quinta-feira, 28 de novembro de 2019

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Terror e medo



Em «Dormir ao sol» de Bioy Casares, no Instituto Frenopático trocam-se por transplante sem anestesia de um cão para um paciente as glâdulas pineais, onde dizem estar a alma, de modo a restaurar a sanidade mental.

Em «O alienista» de Machado de Assis, o médico interna toda a gente que lhe parece ter um desiquilibrio mental, depois liberta toda a gente porque a Casa Verde contém já quatro quintos da população da cidade, depois chega à conclusão que todos são loucos e interna os sãos que só liberta quando os vê fazer alguma manigância desiquilibradora, e, por fim, interna-se a si mesmo passando a ser o único paciente.

Há uns anos, vi um filme «de terror» inspirado no trabalho de um médico húngaro dos anos 10 dentro do seu hospital.

Choro de medo com as atrocidades que os doentes sofriam.
Os meus problemas são tão pequenos quando comparados com os de outros.

Que fazer quando queres ajudar e ninguém liga ao que dizes?
Fazer como o passageiro que vinha a meu lado um dia num avião: acabar um livro e começar outro no mesmo vôo, no mesmo dia, na mesma noite, agora mesmo.

Combater o tédio, precisa-se e procura-se.

domingo, 24 de novembro de 2019

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Haxixe ou porque a morte é a morte

Hashish or because death is death
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Engraçado... mas assim que o meu erro foi julgado pelas autoridades responsáveis num tribunal, considerado culpado e a culpa finalmente admitida pela minha consciência moral, comecei a escrever com mais pormenor, revelando pormenores de verdade escondidos dentro de outros pormenores, revelando outras histórias. Percebi que tinha chegado a esta ânsia de destruição após a violência sofrida e cometida, causada por uma sucessão de eventos criados por mim.
Tudo estará correcto se lermos a fórmula: uma vez escolhido não há arrependimento possível e, mesmo que haja culpa, é seguir até ao fim, são as fugas para a frente, não gostaria de lhes chamar coincidências.
É como se tivesse pedido um destino para que o motor da vida pudesse arrancar em mim. A ambição de atingir esse destino tornou-se a razão principal de existir acompanhando o acto cada vez mais solitário de fumar ganza. Sim, prefiro cada vez mais fumar ganza sozinho. Porquê? Porque os vizinhos voltaram à poeira e porque a ganza me torna introspectivo sem precisar de pessoas, põe-me a ler, a escrever e a dormir bem. a ganza é um meio, a poeira é um fim que recuso.
Há muitos suportes, desde o inicial utilizado para responder no oitavo ano: e agora que vais seguir? Pensei ser piloto de automóveis. Tantos suportes, tantos quantos a minha memória pode alcançar até à experimentação de outros ambientes, alguns reflexos e novas experiências desenvolvendo-se num imenso livro cinzento.
Por isso, preencho as folhas em branco do livro com análises sociais ao dia, ao ainda nosso dia, o que fizemos, que apontamentos tirámos, com quem falámos, as pessoas que passam, aos cafés que se pedem, aos cigarros que elas fumam... é ou não correcto falar em aquisição e percepção de realidade e assumir percorrer um caminho pela simples observação do dia a dia? Reparar, por exemplo, que todos os dias nos levantamos na hora exacta para ir às aulas ou para o trabalho, a seguir almoçamos qualquer coisa na cantina. Depois, tomamos café ou bebemos água das pedras, voltamos ao fim da tarde para o café, para a sopa ou para casa, compramos pão e leite ou o jornal e tudo... tudo isto reparar. Mais vida têm os mendigos e os bandidos.
A monotonia torna assim necessária a existência de outros meios para o suporte deste destino e aqui pergunto-me se os meios são o ponto duplo de escape ou são o suporte uno desse destino, o destino, a consequência da ambição que surgiu quando me interessei por diagramas de circuitos eléctricos muito simples, por exemplo, duas pilhas em série com uma lâmpada e um interruptor, mal sabia eu que iria aprender muita teoria para nada.
A monotonia torna-o evidente: estou errado. Será só para disfarçar ou tentar resolver a monotonia que fico pensativo quando me falam e chego até a pensar em partir para os mares, mas a idade do voluntariado para a marinha já passou e, por isso, é mais um apetite sonhado para um futuro. Nessa ocasião, pensei que seria um bom meio de começar um novo destino ou uma nova rota ou uma nova ambição nascida de um nada ou, então se tudo fosse estéril, uma longa pausa de reflexão. Sempre me achei diferente, também já me disseram que eu parecia alemão, desde cedo quis fugir de casa mas, da primeira vez com doze anos, cheguei ao fim da bouça, sentei-me numa pedra e pensei: e agora... vou pra onde?
O meio escolhido de prolongar este sentimento, quase cristão mas invertido nos valores e, se calhar, aqui o deus é o mal, quem se importa?, eu não, é o acto solitario e rebelde. Torna-se evidente, real e verídico pela imaginação Dele, que este ritual é o ninho de muitas influências surreais que se poderão desenvolver, criar algo de rebelde. E porquê esta sublimação usando haxixe? Porquê esta necessidade de rebelião? Porque acho que ninguém gosta de levar porrada da autoridade só porque no seu tempo a autoridade levou porrada. As crianças deveriam ser amadas e não postas no mundo só porque o mundo precisa de trabalhadores contributivos e obedientes ao pregador. A ganza é o meu tempo de qualidade.
Procurar o destino e lutar por Ele e, com essa finalidade, tudo ser retirado ou congelado do caminho para que não possa intervir mas apenas assistir à minha chegada aos degraus dessa escada afixa como um símbolo... como se me tivessem de adorar. Ilusões de um gajo que está permeável aos sentimentos totalitários. Tenho de os combater mas tenho primeiro de os perceber. Tudo não passa de um meio de atingir esse fim por modos meio monótonos, esse fim que nunca se sabe bem qual é agora e, depois, subir ao ultimo degrau e encontrar a plataforma, ver o que estará para lá, em Lá? Talvez a eternidade de algo de tão cristão que não conhecemos, foi-nos incutido na escola primária, ouvimos dizer, bem, se não está ligado à morte, então não sei. Que haverá para lá desse último degrau? Ninguém sabe mas muita gente se pergunta ou prega, chamem-lhes talvez de esotéricos, é talvez mais correcto.
Tento imaginar esse momento de morte, esse cenário ou a minha proposta para um cenário: ao longe, o recorte de uma montanha durante o período lunar que vai sendo iluminada por uma linha amarela levemente (des)horizontal, uma linha de luz criada pelos carros que vão passando. Vejo as estrelas e procuro encontrar a estrela Polar mas apenas porque não consigo dormir. Mas, logo a seguir, tudo muda porém, o sol brilha e uma escada levanta-se ao fim da tarde na encosta de terra cavada, porque andaram a desbastar pinheiros ou a incendiar a rama das batatas.
Será esta imagem sem sentido a imagem decisiva da percepção do símbolo destino? Mas qual imagem? A de ser novo e não conseguir dormir ou a de que deveria ter sido agricultor como o falecido pai desejava ou a de que me poderia ter tornado um incendiário? Nunca existirá uma imagem final, eu sou um cão que ladra mas não morde, nunca pintarei o retrato definitivo, as palavras, as maldições proferidas como ameaça tiram qualquer valor, as opções reduzindo a um eterno círculo... em degrau descendente.
Também não sei porquê mas lembro-me de que simplesmente a morte é a morte. Tambem não sei porquê mas lembro-me que se existem meios e tantos suportes, tantos destinos, os deve haver igualmente para provocar a morte ou o desgosto, a propria morte. Muitas das minhas horas são ocupadas no meu acto rebelde de fumar, ouvir música e remoer as ofensas que nunca farei às pessoas que me ofendem. Remoo tudo porque muitas vezes essas ofensas recebidas são quase por distracção, sai-lhes a mão para a cleptocracia quando perguntam que livro ando a ler e se não me ponho a pau, o livro servir-lhes-á de meio de troca por uma esmola. Por isso, sou solitário, prefiro a solidão e prefiro estar sozinho, é raro sair à noite, tudo me é estranho e, às vezes, ando de bicicleta durante tardes inteiras com fones nos ouvidos. Estas subidas, fáceis para um profissional e difíceis para um amador, são para um ganzado como eu mais uma experiência alucinante. Outras vezes, vou ao MarchPush, cumprimento o empregado e peço a dose normal, leio o jornal, fumo um cigarro, prefiro a sopa e dispenso a sobremesa. Outras vezes, vou simplesmente para casa a pensar na vida. Tenho tanta sorte, sou livre porque tenho tudo à mão de semear, sou controlado pelo tutor mas tenho os meus contactos antigos, faço troca directa, troco zines e desenhos por almoços, ganza e a companhia de um sorriso de uma bela mulher. Estou só porque não tenho mulher. Os palhaços que só querem criar ruído aparecem para distorcer o espaço público e criar uma ilusão de competição e eu, casmurro irreversível, dinamito o palhaço e dinamito as dinas deste mundo, mesmo aquelas de quem só conheço o avatar e confundo com beldades pop de tacão de dez centímetros, que aparecem no MarchPush para tomar um meia de leite e um pão com manteiga. Já não mando ninguém para a fogueira, eu sou a fogueira, some-te porque sou louco e lobo. Digo-o porque ando a ler O Lobo das Estepes de Hermann Hesse. Quem me dera que ela me dissesse: ora prova-me lá o quanto mau és?
São férias, não se vê ninguém nas ruas e, então, quando pedalo voltando do Armenia invento longos poemas sobre loucura e ou o acto de estar louco, tento um fugaz ensaio sobre o que deverá ser um louco ou sentir-se louco, digo-me louco, digo que, se calhar, é só um esgar sobre solidão, não estamos ainda fora do sistema, ou melhor, já estamos, já sou vigiado e presto contas em referendos e testes no CReEA, dão-me uma mesada, faço-me à vida e só passo fome se quiser, ou se for preguiçoso, porque há casas que prestam ajuda alimentar... mas eu ainda não estou assim, eu disse que fiz e não fiz metade do que disse que fiz e, por isso, ninguém sabe ainda, têm apenas uma impressão, bem... se não forem demasiado curiosos ao ponto de me querer estudar, não se assustarão. Deixarei para mais tarde aquelas pernas de calças pretas e camisola púrpura... da psiquiatra ou daquela que se tornou a minha mãe sideral?, pergunto-me.
Haverá coisa melhor para passar o tempo do que me dedicar ao estudo de meios para expiar uma culpa ou uma morte anunciada e acontecida, uma vez, antes de chegar ao fim da escada?, só é preciso morrer uma vez para depois as mortes continuarem, sim... no futuro e depois do suicídio absurdo e poético em que morro antes do final do filme, morrerei pelo menos quatro vezes, agora já não me recordo se havia alguma voz a chorar, talvez não, as damas e os paladinos dirão: é o carma. Agora, essa escada circular é cada vez mais sublimada pelo acto solitário? Ou não será para chegar ao fim da escada? Ou como o deverei praticar? Ou será que em cada degrau existe uma morte predestinada? E que meios utilizar para o descobrir? Tudo perguntas que escrevo nesta folha sem lhes saber nunca a resposta. Ah a glória... ah a glória de ser lembrado, é o que me ressoa nos fones, na música que ouço.
Uma vez, igualmente envolvido em ambientes estranhos onde a percepção é extremamente sensível, comecei a imaginar a covardia de um suicida ou a glória dos kamikazes, estranha dualidade esta, disse várias vezes: um suicida é um covarde mas, ao mesmo tempo, esse seu acto é um acto subversivo e rebelde por natureza, é o seu modo de minar o sistema. Às vezes, desejo mesmo alguém que me incruste violentamente de morte, de vermelho sangue e que me deixe, me abandone ao despero ou me permita ficar eternamente um barco fantasma vagueando de pistola em pistola, de agulha em agulha, de cunnilingus em coitus interruptus em formato cinemascope regravado para video, a imagem filtrada fica mais azul, e se tudo isto não são as influências... são todos os pontos G, a ganza erógena despontando para o mundo e fugindo do recalcamento, encontrando a violência poética como ponto fuga, hedonismo para sempre, anarquia!!!
Porém, nem tudo é morte. Existem sonhos e às vezes anda-se de bicicleta e poemas são inventados sobre a louca realidade de mim sem ninguém com quem partilhar a almofada e a quem contar historias. Afinal tinha-me enganado quando a Maria me pediu e eu disse que não lhe queria contar duas mil e uma histórias. A morte é a morte, é a realidade de estar sozinho, o acto solitario é o acto de fumar ganza sozinho e bater punhetas, porque ainda não encontrei a ela com quem fumar e a quem contar os meus sonhos de ganza.
Surgem flashes e desenvolvem-se teorias, fetiches ocorrem em frente aos meus olhos reais: elas tem cabelos longos e lisos e eu ando entre o fetiche daquela verde garrafa de pose gélida de cantora pop... eu imagino que ela canta Portishead e, por isso, sempre que passo Portishead na cabine do dj é para ela... até ao fetiche daquela mais Nine Inch Nails mais animalesca, mais poética, mais África e melhor, um vestido de alças cor de tijolo descendo uma escadaria de pedra de uma casa antiga, onde há noites em que se vê o reflexo de freiras losangais de preto e branco vomitando dedos mas… tudo são sucessões ao longo do tempo, variações sobre a lida insustentável leveza do ser, onde tudo é aprendido mas o desejo reprimido pois não é mutuo, elas não desejam praticar, não desejam passar aos actos. Eu imagino-me um Henry Miller perante as francesas que elas não são e, em todos os sentidos, o Henry Miller, que eu não sou, resvala para a degradação, sou levado a pensar o pior, sou tentado a escrever a pior desculpa e sem poesia que me salve: se calhar serão frígidas ou terão outros amantes... afinal, porque se pergunta se os homens têm medo das mulheres?, não será, às vezes, ao contrário?, e isso não será um sinal para avançarmos?
Um jogo eterno e cheio de olhares e movimentos, dá um certo gozo ser hedonista... e gostar das fotografias de revista da Leni Riefenstahl. Desculpem se o poeta vem a caminho, ah Icata!, como seria bom matar esperma to zoides em cima das tuas super fícies es pon josas, ou se tudo não passa apenas do reflexo inconsciente de, às vezes, sermos obrigados a preferir uma bebedeira, ou qualquer outro delirio social, porque a rapariga prefere ir ao Armenia e não ir para casa após o cinema... era tão fixe estar em forma e actuar em todos os jogos e não só nos treinos.
Às vezes, estou no Armenia a ouvir o Creep dos Radiohead e digo que não gosto da música mas digo-o apenas porque me identifico com a sua mensagem. Outras vezes, estou rodeado de residentes tão bêbados como eu e uma rapariga do teatro vem ter comigo, na altura em que decifro Society is a place where people exist together, that is civilization, e me pergunta porque não me juntei a eles, às pessoas do teatro. Eu sorrio e respondo que não preciso do teatro para nada, pois eu represento já, eu crio as minhas máscaras respondendo aos impulsos. Prefiro não dizer que, deste modo, me esvazio do meu próprio nome e, às vezes, é como se gritassem esse nome a meu lado e eu não reagisse no meio da multidao doppleriana: é um esvaziamento parecido com aquele que acontece quando ela e eu lemos uma passagem escolhida de As lágrimas amargas de Petra von Kant de R. W. Fassbinder e nos beijamos no fim, a dois num espaço fechado, o meu espaço, o covil sem assistência... e esse beijo que damos é, para mim, comparável ao doce açúcar que recolho do fundo da chavena de café.
Penso em tudo isto na meia hora que passa entre sair do alojamento providenciado pelo tutor e me dirigir ao supermercado do centro comercial. Como este, ao Domingo, só abre às quatro da tarde, volto para trás e caminho para casa no sentido para fumar uma unha de bolota. Entretanto, ao passar na vidraça do MarchPush, reparo que L está lá com o J. Ando fodido com J desde que ele vomitou depois de fumar castanha. Há dias em que lhe pergunto: mesmo vomitando curtiste a moca? Sim, diz-me J, curti, é potentíssima, é de ficar cego... mas é estúpida, não quero ficar agarrado. Eu digo que nada tenho já para te ensinar, é uma daquelas situações em que o aluno, que nunca foi aluno, ultrapassa o professor, que nunca foi professor, no entendimento e na experiência das coisas: eu contei-te a minha história com as drogas duras e tu próprio tens toda a informação, quiseste e estás no direito de experimentar, experimentaste e gostaste, repetiste e vomitaste, há dias compraste meia grama e vomitaste cinco ou seis vezes no espaço de oito horas, e gostaste, foi fumar até ao fim, até dizer vai-te satanás heróina do inferno. Tu já sabes mais do que eu, já te contei a minha hstória e tu já sabes mais que eu, o que vale é que a castanha fumada não dá overdose senão...
A meia hora passa comigo, o L a escrever e o J a ler o desportivo, L oferece-me um café e diz que tem uma prenda: um pólen que trocou com um amigo por um Panaït Istrati usado. Pintor por pintor, agora fazemos a festa encostados à frontaria da lavandaria. Chove. Os tolos molham-se. Os flocos de água entolhem-nos os ossos e nós fumamos um pólen com uma mortalha Elements. A seguir, eles voltam para casa e eu sigo para o supermercado. São agora cinco da tarde. Compro a embalagem de papel higiénico, adiciono à conta dois pastéis de nata. Volto para casa para fumar a minha unha. Dou uma volta ao bilhar grande, porque o pólen me deixou atmosférico e preciso de andar à chuva, mais uma hora e anoitece.
Seis e meia. Chego a casa e ligo o computador, na televisão passa um filme sobre jazz, no leitor de cedê ponho um disco de Gunter Hampel, no walkman ponho Nine Inch Nails, desligo a luz e começo a escrever o abstract que tenho de submeter a exame semestral:
Eu sou o norte porque recebo, nas minhas costas, todas as fontes sonoras, excepto uma componente levemente atenuada, uns 3 dB, de um ventilador. Os componentes isotrópicos são combinados e isolados no meu estranho diagrama de radiação. A sul, identifico o rugir de um sax alto, a sudoeste o sampler de uma bateria. De repente, a sul uma bateria convencional aumenta para o máximo de intensidade, aniquilando com o seu vigor um impulso de tempo de recuperação da ordem dos milissegundos. Na televisão, vê-se uma plateia de negros aplaudindo o grupo Bleak. A sul, uma trombeta, terrificamente digna de um indiano a rufar aos infernos, sobe até aos limites do impossível. Na tevê, os elementos do grupo discutem, alguém puxa de uma faca e decide cortar a orelha a um dos seus irmãos. A festa continua a sul. A norte, sai-se do clube e o ambiente é de dúvida, espera-se para ver no que dá. A sudeste, alguém grita enraivecido. Na rádio, os trompetes são festivos e acompanhados por um piano melódico. A sudeste, não há alteracões. A sul, respondem com uma sirene chamando alguém, seguido de um som de xilofone e de pratos precursivos, que se extinguem para dar o lugar a tambores, rugindo como o Michael Gira à procura da sua presa e a vibrafones que miam e a flautas que gemem e a ela que aparece rodeada por todos eles. A sudoeste, eles tocam-lhe no clitóris e os tambores agora cínicos rugem e param abruptamente, o sax pára igualmente. A sudoeste, o piano continua melodicamente acompanhando os trompetes até que tudo acabe, surjam os aplausos e uma voz grite: The Blues. Afinal, tudo era mentira, não vi nada, o filme estava no intervalo, devia ser só um anúncio de freiras pegajosas, losangos sendo seguidos por velhos com cigarros… o jogo da paciência, a noroeste, indica-me cinco mil quinhentos e sessenta segundos após o ligar do computador e, a sul, ouvem-se pequenos xilofones de brincar.
Paro de escrever. Largo o computador e deito-me na cama, puxo de um cigarro, canta-se Closer to god no leitor de cedê, acendo a luz e fumo um intensificador de sonhos enquanto adoro Keine schoenheit ohne gefahr, adoro a beleza, suporto todos os perigos pela beleza, em poesia adormeço, em sonhos é essa a escada, a minha verdade, a corda.
Decido fazer café de saco.
L aparece mas eu despacho-o facilmente. Às vezes, dá-me para pensar que faço penitência ao aturá-lo e que, por isso, por muito que goste do inferno, irei fazer companhia a deus e aos anjinhos nas nuvens. Outras vezes, como hoje, simplesmente lhe dou um silencioso não. L vai embora triste. Eu fico com remorsos e a pensar: só fazendo amor com uma mulher poderei ser amistoso com as pessoas, só fodendo poderei não ser fascista. É um longo processo de reeducação alimentar. É por isso que estou aqui dentro no centro de reeducação alimentar.
O café já ferve. Adiciono-lhe leite.
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Claudio Mur

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

O amor é um gajo estranho



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Terror e medo. Mais estranho que a bondade, é como se fosse a última vez que o jovem deus A beijou ou, então, ninguém viu o burro observar três corvos durante três dias e nascer morto por alturas da terceira semana de Outono.
Terror e medo.
Foi quando o pó me bate mal e eu bloqueio.
Estou na BusStation às cinco da manhã. As luzes acendem-se na última música. Ouve-se Frank Sinatra cantar New York New York. Ouvem-se os clarinetes, os trompetes, os saxofones, new york new york, a BusStation está a fechar. De dia é restaurante, esplanada e parque temático, à noite é a discoteca mais frequentada, a gerência aluga camionetas de longo curso para ir buscar os dancistas à cidade. Estou com mais um ou dois amigos não habituais e não tenho boleia. Não há lugar para mim nos carros. Um deles vem comigo procurar no parque de estacionamento alguém que me possa dar boleia. Encontramos. Sou convidado a entrar no carro de um homem de talvez quarenta e cinco anos, grisalho, sozinho ao volante. Sento-me ao lado dele, apresentamo-nos, ele diz que trabalha em feiras mas não parece cigano, não tem cara de cigano, é só um anónimo que decidiu vir ao parque de estacionamento ver o ambiente, esteve por ali, talvez tenha mesmo pago bilhete para entrar. Pergunta-me quem eu sou e eu digo que sou estudante, agradeço ele dar-me boleia para a cidade. Continuamos a falar e, de um momento para o outro, começa a falar de heroína, diz que é consumidor de heroína e, como vê que eu nada sei, começa a explicar os efeitos da heroína, o que se sente, as precauções, diz que se a gente tiver sempre o produto podemos levar uma vida alegre, calma e confortável, diz que não devemos estar agarrados para não sentirmos a dependência física.
Agora diz que vai fumar neste momento, cinco e meia da manhã. As pessoas já saíram todas do parque, já não há carros no parque e o que ele faz é retirar o autorrádio da consola e, por trás, buscar um pequeno saco de plástico com castanha. Vai ao bolso e da carteira retira a prata, pega numa caneta bic laranja azul, retira-lhe a carga, cola uma fitacola no furo da caneta desmaterializada e transformada em canudo, abre o saco de plástico, retira um bocado de pó, espalha-o na folha de estanho, aquece com o isqueiro por baixo, e dá um, dois riscos de fumo, duas passas calmas e demoradas. Pergunta-me se quero fumar e eu digo que sim, quero eperimentar. Ele diz como eu devo fazer. Diz para eu segurar o canudo e aspirar o fumo que surge à medida que ele vai dando calor por baixo da prata com o isqueiro. Dou uma passa só. Dou duas passas.
O que ele diz é verdade, começo a falar com ele, sinto mais segurança nas minhas palavras, já não estou tímido como estava, sou um aprendiz a ser baptizado, sou um aluno confiante.
Ele diz que agora vamos sair e voltar à cidade, diz que me leva a casa, pergunta-me para que lado eu moro. Passamos pela bomba de gasolina junto aos acessos da autoestrada. Estacionamos. Ele vai oferecer-me um café. Entramos e eu sinto-me como um executivo de gravata desapertada ao final do dia de trabalho a entrar no seu bar de excelência, a pedir ao seu empregado F de estimação um scotche com gelo e a conversar com este e aquele sobre os câmbios na bolsa, e a programar mentalmente os detalhes da mulher que vai tentar encontrar esta noite para levar a jantar. É assim que me sinto, esqueço a Maria, esqueço até a Dina Dois, a mulher de quem ainda não falei e que vi há dias na rua, cabelo verde longo, jeans azuis, alta e esguia, sapatilhas e mãos nos bolsos, tem um ar de neve, uma frieza que combina com um certo elã de divina fatal, é nela que penso agora, confiante que estou, tomando um café com um feirante que me vai levar a casa, após me proporcionar uma experiência, que eu há muito desejava ter, uma experiência feliz.
Saímos da bomba, entramos no carro, ele entra na autoestrada e sai no primeiro desvio, digo-lhe que a minha casa é perto da paragem ali mais à frente naquele viaduto. Despedimo-nos. Seis e pouco da madrugada, o sol a nascer.
Venho para casa e não me apetece dormir para já. Vou para a sala, ponho uma cassete de Pop Dell’Arte, toca aquela música O amor é um gajo estranho e eu lembro-me que eles vêm ao dancíngue Passatempo no próximo Sábado. Mas o que recordo é a frase: o amor nunca me mente quando eu me venho na sua boca. Esta música fica para sempre associada a Maria. Ó Maria como podíamos nós ser almas gémeas se és mulher e não gostas desta música? Esta música que te gravei e ofereci, pela qual te usei para saber se me eras verdadeira ou se me mentias, e se me amavas e se mo provavas, e eu fiz-te tanto mal, este rife de guitarra ficará para sempre na minha memória, o bar que tocar esta música será o meu porto seguro.
No Sábado seguinte, estou com o J e o L no Passatempo. Uma meia hora antes do concerto, eles dão na prata, perguntam se eu quero e eu digo que não. Vemos o concerto, eu gosto do aspecto do Peste, de camisa branca com folhos e cabelo preto comprido frisado, vê-se que está com uma moca total e que talvez esteja a apanhar ele próprio uma seca, há poucos assistentes. Mas Peste é sempre bom de ver e eu gosto do som. Acaba o concerto e vamos ao Armenia. Nada de novo, lá venho para casa.
Mas eis que dou novo bafo uns dias depois e este não tem boas consequências. Estou em casa de J que comecei a detestar e connosco está um estudante de química. J agora compra a sua meia grama e fuma-a em meia hora. Vomita e ainda sente prazer. O estudante treme, quer dar um bafo. J nega-lho, ele põe-se de joelhos implorando, J diz para ele esperar, vira-se para mim e oferece-me, eu aceito, dou um bafo e deixo-os, venho até ao Armenia ver o ambiente, aquela casa é deprimente, ao ponto a que chega a ressaca psicológica e depois a física.
Estou calmo, encosto-me ao balcão, peço uma cerveja, venho agora para os pilares de osso que formam a divisória entre a sala de bilhar e a pista de dança, ao fundo o dj.
A Berta aparece. Tem o cabelo ondulado, castanho escuro, é minha conterrânea e boa estudante, embora emperrando nas cadeiras de matemática é boa nas cadeiras específicas, ela sabe mais do que eu e, mesmo que eu acabe primeiro que ela o nosso curso, sinto que o futuro é para pessoas como ela, ela tem paixão eu não. A Berta vem ter comigo porque simpatiza comigo, ela tem namorado que vai todos os dias de comboio para casa e que é meu amigo, eu simpatizo com ela, gosto de falar com ela.
Estamos aqui às três da manhã, eu com uma moca de heroína, ela tentando falar comigo, a rir-se para mim tentando contar uma anedota, e tentando que eu me ria, ela sente especial carinho por mim, já uma vez nos encontrámos na BusStation ao fim da tarde de aulas, e depois de uns finos e uma conversa beijámo-nos como se nada fosse e nada precisasse de ser dito, e do mesmo modo nos separámos, ambos sabendo que o namorado é nosso amigo e que nada se passou de facto, apenas uns beijos sedentos e espontâneos sem explicação. Mas agora ela está aqui comigo e eu com uma moca de heroína, ela fala, ela ri-se, ela quer companhia, ela quer que eu fale com ela e eu não consigo abrir a boca, quero formar um bom pensamento e ele não se gera, os músculos da boca estão rijos, tudo o que digo é: iá iá.
Ela acaba por se ir embora talvez despeitada mas sem saber porque estou eu assim. Eu sinto-me mal, a noite social acabou para mim. Venho-me embora. Chego a casa às quatro da manhã. Ainda tenho um charro, ponho-me a ouvir o Legend do Bob Marley e digo: a partir de agora, para mim, a moca vai ser sempre e só o charro e mais nada, nunca mais heroína, torna-me associal. Gostei a primeira vez, a heroína é boa quando a gente controla tudo e não precisa de mais nada, tem tudo à mão e não precisa de sair de casa, tendo heroína, tendo comida, tendo tabaco, tendo mulher ou não, a heroína substitui a mulher, mas não gostei do que já vi, a literatura precisava de confirmação, hoje tive uma má tripe, não consegui entreter a Berta, heroína nunca mais. Terror e medo nunca mais.
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Claudio Mur

domingo, 17 de novembro de 2019

A prensa destruidora

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Levei as mãos à altura dos olhos para as examinar, mãos humanas, sujas, com dedos esfolados pelo trabalho como cepas de videira, mirei-as e baixei-as bruscamente com desprezo, deixando-as a baloiçar, e nesse momento soou a pausa matinal, a corrente parou e os operários e operárias sentaram-se debaixo de um grande quadro cheio de pioneses, comunicados e toda a espécie de papelada, tinham posto uma garrafa de leite à sua frente e desembrulhavam a merenda levada numa caixa pela empregada; comiam devagar e iam alternando as sanduíches de salame e de queijo com goles de leite e sumo de frutas, riam e conversavam, e eu tive de me agarrar firmemente ao corrimão porque, chegando-me aos ouvidos fragmentos das suas conversas, fiquei a saber que estes jovens formavam uma brigada socialista de trabalho, que todas as sextas-feiras iam na camioneta da empresa para um chalé da mesma nas montanhas dos Gigantes. Quando acabaram de comer, acenderam os cigarros, e fiquei a saber que no ano anterior tinham ido em excursão a Itália e a França e que este ano se preparavam para uma viagem à Bulgária e à Grécia, e quando os vi elaborarem tranquilamente a lista de participantes e convencerem-se mutuamente a irem todos juntos à Grécia, então não me admirei de vê-los despirem as camisolas, já o sol ia alto, para se bronzearem em tronco nu, combinando se, durante a tarde, haviam de ir nadar à Piscina Amarela ou jogar futebol em Modrany. As férias na Grécia deixaram-me abalado; eu, que me projectava na Grécia antiga apenas através da leitura de Herder e de Hegel, e me iniciara na visão dionisíaca do mundo em Friedrich Nietzsche, para dizer a verdade, nunca tinha ido de férias, gastava-as quase todas a pôr o trabalho em dia, por cada falta injustificada o chefe descontava-me dois dias, e se me sobrava algum dia, preferia que mo pagassem e ia trabalhar, pois tinha sempre trabalho em atraso; por baixo do pátio e no próprio pátio, havia sempre imenso papel, mais do que aquele que eu era capaz de empacotar, de modo que, ao longo destes trinta e cinco anos, tenho vivido diariamente o meu complexo de Sísifo, como escrevera tão bem o senhor Sartre, e ainda melhor o senhor Camus, porque quantos mais pacotes levavam do pátio, mais papel velho caía na minha cave, e assim indefinidamente, enquanto a brigadda socialista de trabalho, aqui em Bubny, tinha sempre o trabalho em dia. Tinham voltado todos ao trabalho, bronzeados -- o sol realça-lhes a cor dos corpos de efebos gregos --, não estavam minimamente perturbados com o facto de irem à Hélade nas férias e nada saberem sobre Aristóteles, Platão e Goethe, essa extensão da Grécia antiga, continuavam a trabalhar serenamente, e a separar o miolo dos livros das suas capas, arremessando as páginas apavoradas e eriçadas de medo para o tapete rolante, com a indiferença e calma, sem imaginarem o que um livro significa; afinal, alguém teve de escrever o livro, alguém teve de o ilustrar, alguém teve de o compor, alguém teve de o rever, alguém teve de o compor e de o rever de novo antes de o compor definitivamente, alguém teve de o imprimir e alguém teve de o ler uma última vez antes de o voltar a pôr, folha a folha, numa máquina que o encadernou, alguém teve de pegar nos livros e de os atar e empacotar, e alguém teve de fazer as contas a todo o trabalho que o livro deu, e alguém teve de decidir que este livro não se destinava a ser lido, alguém teve de o censurar e de ordenar que o deitassem no lixo, alguém teve de empilhar os livros no  armazém, alguém teve de carregar novamente o camião e alguém teve de trazer os pacotes de livros até aqui, onde os operários e as operárias com luvas vermelhas, azuis, amarelas e alaranjadas lhes arrancam as entranhas e as deitam para o tapete rolante, que, imperturbável mas com movimentos precisos, leva as páginas eriçadas para debaixo da prensa gigantesca, que as comprime em pacotes, pacotes estes que vão para as fábricas de papel, onde os livros acabarão transformados em papel branco, inocente, sem a mácula das letras, para que novos livros possam ser impressos...
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páginas 99 - 103

'Uma solidão demasiado ruidosa'
Bohumil Hrabal
tradução de Ludmila Dismanová
edição Antígona

sábado, 9 de novembro de 2019

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Sablier -- Osso Exótico



Recorded at Lisboa, March 22, 2009 Musicians were: André Maranha : sand and bottle Francisco Tropa : sand and bottle Patrícia Machás : copper bowl David Maranha : organ Manuel Mota : electric guitar