domingo, 12 de novembro de 2017

Um maluco testa os seus limites até ao ponto de ruptura

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Num Domingo de São Martinho, sem castanhas mas com uma vaquinha reunida entre os vizinhos para comprar um pacote de vinho, ao qual se adicionará acúcar para o vinho virar suminho, disse-lhes eu: «vocês gostam é do suminho eheheh!» e eles respondem: «Sabes?, Mur irmão, é para cortar o amargo deste vinho...» «Sim, eu sei, faz-me lembrar o vinho doce, a primeira tiragem pela torneira do lagar, antes da fermentação, antes até de se pisar as uvas, dá cá uma diarreia eheheh».
De modo que o Benjamim quis saber: «Mur, diz lá, tu outro dia disseste que estiveste hospitalizado, pois eu diria que tu és normal, irmão!»
«Eu pareço normal não pareço?»
«Tu não pareces, tu és!»
«Sim, eu sou normal.» Concedo porque reparo que ele acha estranho eu lhes ter um dia dito que tinha sido internado, sei que eles querem perceber o porquê, porque eu não pareço louco, pareço até o mais calmo e são desta pequena comunidade que se foi formando este ano de 2017, algures na mitológica cidade de Derza, acabo por dizer:
«É complicado explicar, sei que hoje estou bem, mas nem sempre foi assim, a minha sorte foi melhor que a do Giuliani e do Heitor, a família deles abandonou-os, a minha nunca o fez, sei que tenho as minhas culpas, fui uma espécie de agente-provocador, mas sempre que saí do hospital tive o meu pai, a minha mãe e o carro de família para me trazer de volta à casa, isso diz tudo o que é necessário dizer, é tudo o que preciso de reconhecer como nota-testamento de vida, o que os meus pais me deram -- se não foi boa-vida e boa-educação -- foi amor filial, um pai, uma mãe não abandonam a cria e a cria volta sempre pródiga para casa e agradece, agradeço a meus pais o terem-me dado uma cama, comida, roupa limpa, um tecto para dormir, uma anexo para desenvolver o meu passatempo que começara a germinar, se eu não tivesse tido esta necessidade básica da vida resolvida pelas pessoas que mais sofreram com a explosão da minha cabeça, eu certamente morreria na rua como sem-abrigo ou na prisão com a cabeça aberta, se eu não pudesse, caso os meus pais não me dessem abrigo, alugar um quarto... eu na rua estaria desgraçado, teria fome e iria roubar um pão?... levavam-me para uma prisão com presos comuns e eu não passaria da primeira noite, chegaria lá dentro, pôr-me-ia a espingardar com um maioral e tratar-me-iam do sebo!... acredita.»
«Sim, irmão, mas... o que eu gosto em ti é tu és tão calmo, não procuras confusão, pareces um buda, que...»
«... que não pareço gajo maluco, não é? Olha que te digo, que um maluco não é idiota, um maluco sabe quando parar, por exemplo, uma vez evitei que me fodessem o corpo, levantei o braço e disse 'tens razão, desculpa, eu errei, vou-me embora', e eles, sorte a minha que repararam que eu estava alterado, eles recuaram quando já se formavam neles as mesmas chispas assassinas que devolvi do meu olhar a um gajo que estava comigo a assistir ao concerto do Iggy Pop em Coimbra, na Queima das Fitas em '94, porque eu me lembro do meu olhar nesse concerto que procurava uma eventual vítima para uma bulha, também eu nesse olhar a formar-se neles reparei, levantei a mão, pedi desculpa e vim-me embora, por isso tive a consciência de que se continuasse a provocar iria sair mal e magoado da bulha, por isso um maluco não é um idiota!»
«Sim, é do caralho!, tu tens consciência do que fazes mas isso só prova que não és maluco, irmão acorda!»
E eu pensei, tenho de lhe contar algo de verdadeiro que o faça perceber porque eu próprio me considero um maluco-lúcido, então digo-lhes:
«Uma vez fiz de cicerone de um amigo imaginário, e passei pela noite dentro na cidade de Triza, de cabeça pregada no chão e só a levantando para dizer ao meu amigo que ia a meu lado e não existia nem como fantasma e quem me visse só viria um gajo a falar sózinho e parar numa casa e dizer alto '... e então aqui no ano de '93 morei e estive com estas pessoas e aconteceu isto e aquilo...', é claro que eu sabia que o meu amigo imaginário não existia, era eu que estava a representar uma peça de teatro em directo para o mundo, as estrelas, a lama e o azul escuro do céu eram a minha audiência.»
De modo que eles ficaram pasmados, e eu pedi um pouco de vinho, senti-me emocionado ao falar e quando falo com emoção sinto a garganta a ficar seca, e só ouvia o Benjamin a dizer com o seu sotaque angolano: «é do caralho essa história irmão!»
«Mas há mais irmão Ben!, houve uma altura em que eu e um amigo estávamos na fase de roubarmos bicicletas, passámos num bairro social e roubámos uma bicicleta...»
«Oh, isso é coisa má irmão...»
«Sim eu sei!, e deu problemas porque eu fui reconhecido um dia num café ao qual fui com a bicicleta e o dono confrontou-me e eu devolvi a bicicleta e fui-me embora, não me aconteceu nada e o meu amigo mais tarde foi lá explicar-se em meu nome e saber de eventuais novidades ou se o assunto morreria ali. E morreu ali. Até que eu o desenterrei nessa viagem que já te falei pela noite a dentro em Triza, até à hora do primeiro comboio de volta à Derza, cheguei nesse Domingo a Derza e liguei a televisão no quarto, e observei que passavam um especial em directo na cidade de Triza, o jornal falava de teatro, é estranho, num tempo em que ainda não havia internet e tecnologia e redes sociais era como se a televisão e os jornais comentassem a minha viagem de véspera a Triza, é muito estranho... mas dizia-te desenterrei nessa noite o caso das bicicletas roubadas porque ao fazer a minha caminhada nocturna entrei no tal bairro social, primeiro olhei para o chão e disse alto 'encontrei uma pedrinha, vou já fumá-la!', e depois disse 'oh é merda é apenas um calhau de merda', e continuei a avançar, seria meia-noite, via-se pessoas reunidas no café do bairro, cá fora a fumarem, eu não olhava para eles mas sabia que eles olhavam para mim, então cheguei ao sítio das bicicletas e disse alto ao meu amigo imaginário ' e aqui no ano de '95 roubei uma bicicleta' e continuei a andar, diz lá que isto não é de maluco! Um gajo entra num local cheio de gente e começa a dizer que os roubou, é mesmo não ter amor à vida, e eu na altura não me importaria de morrer, mas não... para te provar que não sou um total idiota e apenas um maluco lúcido que se reformou da vida de merda... pois eu digo-te que bastou ter pressentido ou mesmo ouvido dizerem não sei se para mim ou não 'está a pisar a linha!', para eu ter virado costas ao local de bicicletas, ter seguido em frente sem falar, e a ouvir enquanto me afastava as vozes a silenciarem-se ao fundo, no fundo o que te digo é que um maluco testa os seus limites até ao ponto de ruptura, às vezes até ao colapso, compreendes agora, Benjamim?»
«Sim, agora te compreendo irmão, fumemos!»
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Claudio Mur




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