quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

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Barthelme, João Ubaldo Ribeiro, Diogo Vaz Pinto e Alface por Teresa Carvalho

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Ontem à tarde, encontro o Rui na Casa 4, ou melhor, o Rui encontra-me na sua própria casa. eu estava a ajudar o Giuliani a colar na parede do seu quarto impressões em papel formato A3 de quadros de piintores para os quais estou a fazer algumas versões. Aproveitei para fotografar Giuliani, talvez o venha a pintar, tenho ideias de fazer composições em tela dos meus vizinhos. O Rui que anda longe e só chega noite dentro para dormir, entra e, cheio de alegria, cumprimenta-me, a Bidente vem atrás porque lhe cheirou à ganza do Giuliani e com grande lata-de-pau pois, uma hora antes, ela tinha-lhe dito, à frente de todos nós, que ele causava mau ambiente, foi aí que ele, Giuliani, me convidou para irmos para a casa ao lado. Mas, na realidade, a Bidente sentiu-se só, entrou e disse «o mastodonte está a dormir.» Ora, compreendi eu «a dormir o mastodonte, como tu lhe chamas, não representa besigol...» mas fiz por lhe sacar à socapa uma foto e ela, zangada ou surpresa com a audácia, ordenou-me, é quase o termo para o seu tom de voz, ordenou-me que ligasse o cilindro para ela tomar banho e eu respondi-lhe que só Domingo próximo. Como o Giuliani me fez sinal, disse à Bidente que queria falar a sós com Giuliani, foi uma espécie de chamada à ordem, afinal, ela parece putativamente a nova mandona em duas casas ocupadas e está a querer tomar banho duas vezes por semana no meu polivan, pensando talvez que o meu alojamento é um hotel com electricidade de graça. Por isso e como ela estava feita estátua em mármore, apliquei-lhe a taxa turística e repeti-lhe se não se importava de abandonar a Casa 4 para eu ter umas palavras com Giuliani. Para a compensar da sua descida à realidade e, também para poupar ao Rui e ao Giuliani a ida ao fontanário para recolher bidões de água, disse que lhes arranjaria a água eu-próprio. 
Eles vêm comigo buscá-la, eu trago o casaco que troquei com o Giuliani e com o qual agora já não vou passar frio e ao mesmo tempo melhorar a minha aparência em público, quando sair do buraco e me tornar mais apetecível aos olhares femininos, Valha-me Cão, foi assim que gastei o dinheiro do último quadro que vendi: dois pares de calças de ganga em saldo, um casaco comprido em terceira mão, um almoço no restaurante à patrão e o sinal de entrada (metade do valor) para três molduras em caixa alta de madeira, uma nova tela para pintar «O circo de amigos» a partir de Chagall. Fiquei com trinta euros para comprar comida e tabaco. Ainda assim, o vício da literatura tentou-me e pensei em comprar «A casa dos budas ditosos» de João Ubaldo Ribeiro, lembrei-me da tesão que a sua leitura parcial me deu há anos numa noite surrealista numa livraria-galeria, entretanto já falida, onde vi o livro à venda pela última vez. O vício deste livro tentou-me uma vez mais, mas ainda não foi desta.

Oito horas da noite, não me apetece demorar muito tempo na cozinha, arranjo três sandes de pão-de-forma com duas fatias de queijo, uma de mortadela, um bom pedaço de omolete e duas salsichas grelhadas, ponho o café de saco a ferver, tomo a medicação rotineira e lembro-me que o Rui não tem aparecido em casa a horas decentes porque não tem quem lhe cozinhe o jantar, a Bidente anda sempre a mandar bocas dizendo ao Giuliani para o põr debaixo da ponte, e eu tenho pena do Rui porque ele é esquizofrénico como eu, aliás como muitos nesta comunidade e todos, mesmo a Bidente, já passámos pelo sistema hospitalar, o Rui é como eu, como a Bidente, como o Giuliani, como o Luis, como o amigo Dário saído há um mês da Casa Rosa onde esteve noves meses em tratamento a uma psicose tóxica e enquanto a assistente social não lhe arranjou um quarto, todos fumamos e alguns tomam metadona, alguns recebem uma injecção quinzenal intra-muscular na nádega, e eu sei que o Rui não jantou, a Bidente não cozinha para ele, aliás, tenho sérias dúvidas de que saiba cozinhar, uma vez de passagem em casa deles reparei que ela perguntou ao repatriado Benjamim como se cortavam batatas para fritar, o Luis também se desenrasca mas era Ben que cozinhava para todos, agora que ele se foi embora ninguém cozinha de tacho, comem o que a associação de caridade lhes oferece: sandes, iogurtes fora de prazo, sopas e fios de ovos, bolos de creme e pão de sementes, «... se ao menos dessem carne e sacos de arroz e massa, agora doces e guloseimas...». Nada disto chega à boca do Rui, ela não deixa, ela que rouba brincos nas lojas dos chineses está obcecada e diz que ele lhe roubou o topo-de-gama, ela quer ver o Rui fora da casa, casa!, um abrigo, não passa de um abrigo com telhado!. e eu penso a meio da minha segunda sandes mista: «vou-lhe ligar e dizer para vir aqui.»
Ele chega e eu pergunto-lhe se já comeu e ele diz que não, ofereço-lhe uma sandes, arranjo-lhe um iogurte líquido para ele não se empanturrar, verto a cafeteira para duas canecas e preparo um dos charros que o Giuliani me arranjou. É ai que Rui me diz que o seu jantar costuma ser duas sandes mistas e uma cerveja no café onde tem conta mensal, paga quando recebe a reforma, paga cinquenta euros ao Giuliani por um colchão numa casa sem porta, sem água, sem luz e sem comida, compra tabaco barato ao Adriano e fica sem dinheiro dois dias depois. Digo-lhe para nunca deixar de pagar ao Giuliani todos os meses: «tu não arranjas mais barato e em nenhum quarto tens comida grátis, a tua reforma tal como a minha é pequena, mas nunca te esqueças de pagar, isso é uma garantia para que não te obriguem a sair, sabes que a Bidente manda mais ou menos no Giuliani, ela não gosta de ti...»
Rui pergunta-me o que estou a ler e eu digo-lhe que é um livro de Donald Barthelme e falo-lhe das histórias absurdas e sem sentido, dou um exemplo: « eh pá, uma história é uma gajo a falar, começo a ler e leio um gajo a falar, um monólogo ao longo das frases, depois começo a reparar que ele está a falar para dois amigos que de vez em quando vão também falando com inserções de parágrafos em calão acerca da vida familiar, e depois reparo que eles estão num carro a falar, conduzem um carro e conversam a caminho de algum lado, eles falam do caso em que um deles foi abandonado pela mulher que partiu para o estrangeiro num avião, alguns calam e lembram na sua memória o seu caso semelhante acontecido anos antes, depois viram-se para o defunto e dizem que não acreditam nele!»
«Não acreditam nele?!» diz Rui. «Conta lá isso melhor, Mur?»
«Dizem que ele não está a contar os pormenores, dizem que falta emoção e que ele está a mentir, que não está a contar que roupa vestia ela, o que jantaram juntos pela última vez, a frase fatal, etc. sei lá, e depois a história acaba com eles saindo, acho que, numa estação de serviço e dando-lhe uma carga de porrada eheheh, é absurdo!»
Despeço-mo do Rui e venho ler para o quarto, leio mais uma história e decido fazer o último finex, abro o email e vejo uma nova mensagem de uma livraria em Derza, faço planos de ir lá amanhã gastar os meus últimos euros e comprar «Ultimato» de Diogo Vaz Pinto e «Alface. Levantar as saias ao Diabo», dois livros da editora Maldoror. O que vale é que dia 8 recebo a reforma.
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Claudio Mur

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