sábado, 17 de fevereiro de 2018

Neste abrigo nada se perde, tudo se encontra

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-- Havias de ter visto... ontem parecia um circo.
-- Um circo, então porquê?
-- Não encontro a meia, onde está a meia?
-- Vê ao fundo da cama, nas prateleiras...
-- Ah, Giuliani, procura as meias, este homem põe-me fora do sério...

Quem assim fala é a Bidente, o Giuliani e eu. Estamos na Casa 4, o Giuliani procura a meia branca de algodão que a Bidente lhe deu. Tem a outra na mão. A cama ocupa o quarto todo, à volta uma parede onde estão as fotocópias de quadros de pintores famosos e uma fotografia de Giuliani personificando Cristo na cruz durante uma procissão pascal, outra parede com armários e livros e outra parede com uma estante onde está o rádio e alguns retratos e caricaturas que um amigo do Giuliani lhe faz. «Olha aqui esta do Guevara, está fixe não está? As pessoas não dão nada por ele, dizem que ele é maluco, mas olha está fixe, quero ver se encaixilho.» Disse-me isto no outro dia, agora procura a meia junto à entrada do quarto-cama, procura por baixo da cortina.
-- Olha, debaixo da cama. Diz a Bidente.
-- Não está, a cama não tem fundo. Ó Mur, queres fazer um charrinho?
-- Está bem, tens uma mortalha grande? Não, pronto, eu uso duas das minhas e faço um l. Mas ó Bi, 'tavas a dizer que ontem foi um circo eheheh, atão porquê?
-- Tudo começou porque o bacalhau à espanhola estava uma merda, o mastodonte passou-se, o bacalhau estava duro e sabes que a Bi não tem papas na língua... Diz o Giuliani.
-- Ihihih até já lhe tinha chamado de fascista, ele ficou pior que estragado. 
-- Mas eu fiz-lhe frente, diz o Giuliani, ele sabe que não pode abusar, se não quiser que vá morar para os palácios que diz que a família tem.
-- E eu ajudei, meti-me à frente como um cento e doze, eu sou assim, estou tão orgulhosa do Giu... foi uma cenas de ciúmes na verdade, o mastodonte viu que o Giu me pôs a mão na cintura e passou-se, deu um chapo ao Giu e o Giu rispostou com um soco, eu meti-me à frente, o mastodonte chama às gajas de vacas, ele quando me punha a manápula eu tinha medo, tenho medo dele, ando há uma semana a dizer-lhe para ir ao hospital levar com o decanoato no cu...
-- É isso mesmo Giuliani, ele tem que saber que há limites, fizeste bem, tens de te defender.
-- Ele não paga nada, queria que a Bi lhe pagasse a ele, quem pensa ele que é?, as coisas mudaram, sinto-me bem, o Benjamim ensinou-me, foi ele quem me defendeu no Verão quando o Luis se passou, na altura tive medo, ele andava a dizer que a casa era dele, até queria alugar a Casa 4 e a 5, partiu-me a clavícula e eu fui amigo dele. retirei duas queixas, ele ontem passou-se e depois pôs a Bi fora da 3, e ela veio práqui, prá minha beira, estou tão feliz...
-- Só não consegues encontrar a meia, não te arranjo mais meias!, ah eu não posso viver aqui, passo-me com a falta de higiene, eu vi um anúncio perto do albergue, amanhã tiro o número...
-- Calça já essa para não a perderes... digo eu. Viro-me para a Bidente e continuo: -- Não Bi, não precisas de te ir embora, só precisam vocês os três, tu, o Giuliani e o Rui de arranjar maneiras de todos contribuirem para o bem-estar desta casa, por exemplo, tu tratares da limpeza, o Rui ir buscar água, o Giuliani... não sei, mas vocês são muito taralhoucos, já no tempo do Speed e do Ben as meias desapareciam eheheh mas na altura a culpa era do cão, agora não sei é preciso ter mais paciência...
-- Ah este homem tira-me do sério.
Eu vejo o Giuliani com um cigarro numa mão, a outra a levantar a cortina e a procurar no chão entre a cama e a parede com a prateleira do rádio. Ele está stressado porque não tem mais cigarros e quer ir comprar. Faz tenção de calçar os sapatos sem meias e, quando pega num deles, embate no aquecedor que se vira e danifica, parte-se uma das três varetas eléctricas e os vidros caem ao chão.
-- Cuidado Giuliani, olha os vidros, cuidado com os pés.
-- Olha encontrei, vou calçar esta.
Vejo-o calçar uma meia azul, a meia desirmanada que ele procurava era branca. Vejo e a Bi não porque está na sala, mas eu não digo nada senão ela irrita-se, ela diz que o Giuliani tem cultura mas está a ficar primitivo. É um pouco verdade, às vezes penso que o Giuliani se desleixa com a saúde, penso não, desleixa-se mesmo, perdeu a medicação pós-operatória há dois meses atrás, a gente até pensou que alguém a roubasse para ir vender no mercado negro mas, afinal, foi encontrada um mês depois ao fundo da cama, o problema é que o problema de pele, ao qual tinha sido operado, passou~lhe para a orelha, agora alastrou para a cara, porque ele não tomou os antibióticos na altura certa, vá-lá que houve um enfermeiro na Caixa que lhe fez um penso a cobrir a cara toda, assim ele não vai lá coçar o pus.
Agora já ele calçou os sapatos, faz ideias de ir ao café buscar o tabaco.
-- Espera aí Giu, olha o charro, fuma um pouco, acalma um pouco, relaxa.
Entretanto o Rui entra em casa, estamos todos a mudar a nossa opinião acerca dele, está a fazer-se à vida, arranjaram-lhe um curso de formação num centro textil, três dias por semana, subsídio de almoço e de deslocação, são mais algumas dezenas de euros por mês, está contente, a Bidente aproveita para me contar que o Luis quando a expulsou da Casa 3 convidou o Rui para jantar.
-- Sentiu-se sozinho ihihih.
O Riu ri-se monocórdico: -- Ah a conversa dele, só filmes, esteve no Afeganistão como sniper, matou o terrorista, apanhou o avião para casa, aterrou no lago e ainda acordou antes de nós, só filmes...
-- E quando ele disse que foi a Madchester... ouviram bem, a Madchester tocar quatro horas e meia no concerto de solidariedade ihihih. Ri-se a Bidente.
-- Bem, Bi, sabes o que eu acho, tu estavas a dormir com o inimigo, tu dormias a dois metros do colchão dele, a imaginação dele cresceu, o teu sofá estava mesmo ali pertinho...
-- Não, ele não era inimigo, ele não toma, é, os comprimidos, qualquer dia está aqui a polícia para vir buscá-lo para o acompanhar ao hospital. Mas ele, às vezes, até era fixe, tínhamos conversas interessantes, falávamos sobre sexo...
-- Atão claro, interrompi eu, é o que eu digo, a dormir com o inimigo, é natural, a imaginação cresceu, cresceu.
Repito e faço um pouco de silêncio dramático para que ela perceba que além de ter crescido a imaginação também cresceu mais qualquer coisa ao mastodonte. O efeito na Bidente foi tão grande que ela disse:
-- De facto, tens razão, eu andava mesmo a dormir com um inimigo, ah aquelas manápulas...
-- Olha, vou-vos dizer uma coisa, vocês não se passem com ele, mas o Giuliani não foi sem meias ao café, ele calçou uma branca e uma azul, vá lá, tenham paciência, não lhe fodam a cabeça, a meia aparece. Levem na desportiva. Riam-se apenas, dormirão melhor.
Começo a fazer outro charro quando Giuliani chega. Senta-se em cima da cama em frente a mim que estou na sala, sentado na poltrona de executivo que encontraram no lixo. A Bidente e o Rui estão ao meu lado sentados em bancos. A Bidente repara na cor das meias quando ele passa e ri-se para mim. O Giuliani tira os sapatos e mostra o saco com os novos sapatos que um amigo do café acaba de lhe oferecer, estende-se ao comprido, puxa de mais um cigarro, mete-o na boca, procura o isqueiro.
-- Onde está o isqueiro, alguém viu o meu isqueiro vermelho?
-- Este é meu, diz o Rui.
Giuliani leva a mão ao bolso e, surpreso, olha para mim. Eu olho para a mão dele e vejo que ele tem a meia branca, aquela que faltava, na mão. Desato a rir:
-- Ahahahah olhem, o Giuliani andava à procura do isqueiro, meteu a mão no bolso e encontrou a meia ahahah o Giuliani é o maior.
-- Eu sou mágico, neste abrigo nada se perde, tudo se encontra.

Agora só falta encontrar o isqueiro mas agora vou-me rir até adormecer. O riso é terapêutico
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Claudio Mur

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