terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Um pintor de cavanhaque

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Eu, Mur, me pergunto: escrever, escrever porquê, escrever para quê?, eu que não sou, não me considero escritor pergunto porque ainda escrevo textos. E porque digo que não sou escritor se até tenho já cinco livros editados em papel e encadernados pela minha própria casa e três já disponíveis em pdf no archive-ponto-org? É assim tão diferente a minha situação daqueles que escrevem para a gaveta?, não escrevo eu para a gaveta também? E porque escrevo eu para a gaveta? Há muito tempo, enviei para uma editora uma encadernação em papel A4 do que pensava ser o meu primeiro livro acabado e eles responderam dizendo que a obra era original e que a editariam se eu pagasse na altura quinhentos euros pela edição de três mil exemplares, eu telefonei para lá dizendo que não tinha esse dinheiro e eles sugeriram que eu arranjasse patrocínios, eu desinteressei-me, fiquei a pensar que aquilo não era uma editora e era mais uma tipografia, foi também numa altura em que eu estava mal psico e fisiologicamente, abandonei mesmo o livro, deixei-o de lado, mas as palavras não me largaram, não descolaram da memória, tornaram-se fantasmas, o que era verdade tornou-se ficção por não haver testemunho e o que era ficção saltou da campa para me abismar, coisas mal resolvidas que se iam diluindo em quadros como gritos pincelados a partir de ideias navegadas entre a memória e o meio-ambiente, ia tentando arranjar um emprego quando sentia que nada de útil sabia fazer, o stress era diário, todos os dias caminhava meia-hora até ao cibercafé para ver se havia propostas de entrevista no email e quando uma aparecia eu ia e eles olhavam para mim e diziam que depois ligavam, a medicação deixava-me em estado rigído com os nervos e músculos atrofiados, descer escadas sem mexer a cabeça seria mais fácil a um aleijado do que a mim, ele já estaria treinado para esforços físicos, eu era novo ainda mas parecia um inválido, pensei que uma editora queria simplesmente ganhar dinheiro à minha custa. Verifiquei que se pagasse eles editariam um livro cheio de erros ortográficos e gralhas não pretendidas. Escrever por isso para quê? Para que algo bem feito, algo de bom se transmita, algo faça o mundo girar em certa direcção, escrever para criar um lóbi, escrever para ter dinheiro nos bolsos, para ter cem mil amig@s na conta do face mandando beijinhos e forças e abraços? Porque escrevo eu em primeiro lugar?, sei porque escrevi no passado, escrevi para me libertar do que estava mal dentro de mim, daquilo que era errado fazer, escrevi talvez para contar uma história de como um gajo pode andar a vida inteira sem nunca perceber o que anda cá a fazer, a espécie de confissão de um Dostoievski louco e não epiléptico, se anda cá para agradar aos outros já que ninguém nos agrada, há um grau de paranóia no mundo em que eu vivo, será que eu vivo?, será que me respeitam será que eu respeito os outros?, a comunicação é dolorosa, faz-se de quase-agressões a todo o momento, coisas que ficam no ar quase-ditas, os olhos que as pessoas fazem e o significado que imagino nesses olhos, as pessoas limitam-se a ganhar o seu e a afastar quem lhes pode causar problemas, escrever, escrever, escrever a agressão diária?, escrever que estive duas horas e meia no centro de saúde e vi a médica sair para ir tomar café e voltar e meter à minha frente um ou mais doentes para depois me dizer que se era para pedir uma receita podia ter feito um pedido por escrito?, escrever o que está mal no mundo, escrever para quê?, vai a médica mudar o seu modo de atender os doentes?, vai ao menos dizer-lhe boa tarde quando ele entra no seu gabinete?, não, vai fazer tudo igual no dia seguinte e ainda queixar-se que tem muito trabalho, escrever talvez que lhe disse que a última consulta tinha sido há seis meses, escrever que lhe dei a entender que o seu trabalho não vale nada assim, deverei eu estar a cair de morto para aí se preocuparem comigo, escrever que saí de lá com fúrias e que  por causa da fúria quase tratei mal uma mãe cigana, vestida de preto que trazia o filho à consulta marcada para uma hora à qual eu ainda não tinha sido atendido, escrever que a funcionarária em atendimento usou a minha fúria para dizer à mãe cigana que ainda teria de esperar mais, e que por causa disto não consigo descansar, é por isso que escrevo, escrevo para ver se a ansiedade me deixa dormir, escrever um livro do ressabiado, dizer os males que me fazem, escrever que me quiseram publicar um livro que estava cheio de erros ortográficos, será que o leram, será que ia haver um revisor de texto, será que um editor não se preocupa com a qualidade do que publica, ou são tudo sociedades anónimas onde o editor se descarta e remete para o autor a responsabilidade?, eu fui revisor do meu próprio texto e ainda hoje encontro erros, gralhas nos pdf online, eu quis ser tudo e a tarefa é grande demais para uma só pessoa, mas lá está ninguém se interessou e eu também me desinteressei, não procurei outros editores, não conheço muitos, não tenho amigos no meio, e os amigos publicam os amigos, eu não sou escritor, eu sou um escrevedor, quem é escritor é o meu vizinho Giuliani, mais velho que eu quase vinte anos, esse sim, sempre de livros e cadernos e esferográficas na mão, sempre a escrever poemas, eu à beira dele não posso ser escritor, não levo vida de escritor, a minha vida de escritor resume-se a dois ou três anos do meu passado, refere-se à passagem da universidade para o hospital passando por um período de emprego, foi nessa altura que mais escrevi, também eu andava entre casa e o café com livros na mão, ia ler e fumar para o café, a lei do tabaco acabou com a minha vida de café e o tempo em que eu ia ler para o Armenia Bar às três da manhã já é apenas uma memória selectiva, não foi só a lei do tabaco, foi também o aparecimento de um quase-sósia no café, Claudio como eu entrando de livro debaixo do braço, mas ele todos os dias trazia um diferente, parecia ser o seu objecto equivalente a uma mala de senhora, nunca falava do livro «que andava a ler», anos mais tarde faliu uma imobiliária, cansei-me, cansei-me de escrever e de andar com molesquines, só durante surtos psicóticos posteriores no que chamei as cartas-bomba a escrita voltou, tornou-se epistolar, agora, escrever é rever todo esse caos e o modo como eu me conjugo agora com o caos, o mundo, a selva, como eu dou um sentido ao dia-a-dia, as ligações que vou fazendo. O Giuliani tem isso tudo também, à maneira dele, e também ele está bloqueado num período do seu passado, o tempo que passou em Angola, o boi-cola que ia comprar aos musseques, os palácios dos pais dos amigos que visitava e com quem acampava no Mussulo, também ele tem saudades de um idílio que não voltará, eu talvez já me tenha desinteressado de ter saudades, poucas pessoas ficaram desse passado, com poucas tenho contacto e não é difícil esquecer-me até das caras das pessoas, um amigo com quem não falo há quase três anos trabalha agora como segurança no centro de saúde, passei por ele e não o vi da primeira vez, eu esqueço-me das pessoas, vou vivendo o dia com a comunidade, aprendendo histórias, uma ou outra lição de vida com o Giuliani, fiquei a perceber que há famílias bem piores que a minha, eu que me queixo de indiferença e falta de amor... não posso senão concordar que a família do Giuliani o trata bem pior, contou-me que o quiseram interditar, pô-lo debaixo de um tutor tinha ele já mais de trinta  anos, chegou mesmo a ser internado e a receber tratamento de electrochoques na Casa Rosa, isto em 1984, por causa de um charro, por causa de fumar ganza, a família pô-lo fora de casa, deixou de lhe dar dinheiro, preencheu-lhe os papéis para uma reforma de invalidez e obrigou-o a assinar a sua condenação à indigência, deu-lhe três casas devolutas com telhado, a irmã desloca-se do seu palácio para visitar o outro irmão internado-para-sempre na Casa Rosa e nem uma visita de cortesia ao Giuliani lhe faz!, eu ouço ele contar tudo isto e depois pergunto a mim próprio porque me queixo de as minhas irmãs quase não me telefonarem, da minha mãe me ligar uma vez por semana, do meu pai mal me dirigir a palavra, o pai do Giuliani deixou de lhe dar brinquedos aos seis anos porque ele espatifou um carrinho de brincar... tirando todo o exagero, a minha história é pequena em comparação com a de Giuliani, ele vende uma encadernação A4 a preto e branco de um livro seu por vinte euros, os meus textos pouco valor têm em comparação, há muito que tenho dificuldade em escrever, há muito que descobri que prefiro pintar imagens, há muito que deixei de querer ser tudo, sou apenas um pintor de cavanhaque que foi vêr a exposição da Mariza Merz a Serralves.
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Claudio Mur




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