obras.
Não se poderia imaginar alguém que estivesse mais deslocado do seu ambiente. Era uma criatura delicada, etérea, débil e flexível. de movimentos lento e graciosos. Nunca me dava a impressão de caminhar, ou, pelo menos, de caminhar como os comuns mortais. Possuía extrema ligeireza e movia-se com certa fluidez indefinível, aproximando-se das pessoa como um floco de neve que paira no ar ou como uma ave de asas silenciosas.
(...)
Fazia contraste marcado com Wolf Larsen. Cada um nada era do que o outro era, era tudo o que o outro não era. Uma manhã, vi-os caminhar juntos pelo convés e comparei-os aos extremos opostos da escada da evolução -- um, a culminância de toda a selvajaria, a outra, o produto acabado da civilização mais refinada. É certo que Wolf Larsen possuía intelecto fora do comum, mas dirigido apenas para o exercício dos seus instintos selvagens e fazendo dele um selvagem ainda maior. Era explendidamente musculado, forte, e, embora caminhasse com a certeza e resolução do homem físico, nada havia de pesado no seu andar. A selva e a selvajaria espreitavam no elevar e baixar dos seus pés. Tinha passos de gato e era ágil e forte, sempre forte. Comparava-o a um grande tigre, a um animal de façanhas e de presa. Assemelhava-se a isso, e o clarão que eu já observara nos olhos de leopardos enjaulados e de outros predadores da selva.
Porém, naquele dia, ao vê-los caminhar para cá e para lá, notei que foi ela quem interrompeu o passeio. Vieram até onde me encontrava, à entrada da escada. Embora ela não o denunciasse por qualquer indício exterior, pressenti que estava muito perturbada. Fez um comentário ocioso, olhando para mim, e riu-se com bastante à vontade, mas notei que voltava involuntariamente os olhos para ele, como que fascinada; depois baixou-os, mas não suficientemente depressa para ocultar o terror que os enchia.
Foi nos olhos dele que vi a causa da perturbação dela.
(...)
O terror dela invadiu-me e, naquele momento de medo -- o mais terrível medo que um homem pode ter -- compreendi que ela me era querida, de forma inexprimível. A conciência de que a amava dominou-me juntamente com o terror e, com ambas as emoções a arrepanharem-me o coração e fazendo que o meu sangue esfriasse e, simultaneamentte, corresse tumultuosamente, senti-me arrastado por um poder exterior a mim e para além de mim e notei que os meus olhos tornavam a incidir sobre os de Wolf Larsen, contra minha vontade. Mas ele recompusera-se. A cor dourada e as luzes brilhantes haviam desaparecido. Quando se curvou com brusquidão, para se retirar, já tinha os olhos novamente frios, cinzentos e brilhantes.
-- Tenho medo -- segredou ela, tremendo. -- Tenho tanto medo!
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, páginas 184-186
"O lobo do mar"
Jack London
Edição Livros de bolso Europa-América
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